Cá temos o exemplo de um livro que sai na altura certa: quando estamos prestes a celebrar os 50 anos do 25 de Abril, a ‘A desobediente – biografia de Maria Teresa Horta’ vem lembrar a importância de continuar na luta. E continuar na luta acima de tudo pelos direitos femininos, porque apesar das muitas lutadoras, ainda há imenso para mudar.
Portugal está agora a descobrir as biografias. Adoramos biografias porque somos um povo de cuscos, mas a verdade é que uma boa biografia demora anos a fazer. “Um trabalho insano”, foi como a definiu a sua autora, Patrícia Reis, ela própria escritora, feminista e amiga da sua biografada. Mas o que define este livro em particular é que se lê como um romance. Não temos aqui um acumular de factos e datas, não é, como Patrícia afirma, uma biografia de academia. É a história de Teresa.
E a história prende-nos do princípio ao fim, mesmo para quem não se interesse particularmente por Maria Teresa Horta, mesmo para quem não a conheça, e mesmo para quem ache que sabe tudo sobre ela. E se vocês pensavam que sabiam tudo sobre a Teresa Horta, esqueçam. Sabíamos muito, principalmente se leram a sua poesia, mas este livro está cheio de surpresas. A maior – pelo menos para mim – é a sua infância. (Há um episódio especialmente perturbador em que Teresinha, com 9 anos, recebe uma carta da mãe, de quem estava separada. Para a proteger, resolve engolir a carta…)
Filha mais velha de um médico conservador que não a compreendia e de uma mulher livre e muito à frente do seu tempo, Teresa sobreviveu ao divórcio dos pais numa altura em que isso não era comum. Com uma relação sempre difícil e conturbada com o pai, sempre apoiou a mãe e sempre defendeu o seu direito à liberdade, a viver a vida como bem o entendia. De defender a mãe a defender as outras mulheres – a si própria – foi um caminho lógico. Ou seja, a mãe foi a sua primeira causa. E dela retirou naturalmente a sua principal lição: todas as mulheres têm o direito à liberdade. Mas para toda a vida ficou o sentimento de não ser amada e a dor do abandono, que a levaram a um primeiro casamento sem amor mas também à consciência daquilo que era preciso mudar na vida das mulheres.
O livro conta como foi sobreviver a uma infância difícil, entalada entre dois pais muito problemáticos num meio que não correspondia àquilo que ela achava que o mundo devia ser. Acompanhamos a sua entrada na vida cultural de um país em ditadura, a publicação do seu primeiro livro, e todo o processo de criação e publicação de um dos livros mais importantes da literatura portuguesa, que havia de contribuir para a queda do regime: as ‘Novas Cartas Portuguesas’, publicado em 1972, onde se tornou uma das célebres ‘Três Marias’, com Maria Velho da Costa e a Maria Isabel Barreno. Tendo como ponto de partida as cartas de Mariana Alcoforado, o livro dava uma voz a várias ‘Marias’ portuguesas e às suas vidas amordaçadas, abordando temas como o casamento, a sexualidade e a maternidade e mostrando como a repressão da ditadura e o peso do patriarcado reprimiam as mulheres. Publicado graças à coragem de uma outra mulher, Natália Correia, o livro foi imediatamente apreendido e as suas autoras condenadas naquele que foi o último caso de perseguição a escritores em Portugal, mas tornou-se uma bandeira do feminismo e recebeu apoio de mulheres como Simone de Beauvoir ou Marguerite Duras. Só depois do 25 de Abril o processo foi desativado.
Mas a vida de Teresa Horta não se resume e não terminou nas ‘Três Marias’. A liberdade não a travou, e a sua atividade política e literária continuou intensa, desenvolvendo uma poesia que abordava o erotismo e a relação com o corpo de uma forma totalmente inédita na literatura feminina portuguesa.
Hoje, a figura de Maria Teresa Horta e o seu exemplo vêm lembrar que nenhum direito pode ser dado como adquirido e que é preciso muitas Teresas Hortas para que a vida das mulheres tenha finalmente alguma dignidade.
‘A desobediente’ – Biografia de Maria Teresa Horta’, Patrícia Reis – Contraponto, E18,81