Era uma vez, há muito muito tempo, uma família disfuncional. A rainha Nut e o rei Geb tiveram quatro filhos: dois homens, Osíris e Set, e duas raparigas, Ísis e Neftis. Os irmãos casaram com as irmãs. O primeiro filho, Osíris, sucedeu ao pai no trono. Era um bom rei, mas tinha uma pedra no seu caminho: o irmão Set. Enciumado, Set matou o irmão e espalhou os bocados do seu corpo por todo o Egipto. Ísis conseguiu juntá-las e trouxe Osíris de volta à vida. Mas em vez de voltar à terra, este tornou-se rei do Além, o reino depois da morte, deixando ao filho, Hórus, o trono e a missão de vingar o pai matando Set.
Este é apenas um, mas o mais importante, dos mitos que está na base do ‘Livro dos Mortos’ e de toda a civilização do Antigo Egipto, lançando as bases para muitas outras histórias e mitos que viriam a seguir (os temas da ressurreição, da vingança, da vida após a morte, viriam a ser recorrentes).
O ‘Livro dos Mortos’ é um dos textos mais antigos e importantes de sempre. O que é: um conjunto de orações, feitiços e discursos que os antigos egípcios enterravam com os seus mortos, para os ajudar na viagem depois da morte.
A antiga civilização egípcio durou mais de 3 mil anos (até ser anexada pelos romanos em 30 AC). Ao princípio, eram apenas os faraós que contavam com esta ajuda, tendo textos funerários escritos nas paredes das suas pirâmides. Com o tempo, os altos funcionários ganharam o direito a ter textos funerários inscritos dentros dos caixões, e mais tarde em papiros enrolados e enterrados com os mortos. O termo ‘Livro dos mortos’ foi inventado pelo egiptólogo alemão Richard Lepsius em 1842, mas a ideia não era tanto o fim mas ajudar o morto a regressar à vida, numa forma espiritual. Depois da morte, o morto passava por um complicado ritual de julgamento em frente aos deuses (que incluía a ‘pesagem do coração’). Se seguise as instruções do ‘livro’ e recitasse as oraçoes corretas, tornava-se um espírito livre e juntava-se aos deuses.
Este ‘papiro de Ani’ foi encontrado em Tebas e data de 1275 AC, e é um dos mais longos manuscritos do ‘Livro dos mortos’ (mede quase 24 metros!) Além do texto, inclui muitos ‘desenhos’, o que ajuda bastante a perceber a ‘ação’. Os protagonistas deste papiro e desta viagem pós-morte são Ani, supervisor de celeiro, e a sua mulher Tutu, que pertencia ao coro no Templo de Amon. Aqui seguimos o seu percurso e a sua entrada e acolhimento no mundo dos deuses.
Nesta semana em que, vários milhares de anos depois de Ani ter mergulhado no mundo do Além, festejamos o poder da vida sobre a morte e o poder da festa sobre os nossos medos (o que é o Halloween senão o exorcismo de tudo aquilo que mais tememos?), vale a pena regressar ao passado e perceber como é que os humanos que nos precederam tentavam dominar esta coisa tão complicada a que chamamos morte.
Um feliz pós-Halloween e dia de todos os Santos para vocês também. Amanhã, dia dos Mortos, aproveitem para pensar naquela imagem tão poética que nos foi deixada pelos antigos egípcios: quanto pesa hoje o meu coração?
‘O livro dos mortos do Antigo Egipto’ – Ed. Marcador, E18,90