Há uma História que aconteceu e uma História que podia ter acontecido. A diferença entre um historiador e um romancista é que um romancista pode falar da História que podia ter acontecido.
É o que faz José Eduardo Agualusa em ‘Mestre dos Batuques’. Mas na verdade para mim não fez grande diferença, sendo que não sei quase absolutamente nada sobre História de África.
Vantagem: fiquei a saber quaquer coisa, entre a verdade histórica e a ficção. O ‘tema’, digamos assim, ou o centro, ou o coração, do livro, é a morte misteriosa de soldados portugueses em Angola no princípio do século XX: aparecem mortos sem qualquer sinal de violência, sem pancadas, feridas ou golpes. O que é que aconteceu ali?
Para averiguar o caso, é chamado ao Reino do Bailundo, outrora existente no Planalto Central de Angola, o jovem militar português Jan Pinto. Nascido em Angola de pai português e mãe boer, foi educado em Lisboa mas fala umbundo e conhece bem as culturas africanas. Ao regressar a Angola, reencontra um amigo de infância, Kavita, agora ‘mestre dos batuques’ na corte do Bailundo. Este ‘mestre dos batuques’ não tem só uma função artística: ele pode usar os tambores mágicos para induzir a morte a dezenas de pessoas.
Aqui, a História e a história encontram-se: ‘Mestre dos batuques’ podia ser um romance histórico, contando como os portugueses tentaram subjugar o Reino do Bailundo (um dos últimos reinos de Angola a render-se ao poder colonial). Mas as mortes por ‘batuque’ e a história da amizade entre o militar português e o mestre batuqueiro põem em cena um jogo de lealdades que juntam a poesia e a alma da cultura africana à crueza da História, ao mesmo tempo que mostram muito bem as lutas coloniais do princípio do século.
Pronto, isto foi para vos situar, mas o que mais comove o leitor aqui é mesmo a paixão entre Jan Pinto e a angolana Lucrécia Van Dunem, que torna um épico histórico acima de tudo numa história de amor (que não vos digo como é que acaba porque já fui várias vezes acusada de ser spoiler). A história é contada na primeira pessoa e algures no presente pela neta deste par, Leila Pinto, ela própria ‘mestre de batuques’, mas Leila tem uma voz narrativa tão discreta como o narrador do ‘Monte dos Vendavais’, que eu agora nem me lembro como é que se chama e de quem nunca ninguém se lembra.
É Leila quem pega na história no tempo atual e lhe dá um remate, mas o leitor (não sei se todos os leitores, mas foi o que aconteceu comigo) não se interessa assim muito por esta Leila e fica lá atrás, ainda preso na história de Jan e Lucrécia. E na forma como, se calhar, toda a História é história, e toda a narrativa universal está mediada pelas nossas pequenas histórias individuais que lhe dão sentido.
Também fiquei a pensar se todos os escritores não serão, à sua maneira, mestres batuqueiros, com poder para entrar dentro da nossa alma e nos transformar a vida (enfim, ainda ninguém morreu de ler um livro, mas enfim. Vocês percebem o que eu quero dizer).
Pronto, ide ler, como dizia a minha avó (não dizia, mas agora fez-me jeito para acabar isto).
‘Mestre dos Batuques’ – José Eduardo Agualusa, Quetzal, E18,80