Este é daqueles livros que uma pessoa está a ler e está a imaginar a série da BBC todinha a passar-lhe à frente dos olhos.
Os ‘loucos anos 20’ foram uma época, digamos, festiva: a Primeira Guerra tinha acabado, a Segunda ainda não estava no horizonte, e foi aquela altura em que os clubes apareceram como cogumelos e foram palco de noites absolutamente, pronto, loucas (em Portugal também: vale a pena ler ‘Os loucos anos 20’, de Paula Magalhães, para perceberem como a loucura chegou até a este cantinho retrógrado e conservador).
Já conhecemos Kate Atkinson de outros carnavais. Lemos o lindíssimo ‘Vida após vida’ (parece que está esgotado em português, mas se puderem leiam em inglês, é um conselho que vos dou) ou o empolgante ‘Transcrição’. Em ‘Templos da Alegria’, somos transportados até à Inglaterra de 1926, e largados no submundo dos clubes noturnos do Soho onde reina a fenomenal Nellie Coker e os seus seis filhos, cada um com a sua história e o seu caráter e a sua função no império materno. Nos clubes, como podem imaginar, passava-se muito mais do que apenas dança e bebida: eram verdadeiros antros onde à mistura com plumas e lantejulas havia brigas, crimes, negócios escuros e pancadarias várias.
Como conta Kate Atkinson, a figura de Nellie foi inspirada diretamente na ‘rainha dos clubes’ Kate Meyrick. Para escrever o livro, também se baseou na autobiografia de Barbara Cartland, o que não deixa de ter graça.
Bem, a Nellie Coker & Companhia junta-se a igualmente fenomenal (e cerebral) Miss Kelling (brevemente bibliotecária mas em breve ‘inside woman’ e depois gestora dos Clubes de Nellie) e o infeliz inspetor Frobisher, atado a um casamento sem saída e a um cão que o adora. Pelo meio aparecem a corajosa Freda, candidata a atriz e sobrevivente nata, e a sua amiga, a inocente Florence, que desaparece e reaparece sem que nunca se saiba ao certo o que lhe aconteceu. E para juntar tudo isto, o mistério das raparigas que aparecem mortas e de quem se procura o assassino.
E é isto. Não se assustem com as quase 500 páginas, são 500 páginas a um ritmo alucinante. É como apanhar um combóio desgovernado (enfim, nunca andei em nenhum mas vocês percebem a ideia) e deixar-se levar.
A narrativa tem um, digamos, formato, original, e não se enervem porque é mesmo assim: a autora vai sempre um passo à frente. Ou seja: uma coisa acontece num capítulo, nós não sabemos bem como nem porquê, e no capítulo seguinte a ação recomeça um pouco atrás, do ponto de vista de outra personagem. E os finais de todas as personagens são tão desconcertantes como todo o livro: não esperem um remate convencional.
Disse-vos há bocado que era como assistir a uma série da BBC, só que uma série não vos punha a rir como certas passagens. Ora leiam:
“Nem Betty nem Shirley tinham muito tempo para pensar. Para elas, ‘a vida da mente’ era um desperdício, quer da vida, quer da mente, apesar de terem andado em Cambrige. Ou talvez por causa disso.”
Ou:
“Colocou na cabeça um estranho chapeuzinho feito por uma chapeleira que conhecia. Parecia que um melro lhe tinha pousado na cabeça e lá havia morrido.”
Ou:
“Nellie não era realmente uma mulher, era mais um elemento, como o aço. Ou uma metonímia: como o Rei estava para a Coroa, assim estava Nellie para o Império Coker.”
Pronto, atirem-se a ele, e boas leituras.
(Nota pós coisa – Templos da alegria – Aquele ‘da’ bole-me com os nervos da picuinhice. Segundo o original ‘Shrines of gaiety’, devia ser ‘Templos de alegria’. Aquele ‘da’ destrambelhou-me o sistema nervoso o tempo todo que estive a ler, para vocês verem o que é o cérebro de uma control-freak. Gostava muito que numa próxima edição o emendassem, em prol de todas as picuinhas do mundo. Obrigada.)
‘Templos da alegria’- Kate Atkinson, Asa, E22,90