Quando se é mãe ou pai, abre-se uma porta no nosso coração que nos leva a um carrossel de emoções, de felicidade, deslumbramento, amor incondicional, encantamento, algumas arrelias e… muitas preocupações, muitas mais se esse filho nasce com deficiência. Há uma pergunta que está constantemente na cabeça desses pais, que é: o que será dele quando eu não estiver por cá?
O apoio familiar é fundamental, e para muitos a solução ainda é institucionalizar, mas nem sempre tem de ser assim. É aqui que entra Joana Santiago, 58 anos, diretora do projeto de inclusão social Semear, que tem como objetivo formar e promover a empregabilidade de jovens e adultos com dificuldade intelectual e do desenvolvimento. “A deficiência é um mundo, há pessoas com deficiências profundas e outras com deficiências muito ligeiras, por isso há que separar as coisas e pôr as pessoas nos sítios certos. Faz sentido institucionalizar pessoas que precisam de estar num ambiente protegido, que têm de ter cuidadores permanentemente, mas há uma grande parte dessa população que pode ser autónoma e contribuir para o desenvolvimento do país.” O envolvimento de Joana nesta área deu-se há 23 anos, quando o seu terceiro filho nasceu com deficiência. “Se eu, que era enfermeira e tinha melhores condições que muita gente, me sentia um pouco perdida, fará aquelas famílias que pouco ou nada têm, nem sabem onde pedir ajuda nem que direitos têm.” Foi por isso que logo em 2005 Joana e outros pais se juntaram para fundar o BIPP (Banco de Informação de Pais para Pais), um banco de dados cujo objetivo era dar informação a quem precisasse sobre os recursos existentes no nosso país para as pessoas com deficiência e suas famílias. Mais tarde, em 2009, foi criada uma plataforma online que continha recursos em várias áreas, da educação à saúde, passando pelo setor jurídico e social, ao qual todos os pais com filhos com deficiência pudessem aceder e clarificar dúvidas. Mas rapidamente Joana se apercebeu de que era preciso muito mais, “era necessário algo mais ‘mão na massa’, prático, algo que tornasse este público mais participativo na sociedade, e há tantos com tantas competências que não há direito eles estarem a viver num ciclo de pobreza e miséria”.
Promover a autonomia
Segundo Joana, cerca de 10% da população portuguesa tem algum nível de deficiência física ou intelectual, “são números gigantes, mas porque é que uma pessoa, cujo único problema é ter dificuldade em subir uma escada, não pode ter uma vida contributiva, autónoma e feliz? O desemprego desta população anda à volta dos 70%, o que é elevadíssimo, por isso nós pais quisemos criar algo que os ajudasse a integrar o mercado de trabalho, que pudesse melhorar não só a vida deles como a dos pais.” Foi assim que fundou o Semear em 2014, um projeto de inclusão social para jovens e adultos dos 18 aos 45 anos, que não só dá a esta população uma formação teórica, competências técnicas para trabalharem, mas também competências sociais, “algumas têm de aprender a andar nos transportes públicos, a usar o dinheiro, a serem autónomas na rua, a cuidarem de si próprias… e tudo isso é ensinado aqui de forma a serem o mais autónomas possível”.
“A formação é sobretudo no setor agroalimentar, que inclui áreas como agricultura, restauração e transformação.”
Acabar com mitos e preconceitos
A formação teórico-prática é feita por módulos ao longo de praticamente 3 anos, “mas nós acompanhamo-los cerca de 5-6 anos, já depois de integrarem o mercado de trabalho, isto porque é do nosso interesse que as empresas retenham o posto de trabalho e não que façam apenas um estágio. Temos técnicos que servem de interlocutores e que apoiam as empresas para que isto seja um sucesso, e esse acompanhamento pode durar anos. O ano passado saiu uma lei que obriga as empresas a empregar um número de pessoas com deficiência, é verdade que não gosto muito de cotas, mas concordo que estas não só abrem o tema à discussão, o que é muito importante, mas também, assim, cria-se uma experiência partilhada. As pessoas não nascem ensinadas, temos de aprender, eu também não sabia nada de deficiência até o meu filho nascer. É muito importante acabar com os mitos e preconceitos sobre a deficiência e nada melhor que a demonstração da capacidade destas pessoas e do convívio com elas. E é muito gratificante perceber que as pessoas, quando têm contacto com pessoas com deficiência, mudam o seu mindset.”
“As pessoas com deficiência têm tantas competências que não há direito elas estarem a viver num ciclo de pobreza e miséria.”
Todos temos um talento
Por enquanto estão a formar no setor agroalimentar “porque estas pessoas com dificuldade intelectual e do desenvolvimento têm de ter profissões compatíveis com a sua capacidade cognitiva, portanto, tudo o que sejam tarefas repetitivas, monótonas, elas conseguem fazê-las”. E este setor tem várias áreas muito abrangentes, que vão da agricultura, restauração, comércio, transformação… Para tornar o Semear menos dependente de subsídios e mais sustentável, criaram dois negócios sociais: Semear na Terra, que se dedica à produção agrícola biológica numa horta de 12 hectares com várias culturas e que se situa num terreno no concelho de Oeiras, no Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária; e o Semear Mercearia, que se foca na confeção, transformação e venda de produtos gourmet caseiros, como compotas, chutneys, temperos, biscoitos. Os produtos agrícolas biológicos certificados que plantam na horta são depois vendidos a restaurantes, “mas também no grupo Auchan e brevemente no El Corte Inglés. Já para fazer os produtos que vendemos na Mercearia online vamos apanhar o excedente aos agricultores da zona e transformamo-lo em produtos gourmet que vendemos na nossa loja. E são produtos deliciosos e muito interessantes, pois cada embalagem conta um bocadinho da sua história, ou seja, a participação dos nossos jovens. Imagine que um doce de tomate tem um 4 no rótulo, isso quer dizer que eles participaram em todas as fases do produto – apanha, preparação, rotulagem e armazenamento. Ainda não somos autossuficientes, mas 50% dos nossos custos são oriundos das receitas dos nossos negócios sociais, o que é muito bom para uma organização do setor social”. Para breve está um terceiro negócio social, a cerâmica, “uma arte muito portuguesa, e nós queremos que sejam peças bem feitas e bonitas, o que não vai ser difícil, estas pessoas têm imensa criatividade, só temos de lhes dar as ferramentas técnicas para o fazerem bem. Sou apologista do ‘comprem porque é bom e bonito, não comprem porque têm pena’. No fundo, procuramos é descobrir qual é o talento deles e formá-los nessa área para arranjarem trabalho e serem autónomos, minimizar as dificuldades e maximizar os talentos. Há pessoas que têm imenso jeito para a área agrícola, outras para a restauração, outras para trabalhar na cozinha, e nós vamos à procura do que eles mais gostam de fazer e da sua vocação”. Joana já não é enfermeira, deixou a profissão ao fim de 30 anos para se dedicar de corpo e alma à direção do projeto Semear, que “funciona lindamente porque tenho uma equipa superprofissional de 37 pessoas, e onze delas com deficiência”.