A minha cabeça começa a andar à roda. Há pelo menos 15 minutos que salto de continente em continente, de país em país, de emprego em emprego. Aparna percebe o meu estado de confusão e vai avisando que são 11 os países onde já viveu: Índia, Inglaterra, Austrália, EUA, China, Singapura, Alemanha, México, Brasil, Espanha… e agora Portugal. Ainda temos muito mapa por palmilhar numa conversa que percorre todo o mapa mundo. Estou consciente de que a empresária precisa de treinar o português – que aprendeu no ano e meio que viveu em São Paulo. Mas insisto que a entrevista seja em inglês: afinal, não quero perder pitada do que Aparna Aurora tem para contar. Não quero que lhe falte cor às palavras com que descreve a sua paixão pela América Latina. Não quero que a língua seja uma barreira ao ritmo com que fala da sua experiência na indústria da moda, à qual dedicou mais de 20 anos de carreira antes de encontrar na restauração a receita para uma nova felicidade: com uma língua tão universal como a comida, a cozinha do Sul da Índia conquistou primeiro Berlim e agora já conta com dois restaurantes em Lisboa e um no Porto.
Declaração de independência
Se o Chutnify ganha terreno pela comida indiana honesta e genuína que serve, é a multiculturalidade que nesta conversa está em cima da mesa. A Índia é um capítulo importante, mas não é a sua história. Aparna viria a ter contacto com a realidade indiana propriamente dita durante os três anos em que estudou Economia na universidade de Mumbai. Antes disso, a Índia pouco mais era do que o colégio interno britânico (e dos poucos que aceitavam rapazes e raparigas) perdido nos Himalaias que frequentou dos 9 aos 18 anos, por insistência sua e grande sacrifício da mãe.
Mas aquele ‘lugar no meio de nenhures’ é central para a identidade de Aparna. “O colégio definiu-me. Aos 9 temos de fazer tudo sozinhos – não é só fazer a cama, é fazer a cama perfeita – e não temos os pais para nos orientar. O bom é que me tornou independente, o mau é que me tornou demasiado independente. Sou uma pessoa que não precisa de ninguém e mesmo quando preciso não o admito. Tenho consciência de que isso não me beneficiou noutras relações.”
Noutras relações. Não nesta, que já dura há mais de 20 anos. Aparna conheceu Guido Schwanekamp em Nova Iorque, um engenheiro alemão com carreira no marketing a viver na China. Com ele regressou a Hong Kong, uma cidade que já conhecia bem, para a qual se mudara a mãe e o padrasto e onde passara todas as férias do colégio. “Tirei um ano para mim e fiquei contente por poder passar mais tempo com a família.” Aproveitou também para planear o casamento, duas cerimónias, uma hindu e outra católica, que se viriam a realizar na Índia perante um grupo de 50 pessoas vindas dos quatro cantos do planeta. Depois, juntos (e separados), viajaram por todo o mundo sem nunca perderem o norte da relação. “Funcionamos bem por darmos espaço um ao outro. Agora, por exemplo, passa a semana na Suíça e só vem a Lisboa aos fins de semana e estamos bem assim.”
La vida loca
Em tanto desencontro, Aparna e Guido nunca se deixam de encontrar para o que é verdadeiramente importante. “É o meu maior fã. Quando quero alguma coisa, apoia-me sempre.” Foi assim com o México. “Tinha um trabalho muito desafiante mas extremamente exigente na Hugo Boss em Estugarda, já tinha 33 anos e não conseguia engravidar. Foi aí que decidi abrandar. O meu marido foi literalmente buscar o mapa e perguntou-me onde é que eu queria viver. Eu disse logo: México! Sempre tive um fascínio pela cultura mexicana.” Ainda assim o país da América Latina conseguiu superar as expectativas. Monterrey foi o lugar onde mais gostou de viver, pelas “cores, música, comida e alegria do povo”, mas também porque foi lá que adotou a primeira filha e deu à luz a segunda. Pode dizer-se que Mila e Tara nasceram duas vezes, já que foi também com o nome da dupla que batizou a sua empresa de roupa para menina. A necessidade fez o engenho: Aparna criou o negócio por não ter emprego e criou uma linha de vestuário para ter o que vestir às filhas. Mesmo quando o casal decidiu deixar o México – numa altura em que as condições se degradaram por causa do narcotráfico –, o negócio continuou a crescer. Vingou no ano em que Aparna esteve no Brasil mas já não sobreviveu a Madrid. “As vendas online dispararam, mas já não tinha a loja, a fábrica, uma equipa, e eu não gosto de trabalhar sozinha. O meu coração já não estava ali.”
Ao sabor do coração
Aparna fala muitas línguas, mas a que lhe tem trazido maiores alegrias é mesmo a que lhe vem de dentro, a paixão com que se entrega às coisas. Diz que é um dos ingredientes do sucesso do seu percurso na restauração, iniciado em Berlim e tantas vezes ensaiado nos jantares entre amigos. No Chutnify serve-se comida com alma, no início confecionada pela própria Aparna. “Sempre gostei de comer, de ir a bons restaurantes, de experimentar tudo [até minhocas no México]. Quando gosto de alguma coisa vou para casa e tento fazer. Sou boa a adivinhar os ingredientes e falo muito com os chefs.” Aprendeu a cozinhar sozinha, entre intuição, livros de culinária e telefonemas para a mãe, uma ‘foodie’. “Lembro-me de ela fazer um prato thai num dia e coreano no outro.”
Quando o coração fala mais alto, não vale a pena chamar Aparna à razão. “Toda a gente dizia que era louca em querer abrir um restaurante, que não tinha experiência numa área muito difícil. E quanto mais me diziam isso, mais eu estava decidida a avançar.” Foi em frente naquele ano de 2014, que diz ter sido o mais difícil da sua vida. “Foi uma loucura desde o primeiro dia, assustador. Não via a minha família, saía de casa antes das nove e só chegava depois das duas da manhã.” As críticas à comida foram logo excelentes, mas os clientes queixavam-se da espera.” Trazer chefs da Índia foi uma das medidas tomadas por Aparna para profissionalizar o serviço, tão eficazes que passados dois anos era inaugurado outro Chutnify em Berlim.
Por entre as nuvens
Não há viagem sem turbulência e fico aliviada quando Aparna assume naturalmente as nuvens que por vezes salpicam o seu céu azul. O facto de ser mulher causou alguns solavancos pelo caminho. “Em quase todos os países senti limitações.” Quando trabalhou nos EUA, viajava muito para o sudeste asiático. “Ao início foi difícil, não me levavam a sério, quando eu dizia alguma coisa riam-se na minha cara.” Mas até em Berlim, para abrir o primeiro restaurante teve de levar o marido para muitas reuniões e de enfrentar a desconfiança dos fornecedores indianos. “Foi um pesadelo, por não ter experiência na área, por ser mulher e por ser estrangeira. Mas eu conseguia lidar com isso, sabia que quem mandava era eu.” Hoje, ainda é capaz de receber um ou outro telefonema de quem, ao ouvi-la do outro lado da linha, insiste em falar com o chefe, mas de Portugal não tem queixas, por agora já a reconhecem como uma empresária de sucesso.
Artigo originalmente publicado na revista ACTIVA de Março de 2019