Uma mulher de 60 anos olha-se ao espelho, nua. Não há filtros para a tornar mais apelativa nem poses para parecer mais magra ou mais jovem. Apenas a imagem refletida no espelho, olhada sem julgamento nem crítica, com serenidade e aceitação. A cena é uma das mais marcantes do mais recente filme de Emma Thompson, ‘Boa sorte, Leo Grande’, e não tem nada de nudez gratuita. Pelo contrário, foi a própria Emma que a sugeriu porque fazia todo o sentido, embora considere que foi a coisa mais difícil que já fez. “Para ser honesta, nunca me sentirei feliz com o meu corpo”, disse numa entrevista sobre o filme. “Sofri uma lavagem cerebral muito cedo. Mas se queremos que o mundo mude, e que a iconografia do corpo feminino mude, temos de ser parte da mudança.” Este lado ativista está sempre presente na sua vida, ela nunca deixa de dizer o que pensa e fazer o que acha correto e isso já lhe trouxe dissabores e até uma mudança no percurso inicial da sua carreira.
Genes de atriz
Emma Thompson nasceu em Londres, em 1959, filha de uma atriz escocesa e de um ator inglês, rodeada de pessoas criativas e artísticas. Além do gosto pelo teatro, o pai passou-lhe também a paixão pelas palavras e pela literatura: não é por acaso que, além de grande atriz, é também uma excelente argumentista, sendo a única pessoa até hoje a receber um Oscar de melhor atriz (em 1992 com ‘Regresso a Howards End’) e de melhor argumento adaptado (em 1995 com ‘Sensibilidade e Bom Senso’).
O seu sentido de humor – bem evidente nas suas aparições em talk shows e passadeiras vermelhas, onde nunca resiste a fazer palhaçadas – levou-a a enveredar inicialmente pela comédia. Aluna brilhante, quando estudava em Cambridge, com uma bolsa de estudo, foi a primeira mulher a ser convidada a integrar o Footlights, a trupe de comediantes da universidade, de que também faziam parte Stephen Fry e Hugh Laurie. Em 1980, já vice-presidente do grupo, codirige o primeiro espetáculo da trupe totalmente interpretado por mulheres e no ano seguinte um dos seus sketchs é premiado.
A morte prematura do pai, aos 52 anos, deixa-a desfeita. E gera um quadro que ela acredita ter sido depressão, mas, como no início dos anos 80 esse tema não era falado como hoje, Emma seguiu em frente como pôde, concentrando-se no trabalho.
Um início, um fim e um novo começo
O seu nome começou a tornar-se conhecido em Inglaterra graças a uma série de programas de televisão ao longo da década de 1980, nos quais contracenava frequentemente com os seus companheiros dos tempos do teatro universitário, Fry e Laurie. Pelo meio, fez também uma peça de teatro musical que lhe trouxe ainda mais reconhecimento da crítica e do público.
Em 1985, escreveu e protagonizou o seu próprio programa de comédia, ‘Emma Thompson: Up for Grabs’.
O seu estilo de comédia, desbocado e considerado ‘demasiado masculino’, valheu-lhe tantas críticas que decidiu passar para o drama. “Fui enxovalhada na imprensa, a minha carreira foi mudada pela resposta a essas críticas misóginas”, diria mais tarde. “Mas não importa. Não significa que não fosse doloroso, mas eu sabia que não conseguiria trabalhar bem num ambiente falso porque daí não viria nada de bom. É cansativo.” E é assim que, já com o foco apontado para longe da comédia, participa em 1987 na minissérie de televisão ‘Fortunes of War’, onde tem o papel principal ao lado de Kenneth Branagh e que lhe vale o prémio British Academy Television Award para Melhor Atriz.
É nessa altura que inicia uma relação de trabalho e amorosa com Branagh, com quem viria a casar-se dois anos mais tarde, formando um casal ultramediático – os ‘brangelina’ da época. Trabalharam juntos em peças de teatro produzidas pela companhia dele e em 1993 ambos contracenariam na adaptação cinematográfica da peça de Shakespeare ‘Muito Barulho Por Nada’.
A sua carreira estava fulgurante. Em 1992 ganhou um Oscar, um BAFTA e um Globo de Ouro de Melhor Atriz pelo seu desempenho em ‘Regresso a Howards End’ e no ano seguinte foi nomeada para todos esses prémios pelo seu papel em ‘Os Despojos do Dia’. Mas enquanto a carreira se construía solidamente, a vida pessoal começava a desmoronar-se, culminando numa separação que deixou Emma devastada e com uma profunda depressão.
Para não afundar, agarrou-se à adaptação para cinema que estava a fazer do romance de Jane Austen ‘Sensibilidade e Bom Senso’. Passava os dias enrolada num robe preto que Kenneth tinha deixado esquecido em casa, e só se arrastava do quarto para o computador para trabalhar no seu argumento. Quando as filmagens finalmente começaram, começou igualmente o processo de cura, graças também a uma nova relação amorosa, com o ator Greg Wise, com quem contracenava. “O trabalho salvou-me e o Greg salvou-me”, disse numa entrevista. “Ele apanhou os pedaços de mim e juntou-os de novo.”
O sonho de ser mãe
“A família é o centro de tudo para mim”, disse a atriz numa entrevista. De tal forma que chegou a interromper a sua carreira para estar com a filha. A maternidade chegou tarde à sua vida, quase aos 40 anos e com a ajuda da fertilização in vitro, mas deu-lhe uma base de sustentação. Optou por um parto natural sem anestesia e diz que até hoje, quando as coisas correm mal, relembra o processo do nascimento e transporta-se para o momento em que a filha nasceu, “é como um poço de onde posso tirar forças”. Depois do nascimento de Gaia ainda fez mais tentativas de FIV durante 3 anos, mas para seu grande desgosto não voltaria a ter mais filhos. Hoje considera que isso acabou por ser positivo porque lhe permitiu acolher Tindyebwa Agaba, um rapaz de 16 anos refugiado do Ruanda vítima de horrores que nenhum adolescente deveria suportar: com o pai morto com sida e a mãe e a irmã desaparecidas durante o genocídio, Tindy tinha sido pressionado a tornar-se um menino soldado antes de conseguir fugir para Inglaterra, onde sobreviveu sozinho nas ruas. A sua história chegou a Emma e ao marido através de uma organização de apoio a refugiados e tocou-os de tal forma que decidiram convidar Tindy para passar o Natal com eles. Arranjaram-lhe o seu próprio quarto e em pouco tempo ele já fazia parte da família. Gaia era pequenina e ficou encantada com o irmão mais velho, entretanto oficialmente adotado pelo casal. Hoje, Emma e Greg estão casados há 26 anos. Gaia, que aos 16 anos abanou os alicerces da família com uma anorexia que a ia matando e da qual só conseguiu sair graças à intervenção dos pais, tem agora 23 anos e está instalada no seu próprio apartamento (perto de casa da mãe e da avó, que vivem na mesma rua onde Emma nasceu). E Tindy é ativista de direitos humanos e fundou uma organização humanitária de apoio a refugiados africanos. A prova de que Emma está certa quando diz que a melhor forma de mudar o mundo é dando o exemplo e fazendo aquilo que o pode mudar.
Uma mulher que faz o que diz
Emma Thompson é uma mulher com opiniões e não se coíbe de as dizer. Liberal, foi membro do Partido Trabalhista até surgir o Women’s Equality Party, que passou a apoiar, inclusive financeiramente. E é uma mulher de causas, pelas quais dá a voz e arregaça as mangas. Os direitos humanos (nos quais os direitos das mulheres estão, para a sua visão assumidamente feminista, obviamente incluídos) e os desafios ambientais são talvez as suas maiores preocupações. Ambientalista ativa, usa a sua notoriedade para transmitir as mensagens que têm de ser ouvidas e chegou a participar em expedições da Greenpeace ao Ártico para alertar para os perigos da exploração de petróleo naquela região.
Melhor que nunca
Quantas atrizes podem dizer que têm no seu currículo papéis tão variados como uma governanta, uma perceptora com poderes mágicos, uma professora de futurologia, uma serial killer septuagenária, uma baronesa extravagante, a diretora de uma agência anti-aliens, a criadora de Mary Poppins, várias personagens de desenhos animados, protagonistas de peças de Shakespeare ou uma professora viúva que contrata um prostituto para a ensinar a ter um orgasmo? E falamos apenas de algumas das personagens a que deu vida ao longo de 40 anos de carreira… Todos os prémios e honras que recebeu não conseguiram transformá-la numa ‘estrela’. Continua a ser simplesmente uma atriz, uma mãe de família, uma argumentista e uma ativista, que usa o seu inegável poder para tentar fazer avançar o mundo e ajudar a corrigir desigualdades. Não perdeu o sentido de humor, que foca muitas vezes em si própria, nem a irreverência. O facto de ser aquilo a que os ingleses chamam ‘character actor’, que interpreta personagens com características marcadas, libertou-a da pressão da aparência eternamente jovem. E a idade, que ela assume, fica-lhe tão bem…