Antes de Tina Turner — um nome artístico que lhe foi dado pelo ex-marido — existia Anna Mae Bullock, nascida no Tennessee em 1939. Durante a Segunda Guerra Mundial, os pais, ambos meeiros, deixaram-na aos cuidados da avó em Nutbush, para irem trabalhar numa cidade vizinha.
Na comunidade rural onde vivia, Tina fantasiava com o estrelato enquanto cantava em concursos de talentos e na igreja. Após mudar-se mudar-se para St. Louis, no Missori, aos 16 anos, foi descoberta por Ike Turner, o líder da banda de R&B Kings of Rhythm. Em poucos anos, a sua voz emocionante e movimentos de dança enérgicos catapultaram-na de cantora de apoio para a força dominante do grupo, que foi rebatizado como Ike & Tina Turner Revue.
Em 1960, Ike e Tina tiveram um filho chamado Ronnie — Ike já tinha dois filhos e Tina tinha um. No mesmo ano, lançaram o primeiro hit, “A Fool in Love”, e, em 1962, casaram-se em Tijuana, no México. A passagem do R&B para a música Pop aconteceu com “River Deep – Mountain High” (1966), uma canção que, embora não tenha chegado ao topo das tabelas nos Estados Unidos, valeu-lhes a aclamação europeia.
A dupla disparou nos palcos, mas, fora deles, a vocalista sofria ataques violentos do marido. Numa noite em 1976, após Tina chegar a Dallas, Texas, para começar uma digressão, deu-se um ponto de viragem no casamento. A artista foi espancada no carro, a caminho do hotel, até sangrar. Assim que o companheiro adormeceu, pôs uns óculos escuros para disfarçar o rosto escoriado e fugiu com apenas 36 cêntimos no bolso. Encontrou refúgio numa unidade hoteleira próxima e, depois, rumou a Los Angeles.
(Re)começar do zero
“O divórcio foi limpinho. Não recebi nada; nenhum dinheiro, casa ou carro”, diz a cantora no documentário da HBO “Tina”, lançado em 2021. Ike ficou com todos os direitos de royalties e ligações à marca Ike & Tina.
“E era isso que ele queria?”, ouve-se numa entrevista de arquivo, reproduzida no documentário. “Não, ele queria ser meu dono. Mas eu disse ‘Não vais ser meu dono. Se quiseres ficar com os frutos de todo o nosso trabalho, então força. Eu fico com a minha paz de espírito’”, respondeu a estrela. “O juiz chamou-nos e eu disse ‘Afinal há algo que eu quero: o meu nome’”, recorda, confessando que viu ali uma oportunidade para construir uma marca e um negócio.
Com o fim do casamento e as contas a acumularem-se, Tina pagava a renda a limpar casas. Eventualmente entrou para o mundo dos cabarés, interpretando êxitos antigos em programas de televisão e residências artísticas por todo o país. Atuava onde lhe dessem a oportunidade, de modo a poder sobreviver e dar uma vida digna aos filhos.
(Pete Still/Redferns)
Reinventar Tina
Foi numa altura de estagnação profissional que o agente Roger Davis entrou na fotografia. “Eu tinha um sonho. Queria ser a primeira cantora negra de Rock n’ Roll a esgotar recintos como os [Rolling] Stones”, confessa a Tina no documentário da HBO.
Para isso acontecer, o primeiro passo teria de ser, inevitavelmente, sair da sombra de Ike. “Quando comecei a procurar um contrato para ela, o sentimento geral era “Ela continua com aquele tipo, o Ike?’ Ninguém fazia ideia. Ela precisava de ser exposta com artista a solo”, explica Davis. E assim foi: a estrela cortou o cabelo, livrou-se dos vestidos de cabaré e trabalhou com afinco. Reinventou-se como Tina Turner e assumiu o controlo dos próprios espetáculos.
Outra parte importante do plano era deitar por terra a ideia romantizada que os fãs tinham da dupla Ike & Tina. Em 1981, num longo perfil publicado na revista People, Turner contou a sua história enquanto sobrevivente de abusos físicos, psicológicos e sexuais, numa altura em que não se falava publicamente sobre violência doméstica.
Pouco depois, conheceu John Carter, representante de artistas e repertório da Capital Records, que acreditou nela. Foi único, inclusive na própria editora discográfica. Após uma mudança de gerência, ficou pasmado com o que ouviu numa reunião.
“Carter, contrataste esta preta velha, seu idiota?”, questionou um elemento da nova administração, ao rever o catálogo de músicos, conforme recorda o executivo no documentário. “Sim, e tenho muito orgulho nisso”, afirmou.
O responsável por encontrar novos talentos promissores para a Capital Records bateu o pé e obteve permissão para terminar o projeto em que estava a trabalhar com Tina, mas sem qualquer apoio da empresa.
Sucesso estrondoso
Em 1984, Tina lançou o primeiro álbum a solo, intitulado “Private Dancer”. O disco vendeu mais de 20 milhões de cópias globalmente e os feitos não ficaram por aí: a cantora ganhou três prémios Grammy e chegou ao topo da tabela Billboard com o single “What’s Love Got to Do with It”.
Dois anos depois, a autobiografia “I, Tina” foi publicada, detalhando os abusos chocantes que sofreu às mãos do ex-marido. O livro inspirou o filme “What’s Love Got to Do with It”, que chegou aos cinemas em 1993.
(DENIZE alain/Sygma via Getty Images)
Após deixar Ike, Tina tornou-se uma superestrela internacional. O sucesso estrondoso permitiu-lhe realizar o sonho de encher estádios, sendo que as suas digressões constam entre as mais lucrativas da História. Afastou-se das grandes turnês em 2000 e, nas últimas três décadas, viveu discretamente nos arredores de Zurique com o parceiro de longa data, Erwin Bach, a quem se referia como a sua “alma gémea”. Os dois trocaram alianças em 2013.
Sobre as amarguras da vida, sempre teve uma perspetiva surpreendentemente prática. “Deixamos ir, porque só nos magoam. Ao não perdoarmos, sofremos, porque pensamos nisso sem parar. E para quê? Tive uma vida abusiva Não há outra forma de contar a história. É uma realidade, é a verdade. É o que tenho, portanto, tenho de aceitá-lo”, sublinha no documentário da HBO.
No dia 24 de maio de 2023, foi confirmado que a lendária cantora Tina Turner morreu aos 83 anos, mas a luz da estrela não se apagará nunca. Deixa um legado de esperança, resiliência e vitória, que continuará a inspirar as próximas gerações.