Aos 15 anos, quando tinha a vida toda pela frente e onde nela apenas cabiam os sonhos que queria concretizar, Salomé Rodrigues sentiu o seu mundo tremer ao descobrir que tinha cancro. Depois de um período de dores de cabeça intensas e vómitos, os médicos detetaram um tumor na cabeça que teria que ser operado de imediato. Salomé já não saiu do hospital e fez dele casa durante um longo período de tempo. Entre a operação e os muitos tratamentos, Salomé renasceu numa nova menina que, apesar de todas as sequelas físicas e emocionais, aprendeu a sorrir para o mundo com uma força única. Hoje, com 27 anos, mantém essa mesma força e uma vontade de agarrar a vida inigualável. Apesar de nunca ter recuperado a sua imagem de outrora, uma vez que o cabelo não lhe voltou a crescer, Salomé é uma mulher que sabe perfeitamente que a beleza não cabe num padrão e que o belo vai muito além daquilo que nos querem impor. De uma forma inspiradora, partilhou a sua história de vida com a ACTIVA online, mostrando que os sonhos não são estanques e que da sombra também se consegue vislumbrar a luz.
Foi no décimo ano que recebeu a notícia que mudou a sua vida. Como é que uma adolescente de 15 anos processa tudo o que de repente a Salomé teve que viver?
Na altura não tive a real noção do que tinha, nunca pensei que fosse algo tão sério como realmente foi. Tudo começou com dores de cabeça, mas quando ia ao hospital davam-me comprimidos para as dores e mandavam-me para casa. O problema é que as dores não passavam e depois comecei a vomitar. Só aí, numa nova ida ao hospital, é que perceberam que alguma coisa não estaria bem. Fizeram-me um TAC e descobriram que tinha um tumor na cabeça. Fui operada, retiram o tumor e, depois de ter tido a confirmação que era maligno, fiz cinco tratamentos de quimioterapia – cada ciclo era de três dias seguidos – e depois fiz 30 sessões de radioterapia. Depois da operação, fiquei como se fosse um bebé. Tive que aprender a falar, a escrever, a fazer tudo. O tumor estava num sítio crítico e, ao operarem, tocaram numa zona do meu cérebro que me deixou assim. Por exemplo, ainda hoje tenho muitos desequilíbrios no meu lado direito, porque foi o lado do meu corpo que mais ficou afetado, fiquei com falta de memória… Tive que fazer terapia da fala, terapia ocupacional, fisioterapia… Tive que reaprender tudo. Isso teve um grande impacto na minha vida.
A sua relação com os outros também saiu afetada?
Durante os tratamentos tive um momento de negação. Não queria ver nem estar com ninguém, só com os meus pais. Numa primeira fase, os meus pais aceitaram isso, mas depois o meu pai conversou comigo e mostrou-me que eu tinha que seguir para a frente, falar com outras pessoas, vê-las e deixarem que me vissem… Se ele não me tivesse dado este empurrão, penso que teria continuado fechada numa bolha. A força dos meus pais foi fundamental nesta fase. Mas foi-me difícil, no início, encarar as pessoas. Sentir que olhavam para mim de outra forma… Também me era difícil falar do que me tinha acontecido, era um peso para mim. Mas hoje já falo da minha história sem qualquer problema, sinto-me bem na minha pele. E acredito que, ao falar da minha experiência, posso mostrar aos outros que há vida para lá desta situação, que podemos continuar a alimentar os nossos sonhos. Há coisas que nunca voltaram a ser iguais, mas tento não me prender a isso e dar a volta por cima. Tento sempre ser uma melhor Salomé do que era antes.
Sente que o que lhe aconteceu veio-lhe mostrar que o que pode, à primeira vista, ser algo negativo, também se pode, afinal, transformar numa coisa muito positiva?
Sim, sem dúvida. Sobretudo porque, antes do cancro, eu era uma pessoa muito pessimista e hoje acredito muito mais nas coisas, tenho um outro olhar perante as situações e sinto-me muito mais forte para encarar o dia-a-dia.
E como é que é processo de aceitação de todas as sequelas – físicas e emocionais? É algo que vai acontecendo, ou seja, não é imediato?
Não é imediato, não. É um caminho que se vai fazendo. Por exemplo, quando estava a fazer os tratamentos, e até muito tempo depois, andava sempre de chapéu. As pessoas incentivavam-me a tirar o chapéu, mas sempre tive bem claro que só o ia fazer quando me sentisse preparada. E houve uma altura em que tirei o chapéu naturalmente e passei a andar de bandolete. Hoje há muita gente que me diz para tentar usar uma peruca, mas honestamente, isso não é uma vontade minha. Pelo menos para já. Depois dos tratamentos, o meu cabelo não voltou a crescer, mas essa não foi a parte mais difícil para mim. Perder o cabelo não afetou em nada a minha auto-estima. Aceitei, na altura, e hoje também me aceito como sou.
Quando soube que tinha cancro, era uma adolescente repleta de sonhos. Como se lida com os sonhos que não aconteceram e como se constroem novos?
Tive que aceitar a minha situação, porque seria impossível ser enfermeira, como queria. Regressar às aulas depois de tudo foi muito difícil, devido à minha falta de memória. Insisti, ainda assim, em continuar em Ciências, tive muitos professores que me ajudaram a completar o 12º ano, altura em que tive total consciência que seria muito complicado seguir para a universidade. Mesmo assim, se fosse hoje, se calhar tentava um curso profissional. Depois de terminar o 12º anos fiquei bastante tempo em casa. Tentei encontrar trabalho, mas nunca consegui nada. Fiz voluntariado, mas sempre quis ter o meu próprio trabalho e ser independente. Foi aí que tomei a iniciativa de me candidatar ao Centro Social Maria Auxiliadora de Mogofores, porque sempre gostei muito de crianças, e consegui ficar. Estou a trabalhar há um ano e para mim é uma grande conquista. As pessoas aqui aceitaram-me e acolheram-me muito bem, só tenho a agradecer às minhas colegas e à minha diretora.
Até conseguir este trabalho, sentiu que a diferença ainda não é totalmente aceite na nossa sociedade?
Não, sobretudo no setor profissional. Tenho a perfeita noção que não seria aceite em muitos trabalhos devido às minhas condicionantes. Não somos todos iguais e é frustrante perceber que, por vezes, se não encaixamos num padrão, então não somos vistos de igual forma. É triste que assim seja. Por isso é que tenho perfeita noção que, desde que comecei a trabalhar, sou outra pessoa. Passo os meus dias acompanhada, sinto que tenho valor e que me valorizam. Sinto-me útil e isso é incrível.