Hoje celebram-se cem anos do nascimento de Natália Correia. A jornalista Filipa Martins dedicou 6 anos à tarefa gigante de traçar o retrato de uma das maiores divas portuguesas: em ‘O dever de deslumbrar – biografia de Natália Correia’ (Contraponto, €24,90), conta-nos muito sobre uma das mulheres que mais pensaram sobre Portugal.
O que a surpreendeu mais na sua biografada?
A precocidade do seu pensamento, a sua irreverência, a sua coragem em todos os momentos da História do país. Depois, a forma como pensou o papel da mulher de maneira tão séria, tão coerente e tão precoce. Se ela tivesse nascido lá fora, era uma referência mundial.
Era uma diva?
Sim, tinha toda uma autoencenação, a voz, a pose operática, a boquilha. A Isabel Meyrelles diz que ela era capaz de fazer charme com uma parede. Era muito sedutora, muito inteligente e tinha muito sentido de humor. Foi autodidata, nunca se adaptou à ‘fábrica de fadas do lar’ em que o regime tornou a escola pública para as mulheres. Nunca se afirmou uma feminista tradicional, achava que isso herdava os vícios masculinos, mas foi educada por uma mãe cultíssima e libertária, e ter sido abandonada pelo pai deu-lhe uma enorme carência afetiva. Portanto, ao mesmo tempo que mostrava toda aquela força, era uma mulher imensamente dependente, precisava de ser o centro das atenções. Mas não queria ter filhos, o que na altura era mais uma excentricidade.
Contradição absoluta com o que o país era…
Era uma mulher maior que o país. Claro que depois foi vítima disso, numa altura em que a sociedade estava contaminada pelo vírus pidesco de controlar a vida do vizinho, e então uma mulher que tinha um salão literário, que recebia até altas horas numa casa onde desfilavam cloches de comida do hotel vizinho, não seria fácil de entender. O que consta nos relatórios da PIDE eram ‘bacanais’. Não seriam, porque a Natália tinha ilhas de conservadorismo muito interessantes. Por exemplo, valorizava o casamento, sempre fez questão de casar, o que estaria ligado aos parâmetros morais da mãe. A Natália teve pelo menos uma relação homossexual comprovada, mas ao mesmo tempo escrevia que achava uma aberração duas mulheres dançarem juntas.
Também na política ela era difícil de encaixar: era acima de tudo coerente com ela própria?
Sem dúvida. Dizia que o único partido dela era a liberdade. Vista de fora, as pessoas descrevem-na como um catavento porque não a percebem, mas ao estudar a época percebemos as ventanias que varriam na altura o país, e eram as coisas que muitas vezes mudavam, não ela. Até hoje, quando se fala nela, ainda há pessoas, quer à direita quer à esquerda, que ficam tensas.
Que é que diria Natália sobre o mundo de hoje?
Provavelmente odiaria, por duas razões: foi muito crítica da adesão de Portugal à CEE, porque achava que o projeto europeu era um ‘acordo de merceeiros’, um projeto económico em vez de cultural. E vaticinou já nessa altura o ressurgimento da extrema direita e dos discursos xenófobos. Essa capacidade premonitória foi uma das coisas que mais me surpreendeu.
A Filipa tinha 10 anos quando a Natália morreu.Que memórias tem dela?
Lembro-me dela no Parlamento. Uma das coisas que mais me disseram quando comecei as entrevistas, é que tinham imenso medo dela antes de a conhecerem, porque ela era absolutamente implacável e imprevisível. Chamou a Cicciolina ao Parlamento e meses depois não ligou nenhuma à princesa Diana. Quando a princesa chega, a única pessoa que pediu para conhecer foi a Natália. Aproxima-se dela e esta diz-lhe: ‘Então vamos lá comer’. Tinha o seu próprio código de conduta, e percebendo-o, percebemos as suas incoerências.