O que se aprende com uma criança atípica?
Tenho três filhos, o Diogo, 21 anos, o Vasco, de 14, e a Francisca, de 4. Quando o Vasco tinha 7 meses foi-lhe diagosticada uma leucodistrofia (uma doença genética que tem como resultado final a destruição da mielina que protege os nervos). Ninguém está preparado para uma notícia destas. E a primeira coisa que aprendemos com uma criança atípica é que tudo demora muito tempo. É tudo devagar e achamos sempre que podiamos ter feito melhor, diferente, de outra maneira. Somos invadidos por milhares de opiniões, muitas vezes contraditórias e estamos sempre em dúvida.
Como lidou com uma notícia tão dura?
Perceber que a deficiência não tem cura é um passo duríssimo e não se tem espaço mental para nada. Por acaso eu nunca deixei de trabalhar até ter a Francisca, porque confiava nas pessoas a quem ele estava entregue e tenho uma boa rede familiar. Mas nem todas as famílias têm essa sorte. Quando engravidei da Francisca, estava muito cansada porque o Vasco estava internado com uma meningite. Mas quando me disseram que ela tinha trissomia 21, isso para mim nãofiz qualquer diferença, porque eu queria esta criança. Quando ela nasceu, foi mais fácil porque já tinha um diagnóstico e eu já estava preparada.
Nisto tudo, como é que ficava o seu filho mais velho?
Quando nasceu o Vasco, nem me lembro do Diogo. Foram 3 anos em que vivi fora do mundo, completamente dedicada àquela criança. Nessas alturas, é o pai que acaba por se ocupar do filho mais velho. Quando engravidei da Francisca toda a gente achava que eu devia fazer uma IVG e ele foi contra. Disse-me que me apoiaria em tudo o que eu precisasse. Aliás, ele é como um segundo pai para os irmãos, adoram-se os três.
O que é a ‘Atípicas’?
Criei a ‘Atípicas’ não para ser uma associação de doentes, mas uma associação de famílias, onde acolhemos as mães de crianças com qualquer deficiência, seja diabetes tipo 1 seja um caso de multi-deficiência. Quando nasceu a Francisca e eu decidi finalmente parar, decidi começar um percurso de autocuidado e tratar de mim. Quando nasce uma criança atípica, a vida da mãe muda radicalmente. Há muitas mães com cancros e doenças mentais, algumas suicidam-se mesmo, uma coisa de que raramente se fala. A maior parte das mães destas crianças passam a vida à procura de um tratamento novo para os filhos. Anulam-se, a taxa de divórcios é altíssima, afastam-se das famílias, as carreiras acabam, deixam de ter vida. Isto é violentíssimo.
Como começou o projeto?
Eu tinha um grupo de mães com quem me identificava e falávamos muito de autocuidado. A minha mãe e a minha avó sempre me habituaram a arranjar-me e pintar-me antes de sair de casa, porque isos me ajudava a atravessar o dia. Por isso, apesar de ser farmacêutica tirei o curso de consultoria de imagem achando que podia ser uma ferramenta útil. E o projeto começou por aí. Ajudava-as a tratar da roupa e da pele e da imagem. Depois fizemos um primeiro evento só para mães atípicas, umas horas sem filhos em que elas eram só cuidadas. Correu tão bem que percebemos que as mães precisavam mesmo deste tipo de coisa. Porque toda as associações que existiam estavam viradas para as crianças, para as suas terapias e curas e necessidades. Quem pensava nas mães? Ninguém. E nem elas se apercebem disto, porque o foco é sempre a criança. Portanto começámos a montar a associação em torno da ideia do autocuidado.
Cada mãe tem de ser a sua prioridade?
Sempre disse que os meus filhos eram a minha prioridade mas neste momento a minha prioridade sou eu. E de facto para tratar bem de um filho, a mãe tem de se pôr a si própria em primeiro lugar. Muitas mães vivem em revolta, mas nós não conseguimos mudar o mundo em revolta. Portanto, muito do nosso trabalho na ‘Atípicas’ passa por capacitar e valorizar as mães para que elas próprias sejam agentes de mudança.
Onde começa a inclusão?
A inclusão começa na família. Quando temos a inclusão no nosso coração, é fácil a sociedade incluir os nossos filhos. Por isso, aqui tentamos trabalhar as famílias, porque a sociedade vai-nos acompanhar, mais dia menos dia. É verdade que falta muita coisa, mas temos de estar bem connosco próprias para adotar uma estratégia que funcione.
O que é mais urgente mudar?
Estamos num país sem acessíbilidades porque as pessoas até há pouco tempo tinham vergonha destas crianças e não as mostravam. Ora não as mostrando elas eram invisíveis e a sociedade não se preparava para as suas necessidades. Por isso é que eu alerto para a necessidade de mostrar as nossas famílias, mostrar as nossas crianças, mostrar aquilo que precisamos que mude. Porque isto faz com que as pessoas normalizem a diferença. O trabalho da inclusão é óbvio para as famílias com estas crianças mas não para as outras famílias.