Já foi insultada, visada e perseguida por grupos de extrema-direita, por ter escrito… um livro infantil. Resistindo ao medo e ao susto, a autora de livros como ‘Caracois com cores’ ou ‘O Pedro gosta do Afonso’ continua a achar que é importante falar daquilo que preocupa os mais novos.

Antes de mais, a pergunta da praxe: qual é o livro da sua vida?

Sendo que isso é sempre uma pergunta impossível de responder, eu escolheria a ‘Antologia poética’ de Vinícius de Moraes. Acho que a primeira vez que encontrei a sua poesia foi através da música, e quando li os poemas dele apaixonei-me. Tenho imensa pena de nunca ter tomado um café com ele (risos). Acho que é o poeta da vida, há nele uma simplicidade apenas aparente, tudo parece leve, até porque nos habituámos a ouvi-lo cantado, mas toca em coisas essenciais como o amor.

É muito raro indicarem-me um livro de poesia…

A minha base será sempre a poesia, porque é a base de tudo. É a poesia que nos leva sempre a outras coisas, que nos traz as imagens para além das palavras. Encanta-me particularmente quando se consegue com pouco dizer muito, esta limpeza da poesia que existe por exemplo no Vinicius ou na Adília Lopes. A simplicidade é das coisas mais difíceis que existem. E gosto deste livro também porque pode ser lido muitas vezes, podemos abri-lo em qualquer página e ele terá sempre qualquer coisa para nos dizer. E continua muito atual, como o poema ‘Porque hoje é sábado’, este olhar que desnuda e que continua tão verdadeiro. E gosto muito desta antologia porque reúne tudo o que eu gosto de ler no Vinícius, sem esquecer o lado infanto-juvenil.

A propósito, como é que chegou à literatura para crianças?

Durante a pandemia vi-me com dois bebés em casa, naquela fase em que ninguém sabia o que ia acontecer. Por acaso nunca fiz pão (risos) mas para me salvar comecei a fazer o relato dos dias e das emoções. E no final do primeiro ano tive um tio que faleceu com cancro, o que também teve muito impacto em mim. Decidi então começar a escrever. Pensei, ‘se me acontecer alguma coisa, pelo menos as minhas filhas vão ficar com alguma coisa’. Então comecei o ‘Caracóis com cores’, um livro sobre as emoções de uma criança de 4 anos. A minha filha Laura morria de ciúmes da mais pequenina, e eu trabalhei sobre isso.

Mas isso começou como uma coisa privada…

Sim, fiz 50 livros para oferecer à família e amigos e nunca imaginei que a D. Quixote pegasse naquilo, um ano depois.

Raramente falamos daquilo que realmente importa com os miúdos: as emoções, a morte…

Na verdade eu não me vejo nada como ativista nem como autora de livros de causas, mas os meus livros tocam em coisas que me tocam a mim. São aqueles atropelos da vida que nos apanham. Eu na altura estava a sentir as emoções das minhas filhas como uma lupa, e portanto resolvi falar da culpa e da vergonha porque são aquelas de que mais raramente falamos. Quando falo disto nas escolas, todos os miúdos se identificam, todos já tiveram pais a ralharem com eles de manhã porque entornaram o leite ou se atrasaram a calçar-se. E são duas emoções comuns a miúdos e adultos. Mas nunca sonhei ser autora.

Quer falar do que lhe aconteceu recentemente?

O mais deprimente é que continua. Estamos a normalizar a violência. Sou uma pessoa informada e é óbvio que sabia que havia movimentos mundiais radicais. Quando escrevi ‘O Pedro gosta do Afonso’ a minha intenção não era ser uma bandeira LGBTQIA+, mas sabia que era um tema que era importante ser falado. Fui a um jantar com amigos em que havia um miúdo adolescente. Falámos do início do ano letivo e de várias dificuldades, e quando me levantei da mesa, fiz-lhe uma festa e disse-lhe ‘é difícil crescer’. Ele tinha lágrimas nos olhos e eu percebi que tinha tocado num tema sensível. Fui para o escritório com ele e falámos um bocadinho sobre a vida, sobre o que é ter 13 anos e todas as transformações que acontecem. Ele chorava imenso e acabou por me confessar que tinha pensado em matar-se. Dei-lhe um abraço, garanti que os pais estavam ali para ajudar e falei com a mãe dele, e agora o miúdo está ótimo. Só precisou de saber que havia pessoas à volta para ajudar e que a família gostaria sempre dele, mesmo que ele fosse ‘diferente’ dos outros meninos. E quando eu percebi que isto acontecia numa família fantástica como a que ele tinha, fiquei a pensar na quantidade de adolescentes que passam por aquilo em silêncio e em solidão.

Foi aí que decidiu escrever sobre isso?

Sim. Na verdade, a história é uma ‘seca’ (risos) porque não se passa nada de sexual. A ideia era falar sobre bullying e sobre a dificuldade de crescer em certos meios antagónicos, mas deixar a história nesta área de sensibilidade em que ainda não se passa nada. Este livro é apenas sobre liberdade e amor. A liberdade de sermos quem quisermos. Recolhi imensos depoimentos de outros miúdos, mas nunca pensei que isto se transformasse num alvo tão sério.

Essa perseguição assustou-a?

Quando estas perseguições começaram, eram ‘apenas’ ataques digitais. Quando me disseram que o lançamento do livro ia ser feito à porta fechada e com seguranças, aí assustei-me a sério. Portanto, a meia dúzia de pessoas que apareceram à porta a chamar-me pedófila e homossexual, eu não os vi. E houve pessoas que me disseram ‘foi uma boa publicidade’ como se isso pagasse tudo o que aconteceu e continua a acontecer. Continuo a receber vídeos de pessoas que me dizem ‘nunca mais vais apresentar nenhum livro’ e outras coisas. Claro que fiz queixa à polícia e vou adicionando tudo isto, mas é tudo um processo muito demorado. Por exemplo para mim a Feira do Livro foi muito violenta, senti-me muito exposta, apesar de ter tido imediatamente uma corrente solidária de editores e autores. Tive medo, sim, porque eu tenho muito a perder. A minha filha mais velha tinha pesadelos constantes, sonhava que me batiam.

Sentiu-se apoiada ou abandonada?

Na primeira semanda depois da feira do livro fui contactada pela ILGA. Disseram-me ‘A Mariana é tão vítima como outra pessoa’. E foi a primeira vez em que me dei conta que era de facto uma vítima. Como me considero uma pessoa privilegiada, nunca pensei em mim própria como uma vítima. E senti-me acolhida. Porque eu estava de facto a sentir-me sozinha. Claro que a minha situação era no fundo coletiva – a liberdade de expressão é património de todos – mas a vítima está sempre num lugar de solidão. Por isso é que é importante falar sibre isto. Em Portugal, estes ataques são feitos à literatura infantil e a autoras, não autores. E depois da mediatização da FNAC, houve um apoio público, que foi importante porque me protegeu. Mas sabe o que mais me chocou? Foi a quantidade de pessoas ao meu lado que ficaram silenciosas. Isto doeu muito. A falta de posicionamento é triste.

É importante que quem passa por isto não se sinta só, não é?

É especialmente importante sentir o apoio de quem nos rodeia. Houve figuras públicas que me contactaram e apoiaram pessoalmente sem me conhecerem de lado nenhum. E houve pessoas íntimas que não me disseram nada. Isto chocou-me. Se as pessoas dizem que me apoiam mas depois o meu ‘exército’ não é visível, não dá a cara, é como se não existisse.

Há direitos que ainda não estão garantidos?

Pois não. Em encontros de autores organizados pela Leya já tive duas crianças que não foram autorizadas pelos pais a comparecer porque eu era a autora do ‘Pedro gosta do Afonso’… É muito bonito celebrarmos as conquistas do 25 de Abril, mas o mais importante é lutarmos por elas. Outra coisa que me incomoda é que as pessoas misturam tudo. Há quem diga que eu me dirijo ao público pré-escolar, como se as crianças aos 3 anos já soubessem ler. Recebo centenas de mensagens de ódio a dizer-me que devia morrer queimada em Gaza… Isto é inacreditável. O Ricardo Araújo Pereira até disse ‘parece que as crianças agora andam loucas a ler’ (risos). Tudo isto adquiriu proporções absurdas. Portanto, dei-me conta de que há muito a fazer.

Ou seja, na verdade ao fim destes anos todos o livro continua a ser uma arma…

Sem dúvida. Mas é estranho, porque se eu escrever o que quiser, não há problema. Não posso é publicar. Uma coisa que me salvou nisto tudo foi um livro que fiz pro-bono a favor da ala oncológica do Hospital de S. João, sobre cancro pediátrico. Fez-me relativizar e privilegiar muita coisa na minha vida.

Palavras-chave

Relacionados

Mais no portal

Mais Notícias

Quis Saber Quem Sou: Será que

Quis Saber Quem Sou: Será que "ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais?"

Quem tinha mais poderes antes do 25 de Abril: o Presidente da República ou o Presidente do Conselho?

Quem tinha mais poderes antes do 25 de Abril: o Presidente da República ou o Presidente do Conselho?

INDOMÁVEIS 3: COMO INIMIGOS SE TORNAM AMIGOS

INDOMÁVEIS 3: COMO INIMIGOS SE TORNAM AMIGOS

Pedro Mexia:

Pedro Mexia: "A memória não é totalmente confiável. E isso é uma dimensão que me interessa muito"

Desejo de comer doces? A culpa pode ser um gene

Desejo de comer doces? A culpa pode ser um gene

A VISÃO Se7e desta semana - edição 1655

A VISÃO Se7e desta semana - edição 1655

Prosolia Energy faz parceria com fundo de capitais francês para aumentar a sua expansão nas renováveis

Prosolia Energy faz parceria com fundo de capitais francês para aumentar a sua expansão nas renováveis

Donald Trump é o novo presidente dos Estados Unidos da América

Donald Trump é o novo presidente dos Estados Unidos da América

Afinal, a luz azul dos telemóveis influencia o tempo que levamos a adormecer ou não?

Afinal, a luz azul dos telemóveis influencia o tempo que levamos a adormecer ou não?

Palacete Severo: O novo boutique hotel do Porto junta arte e gastronomia

Palacete Severo: O novo boutique hotel do Porto junta arte e gastronomia

Estas são as melhores aplicações e os jogos de 2024 para Android

Estas são as melhores aplicações e os jogos de 2024 para Android

Família Ribeiro Telles de luto: momentos de emoção no funeral do bebé Vicente

Família Ribeiro Telles de luto: momentos de emoção no funeral do bebé Vicente

Ana Patrícia Carvalho e namorado felizes em nova viagem romântica

Ana Patrícia Carvalho e namorado felizes em nova viagem romântica

Maria Botelho Moniz e Pedro Bianchi Prata celebram 1 ano de Vicente

Maria Botelho Moniz e Pedro Bianchi Prata celebram 1 ano de Vicente

Kate resgata joias da princesa Diana e de Isabel II para o Dia do Armistício

Kate resgata joias da princesa Diana e de Isabel II para o Dia do Armistício

Uma looonga soneca

Uma looonga soneca

Arnaldo Antunes:

Arnaldo Antunes: "Na poesia parece que a palavra cria uma opacidade, coisifica o que está apontando"

Vinhos: Quem tudo quer…

Vinhos: Quem tudo quer…

Salgueiro Maia, o herói a contragosto

Salgueiro Maia, o herói a contragosto

Podcast Tech Flow: O que é a cibersegurança quântica e porque precisamos dela (já hoje)

Podcast Tech Flow: O que é a cibersegurança quântica e porque precisamos dela (já hoje)

Carlos Silva e Sancho Ramalho vencem Campeonato de Portugal de Novas Energias – PRIO

Carlos Silva e Sancho Ramalho vencem Campeonato de Portugal de Novas Energias – PRIO

Flávia explica reação a beijo de Rúben e ex-noiva

Flávia explica reação a beijo de Rúben e ex-noiva

Paredes ilustradas: 10 papéis de parede panorâmicos

Paredes ilustradas: 10 papéis de parede panorâmicos

Anilton Cabral: “Tento ser uma pessoa íntegra no competitivo mercado da moda”

Anilton Cabral: “Tento ser uma pessoa íntegra no competitivo mercado da moda”

Em Paris, um pequeno apartamento de 60m2 dominado pela cor

Em Paris, um pequeno apartamento de 60m2 dominado pela cor

Concurso para a guarda prisional teve

Concurso para a guarda prisional teve "apenas" 403 candidatos. "É muito preocupante", alerta sindicato

Guia de essenciais de viagem para a sua pele

Guia de essenciais de viagem para a sua pele

Decifrado o mecanismo responsável pelo efeito ioiô que atormenta quem faz dieta

Decifrado o mecanismo responsável pelo efeito ioiô que atormenta quem faz dieta

Leitão & Irmão: “Nunca vivemos do poder, mas sim do consumidor”

Leitão & Irmão: “Nunca vivemos do poder, mas sim do consumidor”

E-Rally Alentejo Central: as melhores imagens da equipa PRIO - Exame Informática - Peugeot

E-Rally Alentejo Central: as melhores imagens da equipa PRIO - Exame Informática - Peugeot

Os benefícios para a saúde do dióspiro

Os benefícios para a saúde do dióspiro

China cria a maior fábrica de hipergravidade do mundo

China cria a maior fábrica de hipergravidade do mundo

Lavra, Porto: uma casa com liberdade total

Lavra, Porto: uma casa com liberdade total

BYD Sealion 7: a verdadeira versão SUV do Seal

BYD Sealion 7: a verdadeira versão SUV do Seal

El Capitan é o supercomputador mais poderoso do mundo

El Capitan é o supercomputador mais poderoso do mundo

Halle Berry desfila para Elie Saab com o vestido que usou nos Óscares de 2002

Halle Berry desfila para Elie Saab com o vestido que usou nos Óscares de 2002

Dados de robô

Dados de robô "perdido" no oceano Antártico revelam novas perspetivas sobre o degelo

Fosso salarial continua a agravar-se: a partir de hoje, as mulheres em Portugal estão a trabalhar de graça

Fosso salarial continua a agravar-se: a partir de hoje, as mulheres em Portugal estão a trabalhar de graça

Individuais de Suter e McCall no MAAT

Individuais de Suter e McCall no MAAT

Família real do Mónaco reúne-se para as comemorações do Dia Nacional

Família real do Mónaco reúne-se para as comemorações do Dia Nacional

Como proteger as praias? Com ciência e natureza

Como proteger as praias? Com ciência e natureza

Elenco reúne-se na apresentação da nova novela da TVI,

Elenco reúne-se na apresentação da nova novela da TVI, "A Fazenda"

VISÃO Se7e: Tempos de queijo e vinho

VISÃO Se7e: Tempos de queijo e vinho

Um viva aos curiosos! David Fonseca na capa da PRIMA

Um viva aos curiosos! David Fonseca na capa da PRIMA

De Zeca Afonso a Adriano Correia de Oliveira. O papel da música de intervenção na revolução de 1974

De Zeca Afonso a Adriano Correia de Oliveira. O papel da música de intervenção na revolução de 1974

Parceria TIN/Público

A Trust in News e o Público estabeleceram uma parceria para partilha de conteúdos informativos nos respetivos sites