A família em Portugal é intocável, afirma. Esta frase, principalmente por alturas do Natal em que se afirma a santidade da união familiar, é tão verdadeira quanto dura.
Como devem calcular, já li muitos, mesmo muitíssimos, livros de psicologia. Já entrevistei muitíssimas pessoas a propósito de tudo e mais alguma coisa. Mas poucas pessoas me fizeram dar um salto tão grande à custa de apenas duas frases. A Mariana Caldeira foi uma delas. As duas frases que me puseram em estado de choque foram (estão preparadas?) 1 – Não é preciso perdoar e 2 – Os filhos não têm qualquer responsabilidade de cuidar dos pais.
Há muito mais material psicologicamente revolucionário no livro ‘Tudo o que se passa aqui dentro: como curar feridas emocionais e reconstruir relações em famílias tóxicas.” Psicóloga clínica, Mariana Caldeira decidiu escrevê-lo quando percebeu que o peso da família nos impedia muitas vezes de ter uma vida emocionalmente saudável. E há, como podem calcular, pano para mangas.
Tóxico é uma palavra que estamos mais habituadas a ver ligada a relações amorosas. De maridos e namorados tóxicos já toda a gente ouviu falar. De famílias tóxicas, é menos comum ouvir falar. Mas, se pensarmos bem, diríamos que é até mais comum do que uma relação amorosa que não nos faz bem. Pense lá: mesmo que tenha tido um pai ou mãe impecáveis, quantos dos seus amigos podem dizer a mesma coisa? E se lhe calhou a si a pouca sorte de ter um pai ou mãe que lhe fazem ou fizeram a vida negra, sabe o tormento que pode ser.
Problema: é tabu. Não se pode falar nisso. Em Portugal, todos os pais e ainda mais todas as mães são muito bonzinhos. E mesmo quando não são, “é tua mãe. Tens de ter paciência”. Ou: “mãe há só uma”. Ou: “a família é o melhor que temos na vida.”
E quando não é? Numa altura em que se fala tanto de família, fomos falar com uma mulher que, corajosamente, anda a destruir tantos mitos.
É a irmã mais velha de 5. Não ficou farta de famílias?
(risos) Sendo psicóloga não há forma de fugir às famílias, porque estão na nossa base. Mas acredito que temos de trabalhar a nossa base para percebermos as nossas dificuldades. Durante a minha profissão, fui-me apercebendo que voltamos sempre à nossa família e à nossa infância para sabermos quem somos, não há mesmo forma de escapar a isso.
Em Portugal a família ainda é intocável. Ter uma má relação com pais ou mães ainda é tabu?
Completamente. Estamos tão habituados a ver a família como intocável, sagrada e a coisa mais importante que temos na vida que nos esquecemos que isso não é verdade para muita gente. Os nossos pais são a nossa figura de referência e tudo aquilo que nos passam nos marca desde a infância. Mas nós não estamos necessariamente reféns de uma infância infeliz, para isso é que existe a psicoterapia. Quando ganhamos consciência daquilo que sentimos, das defesas que encontrámos para nos proteger, dos gatilhos que ainda existem dentro de nós, dos pesos e das mágoas que carregamos, tudo isto nos vai ajudar a viver de forma muito mais leve.
De certeza que na sua consulta tem pessoas que entram a dizer ‘a minha infância foi muito feliz’ e depois descobre-se que não…
Isso acontece muito. A maioria das pessoas tem um mecanismo de defesa muito interessante e muito útil que é o recalcamento. O nosso cérebro protege-nos de memórias demasiado sofridas. Obviamente que há pessoas que se lembram das coisas más que lhes aconteceram, mas grande parte nega-as. Então o processo de terapia também serve para trazer estas memórias à consciência. E não é que nessa infância não tenha havido memórias felizes, mas de certeza que passámos por situações negativas e é importante recordá-las.
Mas aceitar isso de ceretza que não é fácil…
Não é nada fácil, por isso é que os processos terapêuticos demoram. Até porque temos outro mecanismo de defesa, a idealização, que pega nessas memórias e as transforma. Idealizamos situações e pessoas, e retirá-las desse pedestal percebendo que estas pessoas nos magoaram, é extremamente difícil. Acontece muitas vezes que as pessoas fogem de se confrontarem com estas realidades, porque isso implica um luto em vida. O luto da nossa infância idílica, o luto das pessoas intocáveis que afinal os nossos pais nunca foram, e fazer o luto de pessoas vivas é muito difíceis.
E depois o que é que fazemos com ídolos destruídos?
Para os destruirmos precisamos de o fazer de forma acompanhada, porque é muito perigoso ficarmos sem estas bases sem nada a que nos agarrarmos. Ok, percebemos o que aconteceu, e depois? Temos de aprender a viver com este vazio.
Para que serve olhar para dentro?
A verdade é hipnótica. E a partir do momento em que começamos a olhar para dentro, já não há volta atrás. Quando começamos a ter consciência das coisas, é difícil esquecer. Nós vamos percebendo que há pessoas que não nos fazem bem, e essa solidão inicial serve para nos levar a um lugar melhor. Mas não é um processo fácil, e deve ser acompanhado.
Mas crescer numa família tóxica também um caminho solitário…
Muito. E há alturas em que nos apercebemos que temos muitas pessoas à nossa volta mas estamos sozinhas. Quando percebemos que há pessoas que não nos acrescentam e nos fazem sofrer, perguntamos: para quê? Mas lá está, os tabus sociais são muito pesados. E eu própria já estive nesse lugar. Lembro-me de falar com uma amiga que se queixava da mãe, e eu respondia ‘ai mas ela é tua mãe, tens de ter paciência’. É a resposta socialmente aceite, que nos foi inculcada desde que nascemos. Problema: não é verdade e não ajuda ninguém. A pessoa que está nesse lugar acha que aquilo que está a sentir não é válido. Ora tudo o que nós sentimos é válido.
Mas qual é a diferença entre uma infância infeliz e uma infância que, não sendo perfeita, não nos traumatizou? Como é que eu sei se a minha família é mesmo tóxica ou normalmente imperfeita?
Boa pergunta. Muitas vezes o que acontece na idade adulta é que somos confrontadas com famílias de outras pessoas que funcionam de maneira diferente da nossa, e começamos a pôr-nos certas perguntas. Infelizmente a maioria das pessoas só procura ajuda quando está numa situação limite, mas a maioria, quando cresce, começa a perceber que há ou houve qualquer coisa de errado na sua família. O que eu diria é, se estar com uma pessoa lhe causa angústia, ansiedade, mal-estar, se sente que não consegue ser quem é ao pé dela, se vê os seus limites constantemente desrespeitados, aquela pessoa até pode não ser tóxica em si, mas essa relação é tóxica. O problema é que essa dinâmica é-nos tão familiar que muitas vezes não estranhamos. Só quando somos confrontadas com outra realidade é que percebemos que outras pessoas não têm esse tipo de dinâmica familiar. E mesmo assim, muitas vezes entramos em negação.
Percebemos o que acontece mas temos dificuldade em aceitá-lo e ainda mais em falar nisso, certo?
Sim. Só não se fala mais nisso, lá está, por ser tabu. A sociedade é muito crítica das pessoas que deixam de se dar com a família. Não temos empatia suficiente para nos colocarmos no lugar do filho. Difícil é viver com esse peso que a pessoa carrega. Não ter a mãe ou o pai que se desejaria, isso é que é difícil. Mas continuamos muito pouco empáticos. Recebo muitas pessoas em consulta e muitas mensagens nas redes sociais de pessoas que me dizem que pela primeira vez perceberam que elas não estavam erradas. Não era errado ter pensamentos negativos em relação ao pai ou à mãe, não era errado incusivamente ter pensamentos como desejar a morte de um ou outro. Se uma pessoa nos fez tanto mal, físico ou psicológico, é preciso falar nisso até para abrir portas a que outros também o façam. Porque ninguém deveria carregar este peso sozinha. Não está nada de errado com a pessoa, mas com a dinâmica da relação.
E então, o que é que se faz?
Não sou apologista do corte de relações, mas de facto às vezes as pessoas chegam a um ponto em que já esgotaram todas as estratégias e ferramentas, e um afastamento é o único recurso que resta. Sentir o julgamento alheio, sentir as vozes que acusam ‘tu abandonaste a tua família’, é muito duro. Por isso é que eu digo que os filhos não têm qualquer responsabilidade de cuidar dos pais.
Essa frase é absolutamente libertadora…
Infelizmente até a nível jurídico existe uma obrigação dos fihos para com os pais. Mas na verdade, os pais são efetivamente os responsáveis por terem os filhos. Claro que quem teve um bom pai ou mãe, vai querer devolver o cuidado e o carinho, porque se sente grata, porque faz questão de ajudar. Mas nenhum filho tem essa obrigação. Se eu tiver pais que me maltrataram de alguma maneira toda a vida, que obrigação tenho eu de os apoiar? Não se pode colocar um filho em posição de dívida, e fazê-lo é muito injusto. Ouço histórias inacreditáveis.
Como por exemplo?
Há crianças e adolescentes que ficavam trancadas num quarto escuro sem comida porque tinham tirado uma má nota na escola, que não queriam comer e eram mantidas à mesa 3 dias seguidos, que eram espancadas com sapatos de salto alto e com chicotes, isto é bárbaro! Claro que há coisas mais leves, mas que não deixam de ser agressivas. E vamos exigir a estas pessoas que se preocupem com os seus agressores? Que tratem de pessoas que lhes falharam enquanto estavam a crescer? E como existe esta cobrança social, os filhos ainda por cima sentem-se culpados!
Também defende que o perdão pode ser importante mas não é imprescindível. Isto é o contrário do que muitos psicólogos aconselham aos seus pacientes. Que é feito dos benefícios do perdão?
Nós ainda vivemos numa sociedade muito religiosa onde o perdão tem um peso enorme. Nós crescemos com esta ideia de perdão mas não é preciso perdoar. Muitas pessoas me dizem ‘não consigo perdoar, devo ser má pessoa’. Ora é absolutamente compreensível não conseguir perdoar alguém que me magoou de forma indescritível. É humano e eu não preciso de o fazer para me libertar desse peso. Aliás, muitas vezes o processo tem de ser o inverso: eu tenho de conseguir perdoar-me a mim por não conseguir perdoar-lhes. Mas há um esforço absolutamente coletivo, geral e social, para continuar a unir as famílias, e isto só está a gerar mais sofrimento nas pessoas, que não só não se sentem ouvidas como se sentem julgadas e culpabilizadas.
O que sentimos é sempre válido?
Sempre. Se estou perante um paciente que sente uma raiva gigante por outra pessoa, eu não posso dizer-lhe que ele está errado. Avalio se aquilo que me está a dizer constitui um risco para ele ou para alguém, e é a única exceção ao código deontológico de segredo profissional. Mas o que nós sentimos é sempre válido. As emoções não são certas nem erradas.
Muitas filhas têm relações péssimas com as mães. Como é que se lida com uma mãe controladora?
Há três coisas essenciais: cuidar das feridas, colocar limites e aceitar que aquela pessoa não vai mudar. Muitas pessoas têm dificuldade em colocar limites e isso tem de ser feito, mas tudo isto tem de ser trabalhado para chegar à autoconfiança, e se necessário apresentar consequências no caso desses limites não serem respeitados. Pode ser preciso um afastamento, mas essa é a decisão mais difícil que podemos tomar na vida, porque deixar de poder contar com pai ou mãe cria um vazio muito grande.
Estivemos até aqui a pôr-nos no lugar dos filhos. Mas, e quando somos nós os pais tóxicos?
Boa pergunta. Muitas vezes, quando crescemos com relações tóxicas, nós próprios ficamos intoxicados. E nem sempre o reconhecemos, nem temos sequer essa consciência. Todos nós vivemos com uns óculos imaginários que nos protegem. Quem faz terapia tira esses óculos e começa a ter consciência de que há comportamentos tóxicos que se repetem porque estamos inconscientemente a replicar o que fizeram connosco. Claro que isto é muito difícil de aceitar e de fazer sozinho. Ver-se como uma mãe tóxica é avassalador.
E claro que nos defendemos, não é…
Sim, basta pensar na quantidade de pessoas que dizem coisas como ‘eu levei tareias do meu pai mas isso até me tornou mais forte’. Nós continuamos a normalizar a violência. Mas claro que é mais fácil validar esse comportamento do que aceitar que era negativo e que deixou marcas. Lá, está é uma forma de proteção.
Em Portugal, comparando com outros países, como estamos de famílias tóxicas?
Ainda há muito poucos estudos em relação a isso. O que eu vou percebendo é que a nossa cultura coloca muito a família num pedestal. Há muitos países, como os nórdicos, onde a família não tem um peso tão grande e onde é muito mais fácil falar destes assuntos. Por exemplo, lá o natal é passado com amigos e não com familiares. Em Portugal, quando não se passa o natal com a família, cai o Carmo e a Trindade. Aliás, o natal é a época mais complicada para estas pessoas: quem não for passá-lo com a família, é a ovelha negra e sente-se muito culpado. E portanto, existe pouca abertura para abordar estas questões.
Dê-me um conselho para não sermos pais tóxicos
A recomendação que eu faço sempre é, temos de ter coragem para quebrar o ciclo. E para isso é preciso olhar para dentro e ter consciência daquilo que fizeram connosco, para não o repetirmos inconscientemente com os nossos filhos. Mas acho que a nossa geração veio abanar todos estes alicerces em tudo. Não podemos ter medo de falar, porque é falando que se muda o mundo.