A especialização em Pneumologia levou Tiago Sá a constatar que eram muitos os pacientes com distúrbios primários de sono que chegavam ao seu consultório. Dedicou-se então ao estudo da medicina do sono. Já com essa especialidade, acabou por fundar a SleepLab, uma clínica que junta uma equipa multidisciplinar para oferecer a melhor solução a cada doente. Este ano, deu mais um passo no sentido de ajudar a criar uma melhor ‘literacia’ do sono, ao escrever o livro ‘Acabe Com As Noites em Branco’, onde explica, com linguagem acessível, mas base científica, como funciona o nosso sono, a importância que desempenha na nossa saúde, os principais problemas que nos impedem de dormir bem e de forma reparadora e dando-nos 25 dicas (de ouro!) para dormirmos melhor.
Qual é a queixa mais comum que leva os pacientes consultório?
São as dificuldades em adormecer ou o facto de se ter um sono fragmentado e pouco reparador. Logo a seguir, tenho os parceiros de cama de quem tem problemas de sono, que se queixam do ressonar do outro ou do desconforto deste estar sempre a mexer-se e a levantar-se a meio da noite. Nesse caso, tenho situações em que vêm os dois, ou apenas aquele que se queixa do outro e que me diz: “Como ele não quer vir, venho eu que preciso de ajuda”. O maior problema de sono em Portugal é dormirmos menos do que devíamos e o que sucede é que a privação do sono está banalizada e instituída na sociedade.
Há dados que indicam que os portugueses dormem menos horas do que deviam?
Os dados que temos dos inquéritos e dos trabalhos de especialidade publicados mostram que os portugueses dormem menos do que o número de horas recomendadas. Os dados são semelhantes aos dos outros países ocidentais.
Os portugueses têm consciência da importância que o sono tem a nível da saúde mental e física?
Felizmente, penso que os portugueses têm vindo a adquirir uma consciência crescente, mas, ainda assim, a maioria não tem noção da importância que a falta de sono pode ter na sua vida e dos benefícios que podem retirar para o seu dia a dia se dormirem melhor e se se derem uma oportunidade de dormir mais horas.
Há estudos que indicam que problemas cardiovasculares, diabetes, hipertensão pode ser agravados quando o corpo não repousa o suficiente…
Sem dúvida, principalmente no caso dos distúrbios respiratórios de sono, como a apneia, em que os estudos indicam uma relação intrínseca com a patologia cardiovascular, hipertensão arterial, enfarte do miocárdio ou distúrbios metabólicos como a diabetes.
Qual é o processo de diagnóstico?
A entrevista clínica é fundamental. Perceber quem está desse lado, quais as suas rotinas, o que faz no dia a dia, como se relaciona com o seu sono, que oportunidades dá ao sono… E depois algumas particularidades das dificuldades em adormecer, os despertares noturnos, o que acontece nesses despertares, que sintomas estão associados, como se sente de manhã. O cerne do diagnóstico é a entrevista clínica. Depois, quando há suspeitas de existirem alterações intrínsecas do sono que podem justificar um sono fragmentado, despertares a meio da noite, um sono superficial, e pouco reparador, aí temos de ir à procura e existem alguns exames diagnósticos para fazer, nomeadamente a polissonografia que pode ser realizada em casa ou numa clínica ou hospital.
E se o doente não dorme durante a noite em que é realizado o exame?
Essa é uma preocupação muito frequente no doente, mas temos de criar um ambiente de conforto e de relaxamento em relação a isso. É importante abordar a situação de uma forma ligeira e tranquila, mais natural, explicando “vai dormir como se fosse num hotel”, lê o seu livro, descansa um pouco e, quando quiser dormir, chama-nos e damos início ao exame. Quando tentamos transformar o ambiente do registo do sono num ambiente mais semelhante ao dia a dia do doente, o processo é mais fácil. Mesmo em muitos hospitais é possível fazer este exame nestas condições.
Quais os distúrbios do sono mais comum?
São os distúrbios respiratórios do sono, e depois temos os distúrbios de movimento – movimentos periódicos dos membros, bruxismo – que acabam por ser fatores de fragmentação e disrupção. O que é importante é serem diagnosticados o mais cedo possível. É importante perceber se uma noite que se dorme mal é uma situação ocasional, ou uma situação que se prolonga no tempo – e aí devemos procurar ajuda profissional.
E quando não existindo causas fisiológicas não há forma do sono chegar?
Hoje vivemos um dia a dia a uma velocidade alucinante, com objetivos exigentes a cumprir e acabamos assoberbados por obrigações. E isso acaba por ter um efeito bola de neve, porque se chegamos à cama e temos demasiados pendentes na nossa cabeça, pensamos no que temos de fazer no dia a seguir e isso despoleta uma enorme dificuldade a dormir. Temos de criar estratégias para que a cama seja esse espaço de balanço. Temos de dedicar na nossa agenda um tempo para fazermos esse ‘balanço’ para o afastar de quando vamos para a cama que tem de ser um momento relaxado e tranquilo. Muitas vezes o distúrbio do sono é um reflexo do nosso dia a dia.
A ansiedade, o stress, o medo, dificultam o relaxamento e o início do sono. No caso da pandemia, em que houve um aumento dos pedidos de ajuda, o medo, a incerteza, o bombardeamento de informação acabou por generalizar um momento de ansiedade e stress que resultou em mais problemas de sono. A ansiedade e a depressão muitas vezes são sintomas de depressão, mas o inverso também acontece, ou seja, a insónia ser um fator despoletador de ansiedade e depressão e aí está criado um ciclo negativo que se vai autoalimentando.
No seu livro, propõe uma série de estratégias, uma espécie de ritual a adoptar antes de ir dormir…
Será muito difícil ter uma boa noite de sono quando acabamos de ter uma discussão nas redes sociais, por exemplo. Acho muito importante o ritual antes de ir dormir, mas não é menos importante o ritual do nosso dia, as horas a que nos deitamos e acordamos, a atividade física, a hidratação, a exposição solar. Não nos podemos lembrar só do sono na meia hora antes de nos deitarmos, temos de ter um dia a dia que promova um sono de qualidade, onde pesam fatores como o exercício e a alimentação. Por isso, no livro falo dos três pilares: a dieta, o exercício e o sono. Intervir nos três fatores dá um resultado mais positivo do que intervir em apenas um. Temos de criar estratégias e adotar hábitos saudáveis que possam durar – pensar nisto não como uma corrida de 100 metros, mas uma maratona. Isto não significa que não existam indivíduos com hábitos de vida saudável com dificuldade em dormir e aí temos de investigar se existe um distúrbio primário do sono.
E quanto ao recurso a fármacos?
Todos nós temos um ritmo circadiano. Grosseiramente falamos dos mochos e das cotovias, mas de facto há pessoas que têm sono mais cedo do que outras. Existem estratégias que nos ajudam a ajustar o ritmo circadiano, mas é como a cor dos nossos olhos. O que temos de pensar em sociedade é que quem tem um ‘perfil tardio’ está em desvantagem porque grande parte da sociedade funciona em horários matutinos. Isto acontece com os adolescentes – é uma característica que lhes é natural.
A grande maioria da população deve dormir sete a nove horas por dia o que não significa que existam indivíduos que possam dormir menos e não exibem os sintomas típicos de privação do sono, mas é uma percentagem muito pequena. E por exemplo, se estivermos num jantar, se calhar metade dos convivas dizem que dormem cinco horas diárias e que estão bem, mas depois queixam-se de andarem cansados, de terem dores de cabeça e que precisam de férias. Atribuem sempre a fadiga e a sonolência ao trabalho que têm. Muitas vezes banalizam-se os sintomas de privação do sono. O que é importante saber é se uma dessas pessoas, quando tem possibilidade, dorme mais horas e se não sente uma melhoria da sua condição. Se sentir, é porque está em privação de sono.
Dormem pouco as crianças portuguesas?
Se uma criança tem necessidades de sono superiores de um adulto é importante que as rotinas em casa promovam a oportunidade dela dormir mais. Se jantarmos às nove e meia da noite e a criança acordar às sete horas da manhã, isso é impossível. Nós temos hábitos muito mais tardios do que noutros países da Europa. Se queremos que as nossas crianças cresçam saudáveis, temos de orientar as nossas rotinas e obrigações para promover isso.
Não temos de ser reféns dos nossos problemas de sono?
Se formos pensar na insónia, o tratamento que apresenta os melhores resultados é a terapia cognitiva-comportamental e não a farmacológica. Muitas vezes recorre-se aos fármacos porque as pessoas desconhecem que há opções melhores. No meu livro digo que a formação em sono inclusivamente junto dos profissionais de saúde tem de ser estimulada. O ter aceite o convite para escrever este livro vem muito neste sentido: temos de aumentar a literacia do sono entre os portugueses, mas também entre os profissionais de saúde. Por outro lado, tratar um distúrbio do sono pode implicar tratar um distúrbio psiquiátrico e aí os fármacos fazem sentido e é preciso ter cautela na forma como se encara o problema. Mas sim, há prescrição excessiva de indutores de sono e sedativos, mais do que noutros países europeus e é importante intervir de forma a mudar essa situação. Devem ser prescritos por profissionais competentes e nas situações indicadas.
Fale-nos da regra de ouro dos 20 minutos…
Podem ser 20 minutos, podem ser menos ou mais, mas diz respeito ao comportamento habitual de estarmos na cama a lutar para o sono chegar e sem conseguirmos dormir. É importante contrariar isso. Se não estamos a conseguir dormir, o melhor é mesmo ausentarmos-mos da cama, distrairmos-mos, fazer outra tarefa até sentirmos sonolência e vontade de dormir. Porque o processo de estar na cama gera stress e ansiedade e não torna a cama num espaço de relaxamento, que é o que se pretende. Outro conselho é reduzir o tempo que se está na cama. Ir para a cama mais cedo sem sono só contribui para aumenta o stress – quem tem dificuldades em dormir deve ir quando tem sono, porque se não vai ficar duas horas acordado e isso só vai levar ao desgaste da relação com a cama… e com o sono.