A cada hora três portugueses sofrem um acidente Vascular Cerebral, um deles não sobrevive, e metade dos sobreviventes ficarão com sequelas incapacitantes. Segundo dados da DGS, em 2019, foram admitidos por AVC 25.105 doentes nos hospitais públicos. Nas mulheres, o risco de sofrer um AVC é superior ao dos homens, verificando-se um maior número de casos no sexo feminino e também maior mortalidade associada ao AVC.
Para alertar para a gravidade dos ACV no nosso país e para o que pode e tem de ser ser feito para diminuir a sua incidência junto da população, entrevistámos a médica Patrícia Vasconcelos, Assistente Hospitalar de Medicina Interna no Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca
– O AVC é a principal causa de morte e de incapacidade em Portugal. O que é exatamente? Pode assumir dois tipos distintos? Quais as diferenças entre ambos?
R: O Acidente Vascular Cerebral (AVC) é um défice neurológico súbito, motivado por isquemia (deficiência de irrigação sanguínea) ou hemorragia no cérebro. Assim, distinguem-se dois tipos principais: Isquémicos (85%): em que ocorre obstrução de um vaso que leva sangue ao cérebro, impedindo a passagem de oxigénio para os neurónios, causando a sua morte; Hemorrágicos (15%): em que o que ocorre é a rotura de um vaso sanguíneo, causando hemorragia no cérebro e aumento da pressão intra-craniana.
– Qual a diferença entre um AVC e um aneurisma?
R: Como referi, um AVC ocorre quando há rotura de um vaso sanguíneo no cérebro ou quando há oclusão de um vaso cerebral. Um aneurisma cerebral corresponde a uma zona de fraqueza da parede de um vaso sanguíneo intracraniano que tende a dilatar-se, ficando preenchido com sangue. De um modo geral, os aneurismas formam-se na zona da bifurcação das artérias, por ser a zona mais frágil da sua estrutura.Essa dilatação pode exercer pressão sobre nervos ou outras estruturas cerebrais adjacentes. Por outro lado, pode romper causando uma hemorragia que vai comprimir as estruturas vizinhas.
– Além de causar a morte numa média de 1 em cada 3 casos, as sequelas que deixa podem ser graves e difíceis de recuperar. Quais são as mais comuns?
R: O AVC é uma emergência médica, sendo atualmente a principal causa de morte e incapacidade permanente em Portugal. A cada hora, três portugueses sofrem um Acidente Vascular Cerebral, um deles não sobrevive, e metade dos sobreviventes ficarão com sequelas incapacitantes. As consequências do AVC podem ser diversas: dificuldade na mobilização de um membro, alteração de linguagem com dificuldade de expressão ou de compreensão, alteração da visão, alteração da deglutição, alteração do equilíbrio, alteração da sensibilidade, entre outras. Cerca de um terço dos sobreviventes de AVC podem ficar com défice cognitivo e muitos com dor crónica.
– Quais os fatores de risco mais associados ao AVC?
R: o AVC é uma doença de causa multifatorial. Isto é, uma combinação de fatores de risco influencia a probabilidade de um indivíduo vir a ter um AVC. Apesar de alguns fatores não serem passiveis de intervenção (fatores de risco não modificáveis), como a genética, a idade ou o género, outros são modificáveis: a hipertensão arterial, a diabetes mellitus, o tabagismo, o consumo excessivo de bebidas alcoólicas, a dislipidémia (níveis elevados de colesterol no sangue), o sedentarismo, a obesidade, a aterosclerose, os fatores de risco cardioembólicos (arritmia, enfarte agudo do miocárdio, valvulopatia, miocardiopatia). A identificação dos fatores de risco modificáveis e as intervenções profiláticas para a redução do risco são provavelmente a melhor abordagem global do AVC.
– A genética desempenha aqui um papel a ter em conta?
R: Sim. Em estudos com gémeos e sobre história familiar de AVC, há evidência que fatores genéticos contribuem para a predisposição ao AVC.
– A incidência é maior nos homens ou nas mulheres? E em alguma faixa etária em particular?
R: H na comunidade médica um reconhecimento crescente da importância do género na incidência e prognóstico do AVC. Nas mulheres, o risco de sofrer um AVC é superior ao dos homens, verificando-se um maior número de casos no sexo feminino e também maior mortalidade associada ao AVC. Um dos motivos deve-se ao facto de as mulheres terem uma esperança média de vida superior à dos homens e o AVC ser uma doença cujo risco aumenta à medida que se envelhece. Contudo, não é apenas este fator que explica o maior número de casos.
As mulheres apresentam fatores únicos que agravam o risco de ocorrência de um AVC, tais como: gravidez, contraceção oral, alterações pós-menopausa, terapia hormonal de substituição, enxaqueca com aura, fibrilhação auricular (que é um tipo de arritmia cardíaca que pode aumentar em 20% o risco de AVC nas mulheres com mais de 75 anos). As mulheres têm, também, pior prognóstico em termos funcionais relativamente aos homens e têm menor qualidade de vida após um AVC.
– 80% dos casos de AVC podiam ser evitados com uma aposta na prevenção? Como deve ser esta feita?
R: É verdade, o AVC pode ser evitado em cerca de 80% dos casos. Temos de prevenir um primeiro evento e, também, evitar a recorrência. Assim, importa controlar a pressão arterial, tratar a diabetes e a dislipidemia; adotar uma alimentação adequada, pobre em gorduras e sal; praticar exercício físico regularmente; não fumar (fumar duplica o risco de ter um AVC), nem consumir bebidas alcoólicas. Estas são formas de reduzir o risco de sofrer um AVC. Em muitos casos, a alteração dos hábitos do dia-a-dia (estilo de vida) não é suficiente, sendo obrigatório iniciar terapêutica farmacológica.
– Quais são os sintomas a que se deve estar atento e o que fazer caso estes sucedam?
R: Entre os sintomas mais frequentes salienta-se um conjunto de manifestações comumente conhecido pelos “5 F’s”. São eles: a Face descaída, dando uma sensação de assimetria do rosto; a diminuição da Força num braço (acompanhada ou não de diminuição de força na perna); a dificuldade na Fala, dificuldade em ter qualquer tipo de discurso, fala arrastada ou existência de discurso pouco compreensível e sem sentido; a Falta súbita de visão, alteração da visão ou diminuição abrupta num ou em ambos os olhos ou visão dupla; e a Forte dor de cabeça, dor de cabeça muito intensa e diferente do habitual.
É fundamental, identificar precocemente os sinais de alarme e contactar de imediato o 112, que disponibilizará meios de auxílio específicos, ativando a Via Verde do AVC (VVAVC) e transportando o doente ao hospital mais próximo com capacidade para proporcionar o tratamento adequado. Porque, “O tempo é cérebro!” Quanto mais precoce o tratamento, maior é a possibilidade de sucesso.
– O AVC apresenta uma taxa elevada de reincidência? Como evitar um segundo AVC?
R: Sim. Verifica-se uma elevada taxa de reincidência. Em parte, justificada pelo facto de uma percentagem alta de sobreviventes de AVC manter os fatores de risco mal controlados. As medidas de prevenção secundária, incluem:
– Controlo dos fatores de risco vascular: redução não-farmacológica e farmacológica da pressão arterial, abstenção de fumar, redução do colesterol LDL, redução da ingestão de álcool
– Alteração do estilo de vida: dieta “mediterrânica”, exercício físico regular moderado.
– Anti-agregação plaquetar
– Hipocoagulação nos doentes com AVC cardioembólico (fibrilhação auricular não-valvular ou a outras cardiopatias de alto ou médio risco embolígeno)
– Tratamento cirúrgico: endartectomia carotídea em doentes com formas graves de estenose sintomática da carótida.
– Qual foi o impacto da pandemia a nível da prevenção e tratamento desta doença?
R: Os últimos dois anos tiveram consequências, algumas delas irremediáveis, no tratamento dos doentes com AVC, quer na fase aguda quer a nível da reabilitação. A pandemia colocou uma enorme pressão nos serviços de saúde, com natural implicação nos cuidados de saúde prestados aos doentes COVID-19, mas como viemos a confirmar, com um impacto extremamente negativo nos doentes não COVID-19, nos quais estão incluídos doentes com AVC. Verificou-se, sobretudo nos primeiros meses de pandemia, uma diminuição na procura de cuidados de saúde hospitalares e quando essa ocorreu foi tardia. No caso dos doentes com AVC, este atraso, impediu, muitas vezes, a realização de tratamento na fase aguda, levando a que as sequelas fossem mais marcadas. A marcada diminuição na oferta de cuidados de reabilitação, praticamente inexistente durante o estado de emergência, limitou ainda mais a possível recuperação destes doentes. O confinamento também contribuiu para o mau controlo dos fatores de risco: doentes mais sedentários e, por vezes, mal nutridos.
– A reabilitação tem um papel fundamental no processo pós-acidente. Em Portugal, o serviço público está à altura dessa resposta?
R: Sim, é imprescindível não descurar a reabilitação, pois tem um papel preponderante a vários níveis: na recuperação funcional, cognitiva e psicossocial; na integração social; na melhoria da qualidade de vida; na manutenção da atividade profissional e no grau de dependência. É importante um plano de reabilitação adaptado às necessidades de cada doente. No entanto, no nosso país, a resposta do serviço público é indiscutivelmente insuficiente.
– Quais as previsões em termos de ocorrência de AVC? Serão de esperar mais casos em Portugal e na sociedade ocidental?
R: Sabe-se que o peso do AVC irá aumentar nas próximas décadas devido, sobretudo, ao aumento da esperança média de vida. Prevê-se que o número de pessoas com idade igual ou superior a 60 anos aumente 23% na Europa até 2030. Na tentativa de diminuir as consequências deste envelhecimento da população, a sociedade europeia de AVC (ESO European Stroke Organization) e a Stroke Alliance for Europe – SAFE, uma organização não governamental de doentes com AVC elaboraram, em conjunto, o Plano de ação para o AVC na Europa com os seguintes objetivos:
– Reduzir em 10% o número absoluto de AVC na Europa.
– Tratar pelo menos 90% de todos os doentes que sofrerem um AVC na Europa numa unidade de AVC dedicada, como primeiro nível de cuidados.
– Ter planos nacionais para o AVC que abranjam toda a cadeia de cuidados, desde a prevenção primária até à vida pós-AVC.
– Implementar totalmente estratégias nacionais para intervenções multissetoriais de saúde pública para promover e facilitar um estilo de vida saudável e reduzir os fatores ambientais (incluindo a poluição atmosférica), socioeconómicos e educacionais que aumentam o risco de AVC.