Jessica Pettway, uma das primeiras YouTubers negras a ser bem-sucedida como criadora de conteúdos de moda e beleza na plataforma, morreu no passado dia 11 de março. Tinha apenas 36 anos.
O desaparecimento físico da influenciadora por si só é chocante, mas o desenrolar de acontecimentos que levou a esse desfecho consegue impressionar ainda mais.
“Fui diagnosticada com cancro em estágio três. Nem sei por onde começar, mas quero partilhar os motivos para ter estado afastada [das redes sociais] durante tanto tempo, na esperança de que pelo menos uma pessoa seja encorajada pela minha história”, começou por escrever na legenda de uma publicação feita em julho de 2023.
A seguir, Pettway explica que tudo começou com uma hemorragia vaginal intensa em junho de 2022. “Estava, literalmente, a esvair-me em sangue”. Na sequência do ocorrido, telefonou a algumas amigas para saber se elas já tinham passado por algo semelhante e a maioria respondeu afirmativamente. Essas interações fizeram-na acreditar que talvez se tratasse de algo comum. “Sentia fatiga extrema, fraqueza e não me sentia eu mesma, mas aceitei isto como um sintoma ‘normal’ sentido pela maioria das mulheres”.
Uma sucessão de erros médicos
Na madrugada de 1 de julho do mesmo ano, Jessica teve outra emergência médica. Desta feita, o marido encontrou-a em estado irresponsivo na casa de banho.
“Fui levada às pressas para o hospital, onde me disseram que a hemorragia extrema se devia a ‘miomas’. O meu ginecologista fez tudo parecer tão normal e comum. Não pensei muito nisso, contudo, expelia coágulos do tamanho de uma placenta, o que era muito alarmante. Fiquei em observação durante a noite e tive alta no dia seguinte”.
Cerca de vinte dias depois, voltou a ser internada pelo mesmo motivo. Os profissionais de saúde desvalorizam novamente o quadro, uma vez que eram “apenas miomas”. O sangramento excessivo eventualmente parou, mas deu lugar a dores “semelhantes às do parto”, limitando a qualidade de vida da YouTuber.
A 31 de dezembro de 2022, a perda abundante de sangue voltou e, desta vez, não parou. Seguiu-se um novo internamento, que, desta vez, durou uma semana. Os médicos disseram a Jessica que não estava em condições de ser submetida a uma cirurgia para remover os ‘miomas’.
“O meu valor de hemoglobina era 4 g/dL [os valores referência para as mulheres são entre 12 a 16 g/dL]. Tive de receber 10 transfusões de sangue durante a minha estadia no hospital. Recomendaram que fizesse uma biópsia”.
O diagnóstico correto — e devastador
No dia da consulta, a médica perguntou a Jessica se podia observá-la. De sublinhar que foi a primeira perita a ter esse cuidado e a “demonstrar alguma preocupação”, lê-se na publicação do Instagram. “Pouco depois, ela disse-me que nem sequer conseguia ver o meu colo do útero, porque estava bloqueado por uma massa enorme”.
A profissional de saúde referenciou Pettway para uma consulta de Oncologia, que teve lugar na semana seguinte.
“No dia 8 de fevereiro de 2023, ele [oncologista] fez-me uma biópsia ambulatorial. Quando acordei da anestesia, disse-me casualmente: ‘Pois é, você tem cancro do colo do útero em estágio 3’. Não era um mioma, mas sim cancro. Fui mal diagnosticada durante todo aquele tempo”.
Jessica, que era uma mulher de fé, não esmoreceu com a notícia, mas os sintomas tornaram-se mais fortes e o hospital passou a ser a sua segunda casa. Em fevereiro de 2023, já tinha recebido mais de 18 transfusões de sangue, perdido imenso peso e agonizava com dor.
Apesar de ter registado algumas melhorias, a influenciadora digital acabou por perder a luta contra a doença pouco mais de um ano após ter recebido um diagnóstico correto.
A invisibilidade da dor das mulheres negras
A história trágica de Jessica lançou luz sobre um problema antigo: na área da saúde, existe preconceito racial na avaliação da dor e recomendações de tratamento, bem como falsas crenças sobre diferenças biológicas entre negros e brancos.
O problema não é muito explorado em Portugal, mas, por exemplo, nos Estados Unidos, um estudo de 2016 concluiu que os americanos negros são sistematicamente subtratados para a dor comparativamente aos americanos brancos.
O reconhecimento da dor, como enxaquecas, dores abdominais e dores nas costas, exige que os médicos confiem mais no próprio julgamento do que quando há cicatrizes visíveis e resultados de testes tangíveis. Isso faz com que as disparidades raciais aumentem. Disparidades essas que se intensificam para as mulheres negras, uma vez que a discriminação racial se mistura com preconceitos de género.
Em muitos casos, fatores como maior riqueza, classe social e educação não protegem as pacientes negras, permitindo que opiniões pré-concebidas com base na raça ou etnia persistam.
As mulheres negras têm menos probabilidade do que as mulheres brancas de serem diagnosticadas com endometriose quando sentem dor pélvica. E, segundo um relatório publicado em 2022, mais de 70% das mulheres negras com idades entre 18 e 49 anos relataram ter tido pelo menos uma interação negativa com prestadores de cuidados de saúde, incluindo a desvalorização da dor que sentiam.
Mulher negra forte: uma falsa narrativa
É muito provável que o conceito de mulher negra forte (strong Black woman, em inglês), que caracteriza as negras como naturalmente resistentes, abnegadas e independentes, incentive os médicos a verem estas pacientes como mais capazes de tolerar e superar a angústia. Além disso, faz com que as próprias mulheres negras sintam que não podem sentir dor e/ou devem sofrer em silêncio.
Trata-se de uma falsa narrativa perpetuada por estereótipos racistas, cujas origens remontam aos séculos XV e XVI, quando a violência contra pessoas escravizadas era justificada por crenças (erradas) de que elas tinham maior predisposição biológica para suportar a dor. As consequências desta linha de pensamento são profundas, incluindo experiências médicas não consensuais com pessoas negras ao longo da História — nos anos 1800, Marion Sims, outrora conhecido como o ‘pai da Ginecologia moderna’ fazia experiências com e em escravas negras sem anestesia.
Não é, portanto, descabido, acreditar que tais vieses possam ter-se infiltrado na prestação de cuidados de saúde contemporânea, mesmo entre os médicos de gerações mais novas. De acordo com uma pesquisa de 2016, entre um grupo de estudantes do primeiro e do segundo ano de Medicina, 40% acreditavam que a pele dos negros era mais espessa do que a dos brancos. Além disso, tinham a perceção de que os pacientes negros eram menos sensíveis à dor e tinham menos probabilidade de tratar a dor adequadamente.
O que aconteceu a Jessica Pettway em pleno século XXI é um poderoso lembrete de que todas as mulheres, particularmente as negras, devem ser ativistas pela própria saúde. Sente que algo não está bem? Procure uma segunda, terceira ou quarta opinião. As que forem precisas Ser mais persistente do que um potencial padrão de desconfiança relativamente aos seus sintomas pode salvar-lhe a vida.