Passava das 3 da manhã de 2 de Março de 2002 quando Ana Gonçalves deu entrada no Hospital Amadora-Sintra com as ‘águas’ rebentadas. Era uma gravidez de risco dos dois partos anteriores resultou um nado-morto e uma filha deficiente, mas os exames pré-natais pareciam indicar que tudo estava bem. Deram-lhe medicação para desencadear o trabalho de parto, já que as dores de expulsão não chegavam, mas o colo do útero não dilatara o suficiente para a criança passar. ‘À uma da tarde a chefe de equipa mandou os médicos almoçarem. Fiquei sozinha’, recorda.

Os sinais vitais da criança não apareciam. Lino, o marido, perguntava por que não faziam uma cesariana, mas o médico optou pelo parto normal, no qual usou fórceps. A criança veio ao mundo já sem vida. ‘Quando o Lino veio, disse-lhe que a culpa era deles, porque deixaram o bebé dentro de mim durante tanto tempo’, diz Ana. O casal sentiu que as explicações não eram convincentes. Primeiro, uma psicóloga informou-os de que o filho tinha síndromade Down, facto contrariado pelos exames. Depois, foi uma ginecologista que apareceu para dizer que os acidentes aconteciam, era preciso aceitá-los e que não valia a pena ir para a frente com um processo. ‘Até que, à porta fechada, uma pessoa nos explicou o que tinha acontecido’, revela Ana.

A queixa foi logo apresentada no Ministério Público, que acusou a chefe da equipa médica e o médico que tirou o bebé. O relatório da autópsia só apareceu sete meses depois: crâneo esmagado, provavelmente pelo uso de forcéps. Em Maio deste ano a juíza do Tribunal de Instrução Criminal achou que o caso tinha matéria suficiente para ir a julgamento. Em Outubro, a Ordem dos Médicos ainda não se tinha pronunciado. Lino Gonçalves não se conforma. ‘Se existirem culpados, têm de ser afastados. Falámos com gente nos EUA, em Inglaterra, Espanha, África do Sul e todos me perguntam se isto é o Terceiro Mundo quando lhes digo que o médico em causa continua ao serviço. Se eles tivessem assumido, não tínhamos ido em frente com o processo. Não vamos parar até sabermos o que aconteceu.’ Apesar de tudo, Ana Gonçalves continua a ter esperança: ‘Continuo a ir ao Amadora–Sintra com a minha filha. Excepto neste parto, sempre fui acompanhada com muito carinho naquele hospital.’


O Amadora-Sintra tem outro caso mediático de erro fatal. A 12 de Janeiro de 2004, Ana Raquel, 10 anos, foi ali operada às amígdalas. A otorrinolaringologista não estava no serviço quando o quadro clínico da criança se agravou. Quando foi informada, pediu que fossem as anestesiologistas a observá-la. Já era tarde: a criança entrou em coma e morreu. A Inspecção-Geral de Saúde concluiu que lhe foi administrada uma dose excessiva de sódio hipertónico ou bicarbonato de sódio.

UM ANO, 7 OPERAÇÕES

Maria G., 57 anos, sente-se vítima de um erro médico que lhe custou um ano de internamento, sofrimento e operações plásticas consecutivas no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Aos 49 anos, os exames de rotina detectaram-lhe um cancro da mama e tornaram necessária uma mastectomia. A médica assistente tranquilizou-a: iam fazer-lhe uma reconstrução mamária no mesmo dia. O conteúdo do peito seria retirado para se colocar lá um expansor que esticasse a pele, para depois lhe ser introduzido um enchimento de silicone. ‘Aí, as coi sas começaram a correr mal. O expansor não ficou colocado ao mesmo nível do outro peito. Enquanto o esquerdo estava na posição normal, o direito estava posicionado no ombro’, conta. Seguiram-se mais seis operações. O resultado foi um seio reconstruído mas de tamanho diferente e sem volume. Maria mantém que o expansor era muito pequeno. ‘Disse ao médico que sentia o seio vazio, mas ele respondeu-me que eu era tonta. A gente cala-se porque os médicos são eles.’ Mas Maria insistia na suspeita: como o seu médico não estava no hospital, foi outra colega dele que deu o seu parecer. ‘Disse: ‘Ou a senhora rebentou o saco de silicone e pode morrer ou vocês não o puseram lá dentro.’ Apanhei um grande susto. Puseram-me lá um expansor vazio.’

As restantes cirurgias também saíram goradas. ‘Às vezes, ouvia outras médicas dizer que eu tinha pouca sorte, porque as coisas não tinham ficado bem feitas de início. Mas a equipa que me operou dizia que a culpa era das radioterapias e das quimioterapias, que me secaram a pele, que já não esticava mais. E eu lá seguia de operação em operação.’

Na última cirurgia, que envolveu puxar um músculo das costas para compensar a falta da pele no peito, a reconstrução do mamilo não foi terminada porque lhe diagnosticaram cancro no outro seio. ‘Já não quis fazer a reconstrução nesse.’ Hoje usa uma prótese no peito esquerdo e só se sente aliviada por tudo ter terminado. ‘Sou muito positiva e gosto muito de viver.’

À PROCURA DA FALHA

Não existem números concretos sobre os erros em medicina e acidentes em saúde em Portugal. Nos EUA, o assunto já foi estudado: em 1999, um relatório da Academia Nacional de Ciências concluía que morriam 44 mil pessoas por ano devido a erros médicos. Outro estudo do mesmo ano conclui que, afinal, as vítimas podiam chegar a 98 mil. Na Austrália, crê-se que todos os anos morram 18 mil pessoas e que outras 50 mil fiquem incapacitadas. José Fragata e Luís Martins, falam deste fenómeno no livro ‘O Erro em Medicina’ e formularam uma hipótese para Portugal, tendo em conta um universo de 1 milhão de internamentos anuais. ‘Considerando que os nossos hospitais têm o mesmo nível de fiabilidade das instituições congéneres norte-americanas, seria possível estimar entre 1300 e 2900 o número de mortes anuais provocadas por erros médicos’, pode ler-se.

Os autores calculam que entre 50% e 60% das responsabilidades sejam da actuação dos profissionais de saúde, por causa de conhecimentos insuficientes, pouca experiência, lapsos de memória, enganos, violações de normas éticas e técnicas. Os restantes 40% são imputados à estrutura dos hospitais e centros de saúde: turnos médicos de 48 horas e mais, equipamento deficiente ou em falta, má organização das rotinas de trabalho, falta de recursos financeiros, entre outros problemas.

A medicação é uma das áreas mais passíveis de erro entre 20% e 30% de falhas, segundo ‘O Erro em Medicina’. O stresse e a delicada interacção com máquinas sofisticadas também tornam os Cuidados Intensivos mais sensíveis a falhas, tal como as cirurgias com recurso a alta tecnologia.

CULPA E CASTIGO

Hoje, muitos utentes têm uma imagem corporativa da classe médica e acusam os profissionais de se protegerem uns aos outros. Mas, este ano e apenas em seis meses, a Ordem dos Médicos instaurou 251 processos a clínicos 151 estão registados na delegação Sul. A maioria são queixas de doentes, mas também há acusações entre colegas. Ginecologia, medicina geral e cirurgia são as especialidades mais visadas.

Mas, num sistema que se baseia na culpa do clínico, acaba por ser o doente quem fica a perder. Assim pensa Guilherme Oliveira, responsável científico do Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra. ‘Mais acções de responsabilidade médica significam mais medo dos médicos. E isto é igual a mais medicina defensiva: por causa de uma dor de cabeça, os médicos irão pedir uma bateria de exames. Isso pode vir a significar mais listas de espera, mais encargos para o Estado e o utente e mais gente a morrer porque não foi atendida a tempo. Era bom que se encontrasse um sistema que não procurasse o médico como culpado. Países mais desenvolvidos estão a tentar retirar o litígio do processo e dar mais indemnizações aos lesados, fora dos tribunais, em termos amigáveis.’

E para os utentes é difícil provar que foram vítimas. ‘Têm de demonstrar que sofreram danos provocados por uma actuação errada’, explica o jurista. Os profissionais de saúde também beneficiam do regime legal. ‘São os hospitais que pagam as indemnizações e só em poucos casos podem pedir o reembolso aos médicos e não costumam fazê-lo. São pouquíssimos os casos que chegam a tribunal e as condenações de médicos são menos ainda. Acredito que, em dois ou três anos, muito mais casos cheguem a julgamento.’

Mesmo quando vão a julgar, os processos arrastam-se por anos. É o caso de uma médica que, em Abril, foi condenada a um ano de prisão por negligência: prescreveu um medicamento, em 1996, que acabaria por matar um doente. ‘As notícias de negligência médica são muito mais numerosas que os casos em tribunal’, reflecte Guilherme Oliveira. ‘Os médicos têm mais medo dos jornalistas do que dos tribunais.’

ADMITIR O ERRO

‘Os médicos nunca souberam lidar com o erro’, escreve o médico João Lobo Antunes no prefácio de ‘O Erro em Medicina’. ‘A cultura médica tradicional assenta ainda hoje numa educação para a perfeição que venera modelos infalíveis.’ Mas a Medicina só avança quando os erros são admitidos e corrigidos, observa ainda.

Os Estados Unidos e França chegaram a essa conclusão. Nos EUA, os médicos fazem relatórios cada vez que ocorre um erro, estudam-nos e tomam providências para impedir que novas falhas se repitam. Os hospitais pagam mais indemnizações aos lesados sem que o caso vá a tribunal. No entanto, a lei que proíbe que as conclusões desses relatórios sejam usadas em tribunal contra os médicos. A meta é diminuir os erros para 50%. Em França existe uma comissão que avalia danos físicos e morais, calculando o montante das indemnizações. Esta solução seria a ideal, mas Guilherme Oliveira está pessimista em relação à sua implementação em Portugal: ‘Nos próximos 10 ou 20 anos vamos é ter mais luta entre doentes e médicos, mais clínicos culpados.’ Um sistema que acaba por ser mais económico, acrescenta.

A Ordem dos Médicos defende que a medicina deveria ser considerada uma actividade de risco, tal como a Deco que sugere a criação um regime de responsabilidade geral que indemnize os pacientes lesados. A compensação do doente passaria a estar associada à ideia de que a medicina envolve riscos. Em Portugal, os médicos não são obrigados a ter um seguro de responsabilidade profissional. Se escolherem fazê-lo, poderá ter de sair dos seus bolsos, enquanto em países como o Reino Unido parte do montante do seguro é paga pelo hospital para o qual o médico trabalha. Este sistema pouparia médicos e utentes ao arrastar de processos em tribunal, dizem alguns analistas.

CONHEÇA OS SEUS DIREITOS

Saiba como reclamar de um erro em medicina.

Reclamações: Hospitais e centros de saúde devem ter um gabinete do utente, onde pode reclamar usando o livro próprio ou impresso. Também pode fazer a queixa por carta dirigida à Inspecção-Geral da Saúde, Direcção-Geral de Saúde, ao Ministério da Saúde ou à administração do centro ou hospital. Reclamações contra unidades de saúde privadas podem ser enviadas à Direcção-Geral de Saúde ou à Administração Regional de Saúde. Em consultórios privados, esta faz-se por carta à Ordem dos Médicos ou ao Ministério da Saúde.


Indemnizações: Procure um advogado, que deve apresentar queixa num tribunal cível num prazo de três anos a contar do erro médico. Danos morais são mais difíceis de provar, já que é difícil relacioná-los directamente com a actuação do clínico. O processo apura se a responsabilidade é dele ou da administração do hospital.


Queixa por crime: O homicídio por negligência é um crime cuja pena de prisão vai até três anos (cinco, se for grosseira), com multa. Também é crime quando o médico actua sem base nos seus conhecimentos, se abandonar o paciente sem vigilância ou quando efectua tratamentos não autorizados pelo doente.


Processo disciplinar: A queixa deve ser apresentada na Ordem dos Médicos ou no hospital onde o médico trabalha que lhe pode mover um processo disciplinar. Se ficar provado que o clínico violou normas técnicas, éticas ou deontológicas, a Ordem pode suspendê-lo ou até expulsá-lo.

PORQUE SE ERRA EM MEDICINA?

José Fragata e Luís Martins, autores de ‘O Erro em Medicina’, estudaram a razão destes eventos adversos e classificam-nos.

FALHAS ACTIVAS Da responsabilidade da actuação do médico. Podem ser:


Lapsos: O clínico sabe o que deve fazer, age correctamente, mas o resultado não é o que se esperava. Deve-se muitas vezes a uma falta de atenção.


Enganos: Uma decisão e acção médicas erradas, que podem resultar de conhecimentos insuficientes, informação incompleta, pouca experiência ou falha de memória. ‘Um exemplo típico é do cirurgião júnior que, operando sozinho, se depara com uma situação que não conhece, por falta de informação ou pouca experiência, e para a qual toma a decisão cirúrgica intra-operatória que lhe parece mais certa, mas que é errada.’


Violações: Quando o clínico não age consoante as regras éticas, deontológicas ou técnicas. Pode ser ou não intencional. ‘Frequentemente, os indivíduos violam as regras porque é mais fácil, dá menos trabalho ou, simplesmente, por serem incautos, contudo sem o intuito de causarem danos.’

FALHAS LATENTES Falhas na organização e estrutura da instituição de saúde, que resultam em condições de trabalho deficientes para o clínico.

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