Bárbara Bulhosa (Fotos: João Lemos)

Chego às instalações da Tinta-da-China um pouco antes da hora e fico à espera numa sala cheia de livros. Olho para as capas, ‘tenho, tenho… mas ainda não li… não tenho, não tenho… não conheço este autor, nem esta autora… que capa tão gira, quero, quero, quero…’, penso. Os meus hábitos de leitura pioraram de há uns anos para cá, sobretudo a leitura pelo simples prazer de ler um livro. Leio muito para o trabalho, mas essa é uma leitura diferente. Faço uma promessa a mim mesma de mudar essa realidade imediatamente. Estou entretida com estes pensamentos quando me deparo com uma minicama. Bárbara Bulhosa, que entretanto vem ter comigo à sala, apresenta-me o membro mais recente da sua equipa e guardião da Tinta-da-China: Ozalide, o nome (perfeito) do gato que adotaram e ali vive, rodeado de livros. Curioso, vem espreitar o que estamos a fazer mas foge da objetiva sempre que Bárbara tenta que fique consigo nas fotografias. Prefere deitar-se e ouvir as palavras de Bárbara.

A Bárbara nasceu em 1972, em Lisboa. Os seus pais foram uma referência para si como leitores?
Sim, o meu padrasto adorava poesia e à noite tinha por hábito ler os policiais da Coleção Vampiro. Já a minha mãe gostava muito de Saramago, de Lobo Antunes… Cresci rodeada de livros, a parte mais nobre da casa era aquela que tinha os livros, e lembro-me de brincar às livrarias com o meu irmão. (risos)

E o que lia nessa altura?
Em criança, lembro-me da Alice Vieira, gostei muito do ‘Rosa minha irmã Rosa’, do ‘Lote 12, 2.º Frente’. Tinha oito anos quando li o ‘Meu Pé de Laranja Lima’, de José Mauro de Vasconcelos, um livro duro. Na adolescência, descobri o ‘Cândido’, de Voltaire, e o Eça em ‘O Crime do Padre Amaro’ e ‘O Primo Basílio’, livros que me entusiasmaram bastante.

Sem ser leitura obrigatória para a escola… (risos)
Sim, lembro-me de ter gostado imenso. Mas também lia Agatha Christie, claro, Perry Mason do Erle Stanley Gardner… Mais tarde li ‘O Estrangeiro’, de Camus, e outros autores que sentes que te transformam.

E já pensava em seguir uma profissão relacionada com livros?
Nessa altura sabia apenas que queria ser culta. (risos)

E o que para si era ser culta com aquela idade?
Era saber muitas coisas, jogar Trivial Pursuit e ganhar sempre. (risos) Saber de cinema e ver bons filmes. Os meus pais viam muitos filmes, franceses, italianos, russos… lembro-me de ver ‘Ivan, o Terrível’, e de achar que aquilo era horroroso. (risos) O meu padrasto achava que era importante e nós víamos. Nem sequer era um grande frete, embora não percebêssemos bem o que estávamos a ver.

Findo o secundário, decidiu estudar História.
Sim, porque tive uma professora fantástica no Liceu Maria Amália que me fez ficar fascinada pela disciplina. Também percebi que ao estudar História, estudávamos tudo, Política, Sociedade, Cultura, Ciência, Economia… A minha mãe era bióloga e era professora do liceu, e eu fui para esse curso porque achei que também ia ser professora.

Uma sala-armazém na Tinta da China onde apetece explorar durante horas

“A Feira do Livro é um balão de oxigénio que os editores precisam para continuar a publicar.”

Estava na faculdade quando decidiu casar-se?
Conheci-o aos 18 e aos 19 anos decidi casar-me. Ele tinha mais oito anos que eu, já trabalhava numa livraria. Os meus pais foram numa viagem e quando regressaram eu disse-lhes ‘daqui a 15 dias caso-me’.

Era uma rebelde!
Sim, completamente, até porque os meus pais não eram casados, achavam que não valia a pena. Mas eu fiz questão de casar mesmo. E para chatear mais a minha mãe, fiquei com o nome dele, por isso é que eu sou Bulhosa.

Casou-se e teve filhos enquanto estava na universidade?
Sim, casei-me, entrei na FCSH e passados 2 anos engravidei do meu primeiro filho. Fui mãe aos 21 anos. Fiz metade da faculdade com um bebé e quando acabei a faculdade já estava grávida do segundo. Depois ainda fui bolseira da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, onde estive mais de um ano, e só então é que fui trabalhar com o meu marido e os meus cunhados, que na altura já tinham uma livraria nas Amoreiras. Formámos a Bulhosa e abrimos também em Entrecampos. Aí, percebi que me dava muito gozo trabalhar com livros.

O que fazia na Bulhosa?
Criei a base de dados, estive na parte do backoffice, depois comecei a fazer a importação, ia a muitas feiras estrangeiras, organizava os eventos. Quando entrei, abrimos a segunda livraria, quando saí, já havia nove, com 60 trabalhadores. Era uma empresa familiar que se foi profissionalizando e eu estive lá de corpo e alma.

Quanto tempo trabalhou na empresa?
Uns oito ou nove anos, saí em 2004.

Saiu porque se separou?
Não, isso foi mais tarde, o meu ex-marido e o irmão zangaram-se e eu obviamente saí com o meu ex-marido. Ficámos os dois sem emprego.

Pensou em fazer outra coisa?
Não, tinha uma vasta experiência e gostava muito do que fazia. Enviei currículos para várias livrarias, mas a única resposta que obtive foi da Fnac, para caixa das 17h à meia-noite. Nessa altura já tinha o terceiro filho, com apenas um ano. Percebi que na Bulhosa o meu trabalho tinha o reconhecimento das pessoas, das editoras, dos fornecedores, e ao sair tive a sensação de que passei de bestial a besta. De repente, não havia muito interesse no meu trabalho.

“Não sei como se faz um bom leitor hoje. É uma experiência individual. Tem de haver vontade de ter essa experiência.”

O seu ex-marido conseguiu emprego logo?
Sim, era Bulhosa, era sócio e era homem… Eu tive de me esforçar muito mais. Não conseguir trabalho foi um grande rombo na minha autoestima. Aí pensei em criar uma editora. Só que não sabia nada de edição. O meu conhecimento era do mercado, sabia o que fazia falta, o que se vendia, mas nunca tinha trabalhado na edição. Decidi inscrever-me numa pós-graduação em Técnicas Editoriais. Queria adquirir o máximo de conhecimento para aplicar no negócio que ia criar.

E como foram os primeiros passos?
Convidei a Inês Hugon para vir trabalhar comigo. Ela tinha sido minha colega na faculdade e trabalhava em edição na Texto Editora. Na altura, submetemos um projeto de criação do próprio emprego ao IEFP, e ganhámos. Comprámos computadores, software, fotocopiadora… Em termos de investimento, é mais fácil ter uma editora que uma livraria. Trabalhámos loucamente, fazíamos de tudo, das faturas à comunicação dos livros, às conversas com os autores, discussão dos manuscritos, e a Inês ainda fazia a revisão.

Duas mulheres na génese da editora…
Sim, e ainda convidámos a Vera Tavares, nossa colega em História da Arte, para nos desenhar o logótipo da Tinta-da-China, e fazer a capa do livro do Rui Tavares, também do nosso curso.

Foi o vosso primeiro autor?
Sim, ele escreve lindamente. Nessa altura havia muitos blogues fabulosos e o Rui Tavares tinha o Barnabé. Pensei ‘não posso ir buscar escritores porque não tenho o que lhes oferecer’, mas podíamos criar alguns escritores. E foi assim, convidámos o Rui Tavares, o Pedro Mexia, entre outros autores.

A edição é uma área igualitária?
Não, a edição é um mundo de homens, embora haja mulheres a trabalhar na edição, não são as donas das empresas. No início sentimos alguma desconfiança, éramos mulheres, tínhamos 30 anos, e de repente aparecemos no mercado a dizer ‘nós fazemos o que queremos’, e essa postura independente não era comum.

Preocupa-se em publicar
 tanto homens como mulheres?
Sou feminista, mas não discrimino uma obra literária por ter sido escrita por um homem. Eu trabalho os textos. Dá-me muito gozo trabalhar com pessoas de quem gosto pessoalmente e que admiro o percurso. Gosto muito de descobrir uma autora nova que conte histórias de um ponto de vista feminino, mas também já vi homens fazer isso. O próprio ‘Retorno’, da Dulce Maria Cardoso, é um livro escrito por uma mulher mas a personagem, a voz, é um adolescente.

Consegue fazer a distinção entre o ler por prazer e o ler para o trabalho?
Sim, o nível de leitura é totalmente diferente. Quanto estou a ler para publicar, leio numa perspectiva de ‘como é que comunico este livro, como o embalo? Quem é que o vai comprar? O que é que este livro traz? É relevante politicamente, socialmente?’. Faço uma série de livros por achar que politicamente e socialmente são relevantes, porque acho que um editor também tem um papel de agente de divulgação cultural. Temos uma série de livros sobre racismo, direitos das Mulheres, a guerra colonial, a democracia… são temas que me interessam muito e à minha equipa também.

E são livros que se vendem bem?
Alguns sim, outros não… e deviam, como o que fizemos, muito relevante, sobre a violência sexual sobre as mulheres.

“Gostamos do livro como objeto e tentamos que seja apetecível da capa à última página.”

A vida apressada é inimiga da leitura?
A leitura precisa de tempo, não só do tempo em que estamos sentados. Quando estamos a ler, não podemos estar a fazer outra coisa. Tudo isso faz com que seja mais difícil publicar o tipo de livro que eu faço. Os livros para Young Adults, de autoajuda, vendem bem. Mas aquilo que quero trabalhar, os long sellers, os livros de referência, têm o seu tempo de maturidade e de longevidade, o que, perante as circunstâncias em que nós nos encontramos, começa quase a ser um ato de resistência.

Há uns tempos, um autor dizia-me estar feliz porque o seu livro tinha vendido 7000 exemplares…
É ótimo! Tenho dois autores que vendem muito: o Ricardo Araújo Pereira e a Dulce Maria Cardoso. Quando publiquei o ‘Eliete’, fiz logo uma tiragem de 10 mil exemplares, mas é excepcional. Uma grande aposta pode ser uma tiragem de 2000-3000. Quando nós contratamos um livro, pedimos à gráfica 1500 exemplares. Passados 2 meses, temos de pagar à gráfica, independentemente do que venda. Pomos os livros nas livrarias, através da distribuidora, e se as pessoas não comprarem os livros estes voltam para o editor. Portanto, podemos ter devoluções brutais. É um negócio difícil. A parte boa é o facto de sentir que estás a dar a conhecer algo belo às outras pessoas, autores que de outra forma não teriam acesso, que podem ter um livro de autor com uma capa bonita.

Somos um país de baixos salários e os livrosnão são baratos, não admira que se venda pouco…
Os livros são efetivamente caros, há todo um custo invisível, além do papel que está muito caro. Com a guerra, houve um aumento de preços brutal. Todos os anos reimprimo o ‘Retorno’ da Dulce Maria Cardoso, vende muito bem. O ano passado pediram-me mais €4 mil na gráfica pela mesma tiragem. E eu não pude espelhar isso no PVP. As nossas margens estão cada vez mais apertadas e já são muito pequenas.

Posso perguntar quais são as vossas margens?
Nós damos 60% do preço do livro à distribuidora, só faturamos 40%. Desses 40%, 10% é para o autor, 20% para pagar a gráfica, e depois há outros custos… normalmente ficamos com 5-6%. Não é um negócio espetacular, por isso os livros são caros.

Há autores que nunca publicaria?
Claro, nunca publicaria livros de autores que eu acho que escrevem mal ou não têm nada para dizer. Não me interessa estes fenómenos que há agora, como os youtubers, são efémeros. O que quero são livros para ficar, digo isto sem arrogância. Também não publico livros fascistas, racistas, livros que vão contra a minha ética política. Mas isso não quer dizer que seja uma editora engajada.

O que quer dizer com isso?
Publiquei Nelson Rodrigues, um autor brasileiro dos anos 60, machista, e o ‘Sítio do Picapau Amarelo’ que é um livro racista. O meu respeito é pela obra literária. Foi escrito num determinado contexto histórico e nós temos de perceber isso. É diferente se for alguém, nos dias de hoje, a escrever um texto que enuncia princípios xenófobos, homofóbicos, racistas, machistas. Isso não publico, por muito bem que esteja escrito.

É contra alterar a escrita dos autores?
Absolutamente contra, excepto se for o próprio autor a pedir. O racismo, a violência sobre as mulheres, tudo isso existiu, é mau mas era como as pessoas eram tratadas há 50, 100, 200 anos. Fingir que isso não aconteceu não vai adiantar nada. É preferível mostrar e discutir.

Antes dizia-se que bastava ler aos miúdos,ou ter livros em casa, para se ser um bom leitor.
Não sei como se faz um bom leitor nos dias de hoje. Quando era miúda, a experiência que tinha a ler um livro era algo que não tinha com mais nada. Agora, têm videojogos, séries… a concorrência é brutal. Os meus filhos respeitam o meu trabalho, gostam de conversar com os autores, mas não têm uma relação com a leitura como eu tinha na idade deles.

Qual é o seu sonho?
Gostava de ter uma livraria onde pudesse ter só livros bons, conversas com os autores, clubes de leitura, tudo num ambiente descontraído, sem pódios. Acho que as pessoas têm necessidade dessa partilha, mas infelizmente não tenho dinheiro.

Pode ser que as suas palavras cheguem a algum mecenas…
Não, esse é um dos grandes problemas que Portugal tem, as pessoas muito ricas nunca querem investir num projeto cultural. Mas o meu objetivo é continuar a fazer a Tinta-da-China e projetos que me estimulem. Não me sentar à sombra deste trabalho que fiz ao longo destes anos. Continuar a querer fazer mais e melhor, estar sempre um pouco insatisfeita para me sentir motivada para fazer mais e melhor.

Questionário rápido

Que livro aconselharia os nossos líderes políticos?
‘Labirinto da Saudade’, do Eduardo Lourenço.

Que autor gostaria de trazer para a Tinta da China?
Tantos! Gostaria muito de ter publicado Javier Marías, Margaret Atwood, e também gosto do norueguês Karl Ove Knausgard .

Que livro seria bom para oferecer no Dia da Mulher?
Para o Dia da Mulher, a ‘Eliete’ da Dulce Maria Cardoso.

E para oferecer ao pai?
‘Os Cadernos de Pickwick’, de Charles Dickens ou ‘Discursos’, de Mark Twain.

Um livro indispensável para o 25 de abril?
Os ‘Cartoons’ e as ‘Caricaturas’ ambos do João Abel Manta.

Que livro tem na mesa de cabeceira?
Agora está o ‘Carta ao Pai’, do Kafka. Já o tinha lido há 20 anos, mas comprei no Goethe e recomecei a ler. Comecei a ler também o mais recente do Agualusa, a biografia de Abel Chivukuvuku, uma história de vida.

Que livro mais a emocionou?
Só perguntas difíceis, tantos! ‘As Benevolentes’ de Jonathan Littell, foi um livro que me marcou muito já em idade adulta. Na adolescência ‘Cem Anos de Solidão’, de Garcia Marquez e ‘O Estrangeiro’, de Camus.

Que livro escolheria para iniciar um clube de leitura de miúdos na escola secundária?
‘Cândido’, de Voltaire. É um livro muito divertido e sagaz.

Que livro levar de férias?
Levo sempre livros grandes. Aqueles em que possamos mergulhar e estar dias a fio lá dentro. Sugiro, por exemplo, ‘As Vozes do Rio Pamano’, de Jaume Cabré , ‘Santa Evita’, de Tomás Eloy Martinez ou ‘A Biblioteca de Estaline’, de Geoffrey Roberts.

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