Ficou mais conhecida por fazer variadas pessoas felizes, mas desta vez a história é diferente. Quando a realizadora francesa Anne Fontaine se lembrou de Audrey Tautou para o papel de uma lenda nacional, meio país tremeu: que sabia aquela criança de cara de coração sobre a pobreza e a grandeza da rainha da moda?
Pode não saber muito na vida real, mas em ‘Coco Avant Chanel’ Audrey é muito diferente de Amélie, e faz uma Chanel defensiva, determinada, e comovente, que se ‘constrói’ a pulso à medida que vai escapando à triste sombra das costureirinhas pobres para qualquer coisa que ela própria não sabe muito bem o que é. Aliás, vejam como a sua maneira de andar se modifica à medida que se vai movendo nos mais altos ‘círculos’ da sociedade.
O filme faz justiça a ambas: à estrela passada e à estrela presente. A história retrata não a lenda mas a rapariga normal antes da lenda, não o mistério mas a realidade, não uma Chanel poderosa à frente de um império mas uma francesa pobre entre milhares de outras francesas pobres, lutando entre o orfanato, uma vida de costureira e um cabaret onde cantava e onde ganhou o ‘petit-nom’ de Coco graças a uma canção idiota sobre um cão.
Audrey Tatou mostra uma Chanel manipulativa e oportunista, ao mesmo tempo muito longe e muito perto da visionária em que se transformaria. Basicamente, em época de crise ‘Coco Avant Chanel’ é a história de alguém que, por melhores ou piores métodos, lhe resistiu, e conta como uma rapariga deu a volta ao seu destino e se tornou dona de um império global. Também mostra como o génio, muitas vezes, mais não é que determinação e capacidade de sobrevivência…
Claro que isto não é nenhuma história de moral, não é… Nem podia, não distorcendo (pelo menos na sua base) o passado de Chanel. Ninguém diz – façam como ela fez. Mas não dizendo, o filme não pode deixar de nos fazer admirar a capacidade de sobrevivência quase comovente de uma orfã pobre – como todas as orfãs pobres – envergonhada de o ser e – ao contrário das outras orfãs pobres – decidida a tudo para deixar de o ser: pobre, por perseguição de um protector, e orfã, pela adopção afectiva do mesmo protector, que funciona como pai, banqueiro, e marido.
Não há aqui piscadelas de olho óbvias, não se diz ‘vejam como já nessa altura ela era um génio’. Vêem-se tesouras a cortar tecido, estojos com agulhas e linhas, moldes de chapéus. Mas acima de tudo, há esse lado – feminino? – de filmar os tecidos como se quase respirassem. Sentimos mais do que vemos, a respiração desses tecidos antigos no tempo em que nada era sintético e em que aquele era um dos poucos reinos da mulher.
Coco e a realizadora unem-se por vezes num olhar de quase despedida a um mundo que a guerra se encarregará de terminar. Seguimos o olhar de Coco pelos pormenores próximos, uma gola, um colarinho, um vestido, ou abrangentes, um mar de senhoras emparedadas em renda branca e folhos, filmado com um desprezo quase comovido de quem se preparava para lhe dar o golpe de misericórdia (Coco) e de quem sabe que aquele mundo está moribundo (a realizadora).
Adequadamente, Audrey Tatou foi ainda a estrela do novo filme publicitário do mais mítico de todos os perfumes: Chanel nº5 .