
A minha sobrinha mais pequena abre a porta do armário. ‘Posso vestir isto?’ Quando me viro, espetou na cabeça um dos meus esfarrapados tutus românticos e vestiu uma saia branca a arrastar. Coitadinha, parece a Noiva Cadáver.
Mas nunca foi tão feliz na vida. Este é o seu primeiro vestido de baile.
Sempre me fez confusão que todas as meninas, mesmo que ainda nem consigam dizer babete, a primeira coisa que fazem quando abrem um armário é vestirem qualquer coisa até aos pés. Não se trata de serem adultas: se fosse isso, elas estendiam o pé para o salto alto e a mão para a mala, o colar e a declaração de IRS. Não. É o vestido comprido que ainda está nos nossos genes.
Por isso é que as noivas vão todas a correr para os vestidos abajur. Aliás, a única razão válida para uma pessoa se casar é um vestido abajur. Assim de repente, não estou a ver mais nenhuma.
Estranhamente, ainda não houve um filme Disney que fizesse completa justiça à instituição ‘O Vestido de Baile’. A Branca de Neve na prática era criada, a Bela Adormecida passou quatro quintos do filme no exílio, a Pequena Sereia, pronto, tinha escamas, por amor de Deus, a Princesa Sapo sim, tinha um vestido de baile decente, mas era de Carnaval, e não sei porquê, assim não conta, e nem vou falar na Bela do Monstro, que menina quer ter um vestido amarelo, senhores?
Não percebo para que público é que a equipa Disney achava que estava a trabalhar quando fez a ‘Cinderela’ com tanta ratazana em vez de ter dedicado a sua atenção ao vestido. Três quartos do filme são ocupados pelas aventuras de ratos e pardais. Quem é que eles achavam que ia comprar o DVD? OK, que ia ao cinema? Pronto, que ia ver aquilo? Siameses e abissínios? Bosques da Noruega? Às vezes apetece-me emigrar para o século XIX. Provavelmente já tinha ido desta para melhor de a) Parto, b) Cárie, c) Tareia de marido conde. Não interessa. Morta, viva, ou fantasma, eu quero um vestido de baile! Quero um vestido de baile daqueles que até respirar custa! Daqueles que a gente já chegou a Santa Apolónia e a cauda ainda está a lanchar em Alfornelos! Daqueles que dá vontade de dançar toda a noite, de morrer tuberculosa como a Marguerite Gautier, de nos atirarmos para debaixo do comboio como a Ana Karenina!
Antes de escrever isto eu nem tinha tema para o Fim de ano. Raio de época. Não gosto de listas, nem de reviver o ano que passou, nem de fazer promessas para o próximo, nem de me empanturrar de bolo rei, nem sequer gosto da festa da passagem de ano e por mim passava-a a ressonar (sou dessas desmancha-prazeres).
Por isso pedi à minha amiga Isabel Vidal que me desse um tema. ‘Escreve sobre a sensibilidade’, diz ela. Recebeu milhares de presentes e começa a enrolar-me em papel-bolha. ‘Sobre como atualmente somos todos tão sensíveis’, e mais uma écharpe-bolha ao pescoço. E uns agrafos à cinta. E eu a ver de repente o meu vestido de baile. Até comecei a suar frio.
‘Não me agrafes os neurónios, que são poucos’, murmurei.
Agora estou embrulhda em papel-bolha dos pés à cabeça. Gostava de parecer essa senhora da fotografia com esse vestido da fotografia, mas pareço a Noiva Cadáver. Na melhor das hipóteses, um anjinho de Natal da loja do chinês. Sensibilidade. Era lindo, mas não me consigo concentrar senão na minha Ode ao Vestido de Baile. O que eu nunca tive. O que eu só tive numa vida passada, isto se não fui lavadeira de caravelas como me deu uma vez num teste. E acho que até as lavadeiras de caravelas deviam ter um vestido comprido.