“Estupro culposo? Que porra é essa, Brasil?” Alguém tinha de dizê-lo… e acabou por ser Anitta. Esta foi a reação da cantora ao desfecho do caso Mariana Ferrer, mas poderia ser a de qualquer uma de nós.
O julgamento tem feito correr muita tinta e catapultou o termo inusitado para os assuntos mais comentados desta terça-feira, 3 de novembro, nas redes sociais. Isto porque um artigo viral do site The Intercept Brasil avançou que a sentença foi de “estupro culposo”…. What?! Ok, já lá vamos.
Mariana, hoje com 23 anos, acusa o empresário André de Camargo Aranha, 43, de tê-la violado em dezembro de 2018, durante uma festa num beach club de Florianópolis. A jovem garante que foi drogada e, de seguida vítima de violência sexual – uma vez que não estava em condições de dar consentimento -, o que configura violação de vulnerável.
Exames realizados pelas autoridades comprovaram que houve, sim, conjunção carnal e ruptura do hímen da vítima, e foi encontrado sémen do acusado nas cuecas de Mariana. Para além disso, imagens das câmaras de segurança do beach club, registadas no dia do crime, mostram a promotora de eventos, aparentemente grogue, a ser levada pela mão por André de Camargo Aranha para uma área privada da discoteca.
Contudo, em setembro passado, Aranha foi absolvido por falta de provas e, também, porque a decisão do juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, terá levado em consideração a hipótese apresentada pelo promotor Thiago Carriço de Oliveira de que se houve estupro, poderá ter sido culposo. E o que é que isso significa? A suposição de que “não houve intenção de violar”. Confusos? Também nós.
Por exemplo, em julgamentos de assassinato, a constatação de homicídio culposo garante ao réu uma pena mais branda. Quando essa intenção fica comprovada – algo que na lei brasileira é uma agravante -, o homicídio é doloso. Porém, a violação não se encaixa nesta tese. Por este motivo, foi recomendada a exclusão de punição, ou seja, a absolvição de Aranha. Assim surgiu o termo “estupro culposo”, que inundou as redes sociais, apesar de o juiz reconhecer na sentença que tal crime não existe no país.
Humilhação da Vítima
Outro ponto que causou indignação online, inclusive por parte de várias celebridades brasileiras, foi a forma humilhante e desrespeitosa como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado do empresário, tratou Mariana Ferrer durante uma audiência virtual. Por momentos, mais parecia que a influencer era a ré, e não a vítima, num julgamento moral baseado em discriminação e preconceitos sexistas.
O advogado insistiu em mostrar fotografias publicadas nas redes sociais antes do caso e que nada têm a ver com este processo, usando a sensualidade da jovem como munição. O objetivo era claro: desmoralizá-la e desacreditá-la em tribunal.
“Peço a Deus que o meu filho não encontre uma mulher como tu. Vai dar o teu showzinho lá no teu Instagram, para ganhares mais seguidores. Tu vives disso”, afirmou, impiedoso. “Tu trabalhavas num café, perdeste o emprego, não pagavas o aluguer há sete meses. Eras uma desconhecida. O teu ganha-pão é a desgraça dos outros”.
Noutra altura, Rosa Filho mostra outra imagem de Mariana. “Esta foto foi extraída de um site de um fotógrafo onde a única foto a chupar o dedinho e em posições ginecológicas é só a dela”. De seguida, a influencer começa a chorar e pede respeito.
“Eu gostaria de respeito, doutor, excelentíssimo, eu imploro por respeito mínimo”, diz, bastante abalada. “Nem os acusados, nem os assassinos são tratados da forma como eu estou a ser tratada. Pelo amor de Deus. O que é isto? Eu nunca cometi um crime contra ninguém”.
Entretanto, o advogado Cláudio Gastão da Rosa, o promotor Tiago Carriço de Oliveira e o Juiz Rudson Marcos receberam voto de censura e repúdio pelo Senado Federal. Também foi anunciado que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu abrir um processo para investigar a conduta do magistrado.
Reality check
Num ano em que pensávamos que já tínhamos visto de tudo, a natureza humana voltou a surpreender-nos. Desta feita, com a suposição absurda de que um violador poderá agir sem consciência de que está a cometer tal crime e, portanto, que este é perpetrado sem intenção.
Esta situação pode abrir uma caixa de Pandora no Brasil. Já existem demasiadas vítimas de crimes sexuais que se recusam a denunciá-los por inúmeros motivos, com destaque para a vergonha e o medo de represálias. Com este tipo de julgamentos e barreiras institucionais, poderá ser (ainda) mais difícil assegurar que a justiça será feita. E mais: ao ignorar a necessidade de um consentimento expresso para as relações sexuais, o sistema corre o risco de reforçar a cultura da violação.