Neste mundo automatizado, muitos humanos acordam e seguem a sua vida em automático, a imitar e reproduzir gestos, rituais de vida, expectativas geracionais, da família e da sociedade, sem se questionar se o poderiam viver e fazer, comunicar, dar e receber de forma diferente – porque talvez, se parassem para se questionar, muito do que não os satisfaz, ou que procuram e não encontram ou pensam não conseguir atingir, até acontecesse.

E o que é que isto tem a ver com a AMIZADE? Tudo. Porque a vida não é só quem somos, é também quem escolhemos para nos rodear. Porque uma flor quando não floresce, não se muda a flor, muda-se a terra onde está a tentar crescer e não consegue. Se traçar um mapa interior só seu, talvez descubra uma pessoa bem diferente da que vive de acordo com as pessoas à sua volta – também os amigos –, que lhe criam limites que são deles e não seus.

Deixamos correr as relações que temos

A amizade é talvez dos conceitos mais automatizados que existem. Deixamos correr as relações que temos, aceitamos estar com pessoas que já não nos dizem nada porque “não queremos ser maus amigos”, porque a amizade aguenta-se, porque é família, porque é amigo de infância, porque o que é a amizade se não for estar lá para quem precisa quando precisa? Sim, a amizade é tudo isso se deixarmos, porque “sempre foi assim”… Se quisermos ser um saco de boxe podemos dizer que a amizade é isso tudo, se quisermos seguir a ideia de que temos de dar aos outros até nos esgotar, temos de ser ‘people pleasers’, uma expressão muito usada na psicologia hoje e que vem de traumas educacionais de infância que tornaram as gerações dos adultos de hoje em humanos que não questionam.

Sem espaço para crescer

Num mundo tradicional e arcaico onde muito se define pelos limites básicos ou quase imaturos do ‘bom e mau’, não existe espaço para nós, para o desapego que nos deixa crescer e encontrar constantemente mais espaço para encontrarmos a nossa verdadeira identidade, talvez até a nossa verdadeira felicidade. É tabu não se poder admitir que se calhar a família que nos calhou não é saudável para nós, que os amigos que fizemos na infância – com quem criámos ótimas memórias – entretanto cresceram para adultos que já não nos dizem nada, simplesmente porque vivemos experiências diferentes e criámos novos parâmetros que definem os nossos valores e interesses de vida.

Uma caixa fechada

A amizade pode ser um terreno aberto de crescimento, mas muitas vezes é uma caixa fechada onde nos tornamos apenas a imagem de nós pelo que os amigos dos quais nos rodeamos desenharam na sua percepção de nós e que projetam em nós cada vez que nos encontram, sem nos deixar ser quem realmente somos. (leia isto duas vezes).

A amizade devia ser feita de muito mais que conexão, devia ter a sua dose de desapego, para que numa perspetiva distanciada consigamos avaliar quem nos dá espaço para crescer e quem nos abafa constantemente o crescimento. E se estivermos atentos, veremos que sabemos distinguir bem uns e outros. A amizade tem dois lados do espelho e nós podemos escolher em que lado nos posicionar.

Porque a amizade pode não ser para sempre e não deixa de ocupar um lugar especial e importante nas nossas vidas.

Trabalho de conexão e desapego

Há um estudo de psicologia que diz sermos a média das cinco pessoas com quem passamos mais tempo. Sabia? Para que uma amizade evolua ao ritmo de cada uma das duas partes há que haver um trabalho de conexão e desapego constante, e não faz mal. Para que haja evolução da qualidade dos pensamentos que um tem para com o outro também. Há que haver liberdade e aceitação dos ritmos diferentes de crescimento. Curiosidade, verdade e respeito para que haja espaço livre para isso também. Vejo tantas pessoas com medo de ver os outros crescer, evoluir, mudar, e acham que ser amigo é exatamente impedi-los de se tornarem a versão que eles querem ser. Que erro fatal para uma relação, para uma amizade. A base duma amizade verdadeira é exatamente o contrário, é o espaço que se dá e a celebração diária da autenticidade do outro, da sua mudança e diferença de nós.

Muitas vezes pensamos que as relações existem fora de nós. Que existimos nós, existem ‘eles’ e que há uma amizade, um relacionamento no meio dos dois.

Há tantas linguagens de amor e de amizade, e muitas vezes as pessoas num relacionamento, numa amizade, não se dão conta que não falam a mesma linguagem e exigem aos outros que entendam, sem qualquer dúvida, o que precisam deles sem tentar entender o que o outro está a perceber do que queremos daquela amizade. É tão simples perguntar. Tente, em vez de viver uma amizade com expectativa do outro, simplesmente estar ali para ele… vai ver tudo a mudar. Tente perguntar e ouvir sem julgar. São conversas desconfortáveis, mas o que é a amizade se não tiver de vez em quando uma conversa desconfortável?

Pergunte e ouça sem julgar

Faça perguntas que dão espaço para saber a linguagem do outro e aceite. Porque a aceitação também faz parte de uma amizade verdadeira e é a maior inimiga do controle.

  • O que posso fazer para ser uma pessoa melhor na tua vida?
  • O que te faz feliz? Em vez de “tu devias mas é fazer isto ou aquilo”. Ouvir sem julgar, porque assim vai conhecer o seu amigo melhor e apoiar em quem se está a tornar. Em vez de o momento ser sobre si, dê espaço para o seu amigo poder ser quem é.
  • Qual é a tua opinião? Em vez de dar logo a sua, porque ouvir é um dos pilares da amizade, ouvir sem julgar. Será um patamar que a eleva a uma conexão e desapego poderosos. Ouvir e entender que podemos discordar e que a amizade não é fazer o amigo ter a mesma opinião que nós.

Tenha muitas conversas desconfortáveis. Porque a amizade pode não ser para sempre e não deixa de ocupar um lugar especial e importante nas nossas vidas. Porque antes de ter verdadeiros amigos temos de o ser, e ser um verdadeiro amigo não é só estar sempre ali para o outro, é também saber soltar-se e deixá-lo ir, ser mais dele mesmo. Ou também saber desapegar-se de quem tem à sua volta que não a deixa ser mais de si.

 

Instagram: @gracinhaviterbo
*Artigo publicado originalmente na revista ACTIVA nº 383 (outubro 2022)

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