
Quando acabou a ‘viagem’ voltei-me para o grupo e disse, num misto de trauma e divertimento, “isto parecia o Aeroplano”. Talvez tenho sido uma má referência. Afinal, era provavelmente a única já nascida quando o filme saiu, em 1980. É possivelmente uma das minhas comédias preferidas, o humor, infantil e disparatado saca-me as mais genuínas gargalhadas. Quando entro num avião, divirto-me a imaginar os passageiros como protagonistas de uma paródia igualmente sórdida.
No início de qualquer filme que meta aviões, são apresentadas as personagens, para que depois, no auge da tragédia, sintamos alguma afinidade e choremos por elas. Pouco depois de embarcarmos, lembro-me de conter o riso quando um pai – também ele adepto de humor negro – dizia à filha, em tom de chantagem: “o comandante disse que se não te portares bem atira-te pela janela”.
Enfio a cabeça no meu livro – sobre a morte – quando a hospedeira inicia a mímica do costume, tal é a fé na minha sobrevivência em caso de acidente. O comandante volta a falar, desta vez não para anunciar as condições meteorológicas à chegada, mas para informar que o calor ia apertar ainda antes da partida: faltava uma peça no ar condicionado e o voo ia atrasar. As portas foram mantidas abertas para deixar entrar o fresco improvável num dia com máximas de 27ºC.
Foi a partir daqui que a sequência de eventos se tornou no mínimo surreal. O problema do ar condicionado é resolvido – bem, mais ou menos, porque só poderia ser accionado quando se ligassem os motores – mas tínhamos perdido a vez na fila para levantar voo. Aqui, já dezenas de pessoas se amontoavam à porta do WC para trocarem de roupa.
À medida que o tempo ia passando, os passageiros iam ficando mais despidos, ao ponto de eu temer uma versão aérea daquele programa do Discovery em que homens e mulheres tentam sobreviver na natureza totalmente nus.
Quando finalmente a torre de controlo nos dá autorização para sairmos, são fechadas as portas e retiradas as escadas. Agora sim, só nos resta o bafo multicultural e virulento de mais de 100 pessoas para respirar. Só que ainda não é desta, vamos ter de esperar, e, enquanto vai e não vai, duas mulheres exigem sair do avião: manda-se vir as escadas, abrem-se as portas e voltamos a ficar em lista de espera para descolar. Cada vez mais pessoas se apinham nos corredores, encharcadas em suor. Tenho de decidir entre hidratar-me e aliviar-me e dou pequenos goles na Evian que comprei ao preço do champanhe que, começo a desconfiar, já não irei beber nessa noite em Marselha.
Agora é uma pessoa do staff do aeroporto que nos vem falar, o interlocutor é novo, a mensagem antiga: vamos ter de esperar. Não! Afinal vamos partir imediatamente – juro que, no meio do delírio coletivo, consigo ver o fantasma de Leslie Nielsen. A porta do cockpit aberta por causa do calor, o comandante agarrado aos comandos a dizer ‘vamos?!’. Só que não, nunca chegamos a ir. Já podíamos ter aterrado e ainda nem ganhámos asas. Os ânimos exaltados, palavras de ordem como ‘Liguem os motores!’, ‘Abram as portas!’ e “Oxigénio!’. A comédia a ganhar contornos de thriller.
Mais de duas horas depois, voltamos a entrar no velho autocarro de regresso ao terminal. Decididos a jantar todos juntos, apanhamos um Uber. A meio caminho, um furo. Desembarcamos, a rir histericamente. O condutor não fala português e olha-nos desconfiado. Roger Roger!