Portugal não é um país com tradição de raptos. É o que nos têm vindo a afirmar desde que Madeleine desapareceu. Mas Portugal é um país com tradição de melodrama, e é um país onde se aproveitam os medos mais profundos de qualquer mãe para criar ainda mais medo. Apanhadas no meio do caos, temos sentimentos contraditórios. Que fazer depois de Madeleine? O que é que a sua terrível história pode trazer de bom à nossa vida?
Em primeiro lugar, qualquer coisa básica: a capacidade de compaixão. Crianças portuguesas raptadas, felizmente, há poucas. Mas por muito que se possa achar negligentes os pais da menina britânica, quem é a mãe que, por uma tarde, uma hora ou um segundo, não se viu de repente sem a sua criança? Foi o caso de Anabela Chaves, 33 anos, que perdeu a filha de quatro anos num centro comercial. ‘Ela ia entretida, a correr à minha frente, porque aquela era uma hora sossegada e havia poucas pessoas por ali’, lembra. ‘Até que e posso jurar que foi apenas durante uma fracção de segundo que os meus olhos se afastaram dela deixei de a ver. Corri, chamei-a pelo nome, indiferente ao que as pessoas pudessem pensar, entrei nas lojas e nada… O chão desaparecia debaixo dos meus pés. Aquilo não podia estar a acontecer, não podia!’
Estava a um passo de se descontrolar quando viu um segurança. ‘Praticamente ‘ataquei-o’. De imediato, deu ordem aos restantes que começaram a passar o centro comercial a pente-fino. Fiquei sem reacção. Limitei-me a ir atrás dele, a gritar pelo nome da minha filha, a pensar que, se nunca mais a encontrasse, preferia morrer.’ Afirma que foi a hora mais longa da sua vida. ‘Olhando para trás, parece que está tudo envolto em névoa e desespero. Até que o segurança nos disse que tinham encontrado uma menina na sala de jogos. O meu primeiro instinto foi gritar-lhe, dizer-lhe que nunca mais podia fazer aquilo. Mas limitei-me a apertá-la com muita força e a jurar que nunca mais ia desviar o meu olhar.’
E se deixar de vê-lo?
É uma situação angustiante, mas comum no dia-a-dia, e felizmente que a esmagadora maioria dos casos tem um final feliz. Mas, afinal, como é que devemos agir se a nossa criança de repente nos desaparecer da vista? ‘Antes de mais, devem tentar identificar a criança na proximidade do local onde deram pela sua falta’, explica Sandra Nascimento, da APSI (Associação para a Promoção da Segurança Infantil). ‘Caso não sejam bem sucedidos, não percam tempo: é essencial que mais adultos estejam presentes na busca: falar com os nadadores-salvadores, com seguranças, com empregados de lojas ou cafés, com todos os que podem ajudar. Se não der resultados, entre em contacto com a polícia.’ E quando o encontrar? ‘As crianças ficam geralmente muito assustadas, principalmente quando são pequeninas. Lembrem-se que não foi intencional e que ralhar-lhe culpabiliza a criança. Nessas idades, o melhor é os pais demonstrarem que estão felizes por encontrá-los’, lembra Sandra. ‘Mais tarde, podem agir junto deles no sentido de prevenir a situação.’
Resista ao medo
No nosso mundo global, nem é preciso ter uma experiência em primeira mão para que ela nos assuste. Nos últimos tempos, milhares de pais em Portugal tiveram de acalmar as suas crianças, que viam fantasmas de raptores em qualquer canto do quarto. Mas como se explica aos mais pequenos um caso tão dramático como o de Madeleine? ‘É preciso começar por dizer que isso é muito, muito raro, não é uma coisa que seja fácil acontecer-lhes’, lembra Rita Xarepe, psicóloga. ‘Só que, precisamente porque é raro, de cada vez que acontece é muito falado e as crianças ficam com a impressão que é comum.’
Em segundo lugar, os pais têm de lhes fazer sentir que estão protegidos, em vez de lhes passarem os seus próprios medos. ‘As crianças devem sentir-se que não estão sozinhas no mundo, mesmo que os pais não estejam com elas: há os polícias, os professores, os educadores’, afirma Rita. ‘Há sempre pessoas para os proteger.
Complicado de explicar são aqueles casos em que as pessoas que os molestam são aquelas que os deviam proteger… Mas quando o objectivo é dar segurança, convém não entrar por aí.’ Igualmente complicado, se bem que compreensível, é quando estes casos resultam num aumento da paranóia do controlo: ‘É uma consequência muito comum do medo’, explica. ‘Quem já tem predisposição para controlar fica pior. Mas mesmo quem não tem fica sempre com a ideia de que isto podia acontecer ao seu filho.’ Como é que podemos evitar um medo tão básico? ‘É essencial racionalizar!’, defende a psicóloga. ‘Ou seja: temos de perceber o que é que o medo faz à nossa cabeça. Temos de perceber a forma como ‘baralha’ e desarruma a nossa organização mental, e, depois, é importante voltar a pôr as coisas no seu lugar.’
O que é um pedófilo?
Claro que o medo não é sempre um entrave, pode mesmo ser útil: obriga-nos a parar para pensar na forma como estamos a proteger as crianças. Será adequada? Será eficaz? Será exagerada? ‘Mas nem tanto ao mar nem tanto à terra: não vamos assustar ainda mais as crianças’, lembra Rita. ‘Temos de perceber uma coisa: o medo não ajuda ninguém, só atrai mais perigos. Deve haver medo se há razões concretas para isso, se não há, não se deve criá-lo. Se os pais criam nuvens negras na cabeça das crianças, vão acompanhá-las sempre e não ajudam nada. Deve-se dar-lhes o suporte para saberem, se acontecer alguma coisa anormal, o que é que podem fazer.’
Também é importante não utilizar a ‘figura’ do raptor para promover a chantagem, do tipo ‘se não fazes o que eu digo, és raptado’. ‘Isso mais não é do que o regresso do papão’, sorri a psicóloga. ‘Obviamente que não é saudável para as crianças e lhes vai criar medos inúteis. Acham que, se fizerem qualquer coisa má, lhes aparece um raptor. Aí, há uma dificuldade dos pais em não conseguirem pôr em prática a sua autoridade de pai. Retiram-na e transferem-na para outra entidade, seja o papão, o polícia ou o raptor. E isso é muito desestruturante para uma criança: se os pais não estão no controlo, ela torna-se amedrontada porque se sente desprotegida. Se tiver pais que dizem ‘não fazes isto porque eu acho que não deves fazer’, e explicarem porquê, os mais pequenos percebem e sentem-se seguros.’
Então, e a pergunta que milhares de crianças fizeram aos pais nos últimos tempos: ó mãe, o que é um pedófilo? Que é que se responde a isto? ‘É importante explicar que é uma pessoa com uma doença que a leva a fazer coisas proibidas, que vão contra o bem-estar e a segurança das crianças’, lembra Rita. ‘É muito importante frisar que uma pessoa que faz isto não fica impune, há uma lei que protege as crianças. É preciso dizer-lhes que normalmente estes homens são apanhados e vão presos.’ O teor sexual da questão embaraça muitos pais que querem responder aos filhos. ‘Não vale a pena explicar-lhes logo, a não ser que eles perguntem’, defende a psicóloga. ‘As crianças sabem até que ponto precisam de informação: dá-se a base, se quiserem saber mais, perguntam. E aí deve-se responder com toda a clareza que os pedófilos querem ter relações sexuais com crianças.’ E elas não ficam assustadas? ‘É sempre melhor explicar. Podem ficar muito mais assustadas com o que se passa na sua imaginação.’
O que os mais novos devem saber
No site www.missingkids.com encontram-se conselhos úteis que os pais devem passar aos filhos.
. É importante falar sempre com os pais antes de ir ter com amigos, dizendo-lhes o local exacto para onde se dirige e o nome de pelo menos um dos amigos.
. Deve andar em grupo.
. Não deve aceitar nada de estranhos nem entrar em qualquer veículo.
. Se se sentir perdido, deve recorrer a polícias, empregados de lojas ou a mães com crianças. Não deve afastar-se do local onde está.
. Evite usar roupas onde esteja escrito o seu nome, pois alguém pode aproximar-se chamando-o e criando assim uma falsa ‘intimidade’.
. Não deve ter medo de dizer ‘NÃO’ ou mesmo gritar e fugir, caso alguém o tente tocar ou fazer coisas que o façam sentir-se assustado.
Quantas crianças desapareceram
Segundo o Instituto de Apoio à Criança (IAC), em 2006, foram dadas como desaparecidas 31 crianças. Vinte e quatro foram localizadas, duas das quais encontradas sem vida; 14 eram fugas de casa ou de instituições de acolhimento; seis deveram-se a rapto por terceiros e quatro a rapto parental. As restantes sete crianças continuam sem paradeiro conhecido. Em média, a Linha SOS Criança recebe cerca de 3500 chamadas por ano, mas apenas 1% tem que ver com desaparecimentos.
A Polícia Judiciária aponta como desaparecidas, no ano passado, 1198 crianças e jovens, a maioria dos quais entre os 12 e 14 anos. Mas, destes, a taxa de sucesso ronda os 100%, todas foram encontradas. Trata-se geralmente de fugas de casa dos pais, habitualmente motivadas pelos maus resultados escolares.