"Gosto de jogos de estratégia, porque são mais interessantes do que aqueles em que é só mexer os bonecos no ecrã" explica Diogo, 13 anos. "Eu e o meu irmão costumamos jogar aos jogos da era medieval, de combate de espadas. Também jogamos ao Grand Theft Auto. Sei que muita gente acha este jogo violento. Aliás, eu também acho. Mas é tão violento que chega a ser irreal, e por isso não o levamos a sério…."
A mãe do Diogo e do Vasco não vive preocupada com estas ‘actividades’ dos filhos. "Não controlo o que eles jogam, controlo o tempo: só jogam ao fim-de-semana. Mas sei que preferem os jogos de espadas, é quase um regresso ao mundo primário masculino das lutas corpo a corpo. Não acho que se tornem mais violentos por causa disso. Eles já são naturalmente activos, e até acho que os jogos funcionam como um escape."
Quando se fala em video-jogos como o Grand Theft Auto, por exemplo, onde o jogador recebe pontos por matar, roubar e rebentar, há exércitos de defensores dos dois lados da barricada: uns defendendo que os jogos de vídeo não tornam nenhuma criança mais violenta, outros que podem mesmo transformá-la num terrorista.
Claro que, como de costume, a realidade é mais simples do que os estudos: tudo o que nos rodeia nos afecta e nos influencia, de uma maneira ou de outra. Como defendem alguns utilizadores dos jogos, o que afecta os jogadores é a intensidade e a adrenalina. Isso também acontece com um jogo de futebol. Aliás, a esmagadora maioria dos rapazes prefere não o Grand Theft Auto mas os videojogos da Fifa. Problema: não há nada mais intenso que a violência.
A questão é: se nos expomos constantemente a esse tipo de estímulos, é impossível que, por mínima que
seja uma reacção pontual, não tenha qualquer efeito na nossa forma de ver o mundo. Um jogo não transforma nenhuma pessoa normal num psicopata, mas será que não nos vai tornando insensíveis à violência, à sua perturbação e ao seu impacto?
Quem são os jogadores de risco
Alguns estudos sugerem que, enquanto os jogos podem ser mais ou menos inócuos para a maioria dos adolescentes, há crianças especialmente vulneráveis à sua violência. "Este grupo de alto risco inclui as crianças mais novas (com menos de 12 anos), crianças ou adolescentes que são ‘bullies’ (agressoras) ou as suas vítimas, e crianças com problemas na gestão das emoções," defende a investigadora americana Jeanne Funk, no estudo ‘Children and violent videogames’, especialmente focado nestes grupos de risco. ( www.culturalpolicy.uchicago.edu ). "Estes grupos são especialmente vulneráveis à disrupção dos valores morais."
Nota que é necessário muito mais investigação para perceber a reacção dos mais novos à violência dos jogos de vídeo, "embora seja provável que o realismo cada vez maior destes jogos aumente ainda mais o seu impacto."
Mas conclui que, embora os dados ainda não estejam todos reunidos, o mais lógico é que o nosso mundo não seja o melhor para educar uma criança… Leiam o que se segue, que vale a pena: "Quando as crianças cometem actos de violência, o seu comportamento é determinado por várias influências. Muitas pessoas acreditam que os mass media mais violentos criam uma cultura que pode ser tóxica para as crianças. Os jogos de vídeo violentos introduzem um novo elemento: o indivíduo cria e participa nesta violência. É verdade que uma criança, mesmo uma criança vulnerável, não é uma tábua rasa nem uma esponja. Mas a mensagem de que a violência é necessária, divertida, aceitável e sem consequências negativas tornou-se a norma nos meios de comunicação. Esta mensagem pode ser transformada. Entretanto, a investigação destinada a identificar jogadores de risco e factores de protecção deve continuar."
Uma fonte de confiança e poder
Instintivamente, associamos os jogos de vídeo violentos com os rapazes, mas já há muitas raparigas viciadas neste tipo de entretenimento. E elas são cada vez mais novas. "Não acho que fique violenta por jogar estes jogos," defende-se Beatriz, de 10 anos, confessa admiradora do Grand Theft Auto. "Jogo-os porque me dão confiança e poder. Gosto especialmente de jogar quando estou mais irritada: aproveito para dizer asneiras. As pessoas dizem que te tornas má, mas não: os outros é que são maus, e tu tens de matar e roubar para não te matarem e roubarem a ti. É em legítima defesa. E de qualquer maneira, também não fico muito preocupada porque os maus, se não ficam bem matados, podem ressuscitar… Além disso, não jogo durante muito tempo. Só enquanto estou irritada. Do que eu gosto mesmo é dos musicais do Canal Disney."
O ‘depoimento’ da Beatriz coincide exactamente com a explicação da pedopsiquiatra Ana Vasconcelos: "Esses jogos abrangem um conjunto de pessoas a quem ‘dominar o mal’ dá uma sensação de controlo e omnipotência que não têm na vida ‘real’", explica. "O problema é quando o pensamento não passa para o agir. Muitas vezes, esses miúdos falam muito e fazem pouco, porque não se sentem eficientes. Em todas estas actividades que metem muitas imagens, ficção científica, poderes mágicos, o homem é destituído de qualidades que distinguem o ser humano como a compaixão, ou a capacidade de reflexão. Só há capacidades de sobrevivência, de ataque-fuga. E portanto, estes miúdos ficam presos num pensamento primário."
Ou seja, ficam como que transformados em robôs: "Aquele é um agir em que a pessoa não se pensa como agente pensante daquele agir. Temos duas partes do cérebro: uma parte que trabalha com as palavras e os conceitos, outra que trabalha com imagens e emoções. Essas pessoas ficam na mão de emoções muito primárias."
Quando não há o olhar do outro
Outra desvantagem dos jogos: não dão, de facto, nenhuma experiência de vida às crianças. "Não as ajudam a sentir que ganharam experiência, porque elas não fizeram nada de facto", nota Ana Vasconcelos. "Uma acção, para ser verdadeiramente eficaz, tem de ter a reacção do outro. Ali só temos uma reacção de máquina. Essas máquinas retiram-nos a capacidade de sentir o reflexo do outro, o olhar do outro, os mecanismos de empatia. É um mundo a duas dimensões: não há o olhar do outro, eu controlo tudo. Porque o olhar humano é que nos põe os neurónios-espelho a funcionar, o olhar do outro é que nos dá a alma. E os bonecos não têm alma."
Mas o maior perigo dos jogos é a ditadura da imagem. "Eles aumentam o pensamento visual, o que faz com que as crianças fiquem incapazes de se organizar interiormente em palavras. As imagens passam a 30 por segundo, enquanto que nós só dizemos três palavras por segundo. Dizemos ‘Em casa do João bebe-se três litros de leite’ e eles são incapazes de perceber que aquele ‘bebe-se’ quer dizer o João e a família."
Ou seja, só têm o pensamento por imagens e os videojogos vêm agravar esta falta. "As metáforas põem o hemisfério esquerdo e direito em ligação, e eles não têm isso. A poderosa indústria da imagem está a tomar conta deles. As pessoas deixaram de ter a capacidade de indagar por palavras o que o outro quer dizer."
Um vazio cheio de sonhos
Então mas deve haver qualquer coisa que se possa fazer, ou não? "Neste momento, a primeira coisa a fazer é a consciencialização", defende Ana Vasconcelos. "Depois, é preciso voltar a pôr as crianças a escrever, e a ler, e, por exemplo, nas escolas, a fazer rádio. E pô-los a fazer queixas por escrito, que eles adoram. Há que mostrar-lhes a quantidade de palavras que há para usar e que nós não usamos."
O que é que os pais podem fazer? Hoje em dia, é quase impossível controlar completamente. Mas podem falar sobre isso. E é essencial que falem com os filhos sobre os jogos, que respeitem as idades a que o jogo se destina, e que saibam de que tipo de jogo se trata. "Têm de perguntar: o que é que este jogo pode fazer pela educação do meu filho? Os meus filhos sempre jogaram video-jogos, mas o preferido era os ‘Sims’, um jogo criativo e de imaginação. E há outros."
Mas uma boa discussão é igualmente criativa. "É importante dizer às crianças, ‘Conta-me por palavras tuas, dá-me palavras para eu perceber isso.’" Ou seja, nós adultos temos de voltar a dar-lhes o poder da palavra. "Quando se deixa de ser simbólico, fica-se primário, egocêntrico, e tem-se medo, porque não se cuida da sua relação consigo próprio, não se escreve a sua própria narrativa. Se não me conto a mim mesmo, não sei o que é que estou aqui a fazer. E se não tenho identidade, estou sujeito a que os outros me definam a mim. Está a ver o perigo?"
A pedopsiquiatra cita duas das suas frases preferidas: ‘Se não transmitirmos o mundo aos nossos filhos, eles destroem-no’, de Hannah Arendt, e ‘Nós precisamos de vazios para os encher de sonhos’, de Helena Roseta. "Ora eles enchem os vazios de betão e de barulho e de música pimba…" Como é que se cria um sonho? "Com música como deve ser, com espectáculos, com espaços livres. Dar-lhes o desejo e a utopia. E é tão fácil! Temos de criar clareiras de sonho. E cada família tem de descobrir as suas."
OS JOGOS E OS JOVENS QUE MATAM
Não é um jogo que faz um psicopata, embora possa eventualmente agravar o seu estado. "Para entrar numa escola e matar 10 colegas é preciso estar-se muito perturbado, sobretudo perturbações das emoções e dos afectos", explica Ana Vasconcelos. "São casos complicadíssimos, e eventualmente esses miúdos precisavam daquele jogo para se acalmar. São actividades quase masturbatórias. Mas isso são miúdos muito muito perturbados."
ALGUNS DOS PREFERIDOS
Street Fighter – A primeira versão foi lançada no antiquíssimo ano de 1987, mas ainda existe. Consiste num jogo de luta em que combatentes do mundo inteiro se defrontam, cada qual com os seus golpes particulares.
Tekken – Foi um dos primeiros jogos de luta a 3D. Enquanto o Street Fighter exalta a rapidez de comandos, o Tekken destaca o ritmo e a estratégia dos jogadores, com comandos mais pormenorizados.
Grand Theft Auto – O nome significa ‘Grande Roubo de Carros’, e foi-lhe dado precisamente porque na primeira série era possível roubar carros e usar qualquer tipo de armas. Hoje em dia, atingiu uma complexidade muito maior, e a cidade é uma teia de ladrões, gatunos, criminosos e sociopatas que é preciso derrotar.