A Joana tem 18 anos e mais de 50 calças. Calças de ganga, claro, porque além das calças de ganga ainda há as de sarja de todas as cores.
A mãe, Teresa, não estranha e não limita: afinal, a Joana sempre foi boa aluna e excelente pessoa, e a vaidade é herança materna: "Eu na idade dela também era muito vaidosa, só que agora há imensa variedade de lojas para expandir essa vaidade. Ainda por cima, o irmão é bem pior. Ela é muito simples, veste-se à betinha, penso que é esse o termo, mas ele é muito, muito vaidoso. A roupa são eles próprios que a compram, se for eu, corro o risco de a trocarem por alguma coisa muito mais cara."
Ana Freire e Madalena Lupi, directoras da agência de estudos de mercado Web Channel, já fizeram várias reuniões com adolescentes e confirmam as palavras da mãe da Joana: de facto os adolescentes estão hoje em dia mais preocupados com o visual e a imagem.
Mas isso tem várias explicações. "Para começar, depende da idade", nota Ana Freire. "A mania das marcas, por exemplo, começa cada vez mais cedo, por volta dos 9 anos. Porquê? Porque é a idade da insegurança. No fundo também para os adultos a importância da marca tem a ver com a nossa crescente insegurança: a marca funciona como a nossa bengala. E os miúdos apreendem isso cada vez mais cedo."
Tal como a mãe da Joana, ambas afirmam que os pais estão em geral coniventes com a compra de mais uma calça de marca, também eles por insegurança. "Não há nada mais complicado do que ter de lidar com uma criança que é excluída por coisas tão tolas como porque não tem a marca tal", nota Madalena.
"Portanto, não custa nada, ou custa ‘apenas’ dinheiro, que é o bem mais descartável hoje em dia, porque o mais precioso é o tempo. Isto é um círculo vicioso: como as pessoas têm cada vez menos filhos, têm cada vez mais dinheiro para gastar com cada filho, e se uma criança tem, todas as outras querem, e depois as pessoas não têm mais filhos porque não podem dar a cada um aquilo que eles pedem, e por aí fora."
"Dantes, nenhuma criança de 5 anos sabia o que é que tinha vestido", lembra Ana. "Hoje em dia vai às lojas e tem linhas de maquilhagem para crianças… A brincar a brincar, criam-se necessidades artificiais que depois se tornam necessidades sociais."
O reino das tribos
A adolescência não é una, tem cada vez mais sub-divisões. As duas investigadoras dividem-na em ‘adolescentes’ (entre os 9 e os 15, 16 anos), e os ‘jovens’, (os mais velhos). E são os adolescentes cada vez mais novos quem mais se preocupa em vestir ‘como deve ser’.
Ana faz notar um fenómeno que começou lá fora e já chegou a Portugal: há uns anos, eram os jovens mais velhos que ditavam a moda, e os mais novos iam atrás. Agora, são os de 12 e 13, os ‘dreads’, que criam a sua própria moda. "E isso também tem a ver com a tal necessidade de criar uma tribo onde pertencer. Querem-se desmarcar, por um lado, das crianças, e por outro, dos mais velhos. Aqui há uns tempos, esta era uma faixa quase invisível, nem carne nem peixe. Agora já há gente a fazer roupa só para eles, porque as marcas descobriram/criaram (as coisas acabam por se confundir) e aproveitaram o fenómeno. E não só a moda: hoje há discotecas para miúdos de 12 anos, e telenovelas para miúdos de 12 anos."
A relação com a roupa e a imagem depende da idade e da fase de escolaridade: aos 12 eles têm pavor de ser diferentes. Os mais velhos já encontraram cada um a sua tribo e desenvolveram a sua personalidade e estilo. "Nos grupos que fazemos com jovens mais velhos já não se sente essa insegurança e necessidade de pertença", nota Madalena.
"Pelo contrário, gostam de marcar o seu estilo. Enquanto um miúdo de 12 anos acha fantástico ter uma t-shirt com o nome da ‘sua’ marca, mesmo que venha da feira de Carcavelos, um de 15 cospe em cima daquilo. Aos mais velhos importa mais o estilo do que a marca. Nas nossas reuniões, conseguimos ter seis jovens de ‘tribos’ diferentes – betos, dreads, étnicos, normais, etc – sem se antagonizarem nem se anularem. Na universidade, as coisas já não são tão vincadas. É só quando lhes puxamos pela língua que percebemos que a ‘tribo’ ainda lá está, mas já não é tão aparente."
Há uns tempos fizeram um estudo sobre as tribos e chegaram à conclusão que a maior era a seguinte: os ‘normais simpatizantes de.’ "Eram normais mas achavam graça, por exemplo, ao estilo punk", ri Madalena. "Ou então eram normais mas meio-hippies, normais mas assim com duas trancinhas no cabelo. (ri)"
Sim, somos consumistas, e então?
Os próprios adolescentes assumem-se como consumistas. "Eles têm muito poder de compra e auto denominam-se consumistas", afirma Ana. "Mas sem problema nenhum. Qual é o problema de ter 30 t-shirts, acham eles? Problema é matar e roubar…"
A obsessão com a roupa faz parte de um mundo cada vez mais competitivo. "Vou ser cruel", diz Madalena, "mas é assim: dantes, tinha-se dez filhos porque três morriam. Agora tem-se só um, e ele tem de ter uma vida perfeita. Não pode sofrer, não pode passar por frustrações. Ora tudo isto é importante. Por que é que os miúdos hoje se arriscam a ser eternos adolescentes? Porque ninguém os deixa sofrer! E sem sofrer não se cresce. Esta sociedade que temos hoje não é necessariamente boa nem necessariamente má, temos é que ter alguma sensatez."
"Penso que negar estas coisas não é solução," reforça Ana. "Eles até podem ficar génios, mas ficam sem contacto com os outros… Não podemos cair em extremos, e é preciso ver o lado positivo das coisas."
Também há adultos com 50 calças…
Voltamos à ‘betinha’ Joana e às suas mais de 50 calças de ganga. Não será um exagero? "Existem muitos adultos que têm mais de 50 calças sem que isso seja um "problema"…" nota a psicoterapeuta Eunice Neta, responsável pela Consulta da Adolescência e Consulta da Família no SEI- Consultório de Orientação Psicopedagógica. "Para um adolescente, a roupa tem muitos significados, pelo que cada par de calças quererá dizer algo diferente, mesmo quando ficam esquecidas no roupeiro durante meses."
A psicóloga nota que é normal a vaidade e o narcisismo num adolescente. "Com um corpo em constante mudança, com um novo mundo social para descobrir; é natural que os jovens dêem grande importância à imagem: não só em termos de a descobrir (estão horas em frente ao espelho, como Narciso), como também de a experimentar socialmente (mostrando aos amigos as suas 51º calças de ganga)."
Esta importância social da ‘tribo’ e do grupo de amigos também é reforçada. "Mais importante que o estereótipo passado pela comunicação social é o estereótipo do grupo de amigos escolhido pelo jovem. Ao contrário da imagem que muitas vezes os media passam, a adolescência não tem de ser tumultuosa e rebelde. É normal que se passe mais tempo com os amigos do que com a família, é também normal que se oiça mais os amigos que os pais – no entanto, na maior parte dos casos a opinião dos amigos não difere assim tanto da dos pais."
Eles precisam de ser primeiro todos iguais para que depois aprendam a ser diferentes?
"Exactamente! Da mesma forma, necessitam muitas vezes de questionar os valores dos adultos para depois conseguirem integrar alguns desses elementos com elementos resultantes das suas próprias reflexões e experiências. Normalmente, é por volta dos 14/15 anos que o adolescente começa a diferenciar-se do seu grupo, diminuindo a ansiedade de ser "diferente" – desta forma desenvolvem-se competências a nível da tolerância que serão úteis toda a vida. Aprender a ser diferente e a conviver com a diferença é uma aprendizagem de vida que podemos até nunca concluir."
A vaidade é saudável
Apesar de todo o stresse da vida moderna, tudo isto se pode integrar num estilo de vida saudável: mesmo a vaidade. "A vaidade é saudável durante toda a vida, desde que reforce uma autoestima construída "por dentro" e não "por fora"", explica Eunice Neta. "Um adolescente que não se preocupa com a sua aparência, que não tem amigos ou parece não se interessar em tê-los, está a dar tantos sinais de alerta como um adolescente cuja única preocupação é a sua imagem. Nos últimos anos, sempre que falamos de adolescência e imagem quase somos obrigados a falar de anorexia. Eu prefiro falar sobre o que de positivo e normal existe na adolescência!"
Afinal, o que é que se pode fazer para combater esta ideia de que o visual é o mais importante? "É uma ideia difícil de combater, sobretudo porque os adolescentes são peritos em descobrir incongruências nos adultos", recorda Eunice. "Não podemos dizer que está errado e que há coisas muito mais importantes, e depois passar a tarde de Domingo no centro comercial às compras. Mais importante que combater esta ideia da importância da imagem, é fomentar a importância da reflexão, do diálogo e da construção de uma identidade coerente."
E aproveitar bem os filhos: "Os adolescentes são fascinantes com a sua capacidade de reflectir sobre todas as coisas como se as descobrissem pela primeira vez, com a capacidade de se emocionarem e viverem ao rubro todas as emoções. Temos primeiro que dar o exemplo, procurando conhecer bem os filhos, mostrando curiosidade, conversando ou apreciando uns minutos de silêncio em conjunto. Eles podem pedir roupa, mas normalmente há um pedido essencial na adolescência: deixem-me ter o meu espaço, respeitem a minha privacidade, deixem-me ter as minhas experiências… e quando virem que preciso dêem-me colo e conversem comigo."
Mais umas calças?
Como é que se pode responder a mais um pedido de roupa? Ceder a tudo de imediato pode criar filhos incapazes de lidar com a espera e a frustração. Por outro lado, umas calças para um adolescente são mais importantes que umas calças para nós porque continuam uma espécie de senha de integração…
"Ceder a tudo não é ajudar a crescer", lembra Eunice Neta. "Isto é válido para qualquer idade. É natural que na adolescência os pais cedam devido ao cansaço trazido pela contestação e argumentação dos jovens. Mas é muito mais importante conversar sobre os pedidos e negociar soluções do que ceder imediatamente. Os limites impostos pelos pais ajudam os adolescentes a crescer em segurança (sabendo até onde podem ir e provavelmente tentando ir um pouco mais além), mas também permitem que o adolescente experimente em casa aquilo que se passa na sociedade onde existem normas, regras e limites para todos nós."
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