Já lhe chamam ‘O Complexo do Geniozinho’: a infância deixou de ser um espaço de liberdade e experimentação mais ou menos ao sabor do acaso e transformou–se numa sala de aulas constante desde que nascem. Às vezes, antes mesmo de nascer: já há CD para grávidas com sons que prometem transformar o recém- -nascido num futuro Mozart.
O tempo é precioso, nem os bebés se podem dar ao luxo de o desperdiçar sem aprender qualquer coisa.
Então, mas isto não é bom? Qual é o problema de ter crianças mais espertas?
Pode ser ainda muito cedo para tirar conclusões de uma tendência tão recente. Mas o problema é que, estando as crianças hoje definitivamente mais desenvolvidas intelectualmente, podemos estar a correr o risco de perder qualquer coisa preciosa no caminho para a ‘genialidade’: a calma, a alegria, o reconhecimento das emoções, o desenvolvimento da imaginação, a própria capacidade para tomar decisões, e ainda o direito a viver a infância fora de uma redoma tecnológica.
Crescer a correr
Exigimos-lhes que saibam ler antes dos quatro, que saibam contar antes de qualquer outro, que saibam inglês, se possível, antes de uma criança inglesa. E o dia-a-dia é vivido numa correria constante. "Andamos todos stressados, pais e filhos", nota a psicóloga Ana Paula Reis, do Nupe (Núcleo de Psicologia do Estoril). "O dia começa a correr logo pela manhã e stressa não apenas os pais, mas também as crianças."
Ao stresse soma-se a pressão para que saibam muito cada vez mais cedo. Problema: às vezes, pode sair o tiro pela culatra. "Quando há um excesso de estimulação, acontece muitas vezes que a criança depois desmotiva", nota Ana Paula. "No seu dia-a-dia de escola tem de cumprir uma série de rotinas com os outros meninos e passar por aquele trabalho de ‘partir pedra’ que todos têm de fazer. E quando já sabe aquilo, não percebe qual é o objectivo de estar ali e perde o interesse."
Estudos recentes provam que se aprende uma segunda língua mais facilmente até aos sete anos e que o cérebro de um bebé é um ‘computador’ humano, capaz de absorver milhares de unidades de informação por minuto. Mas a sensatez materna tem de perceber quando é que é útil e quando é… de mais.
Agora que estamos quase no Natal, os hipermercados enchem-se de brinquedos electrónicos destinados a um público cada vez mais júnior. Devemos comprá–los ou não? "Esses brinquedos ajudam sem dúvida à estimulação dos sentidos", explica Ana Paula. "Não podem é ser em excesso. Não podemos soterrar as crianças nesse tipo de coisa, porque se receberem um e depois outro e depois outro, elas não têm tempo para aprender a gostar daquilo que têm. Não podemos deixar que os brinquedos funcionem para as crianças como os telemóveis para os adultos: hoje um, amanhã outro…"
Então, mas o que é que estamos a roubar-lhes quando as apressamos? Estamos a pressioná-las, a ‘comer’ etapas de desenvolvimento? Estamos a privá-las de quê? Ana Paula diz que simplesmente… ainda não sabemos. "Hoje em dia é difícil responder a isso, porque as próprias etapas de desenvolvimento tal como nós as conhecíamos estão também elas a mudar. Não podemos pegar naquilo que éramos em criança e impô-lo às crianças de agora. A criança hoje rapidamente absorve várias línguas, desenvolve motricidades com muito mais rapidez graças aos jogos a que é habituada desde pequena, tem outro tipo de desenvolvimento muito diferente. Por isso, não sei se comem etapas ou se as próprias etapas já são outras."
Einsteins de berço
"Esta moda do ‘Einstein de berço’ é uma redução social da criança a um mero instrumento do desejo de distinção social dos pais", critica Anne Dyson, professora na Faculdade de Educação da Universidade do Illinois. "Não acho mal que se ensinem as letras desde cedo, mas a brincadeira deve continuar o seu principal modo de vida."
Problema: como defende Ana Paula, o seu principal modo de vida, hoje, mudou quase radicalmente em relação às últimas gerações. Há quem defenda, mesmo, que as crianças já não sabem brincar. Ou, pelo menos, não sabem brincar sem ‘coisas’. "Hoje, quando falamos em brincadeira, a primeira coisa que nos vem à cabeça são brinquedos", nota Howard Chudacoff, historiador e autor de vários estudos sobre o brincar na Brown University. "Na geração anterior, brincar era sobretudo uma actividade, como trepar às árvores, por exemplo." Dantes, a brincadeira era improvisada, imaginada a partir do que não existia.
‘Agora eu era o herói’, cantava o Chico Buarque, mas quantas crianças hoje em dia dizem isso? Durante o século XX, argumenta o sociólogo americano, a natureza do brincar mudou radicalmente: agora, as crianças brincam com argumento pré-escrito para elas, com brinquedos já pré-brincados. E essa alteração na forma de brincar resultou igualmente numa alteração na forma de pensar: principalmente na capacidade para dominarem as suas emoções e os seus impulsos. Segundo explica a psicologia, o faz-de-conta é um instrumento precioso porque, durante a fantasia, a criança fala consigo própria: agora vou fazer isto, depois aquilo. Se nos lembrarmos das nossas brincadeiras, podemos ver-nos a fazer exactamente isso.
Pois bem: muitas crianças já não o fazem. E o seu discurso privado fica cada vez mais pobre, a linha directa para a sua própria alma interrompida. Geniozinhos? Talvez. Mas conhecendo tudo menos a si próprios. Ou seja, no desejo de darem às crianças todas as vantagens – estímulos intelectuais, avanço em relação aos seus pares, brinquedos ‘estudados’ para lhes desenvolver o cérebro -, sem o saber lhes retirámos aquilo que lhes fazia mais falta.
Ensine-o a dar nomes
Estamos a criar Einsteins de berço, mas depois não lhes damos autonomia: a criança até pode saber ler desde os três anos, mas a primeira vez que sai de casa sozinha é para ir à universidade… "Estamos numa sociedade extremada", nota Ana Paula Reis. "Por um lado, há uma preocupação em relação ao desenvolvimento das crianças, por outro, falta de autonomia. Por um lado, há muita preocupação com o lado cognitivo, por outro, muito pouca com o lado emocional…"
Preocupados com o futuro profissional dos filhos, os próprios pais os encaram como ‘alunos’: "As pessoas vivem obcecadas com resultados escolares, mas depois tudo o que tenha que ver com a educação emocional, que a escola não ensina, é relegado para segundo plano."
Como se passa educação emocional a um filho? "Primeiro, identificando os sentimentos, sem os camuflar. Mostrar- -lhe que aquele sentimento tem um nome, alegria, o outro é a raiva. Tem de dizer, ‘agora estou triste porque aconteceu isto e isto’. Deve dar nomes aos sentimentos e não camuflá-los com a melhor das intenções. Por exemplo, nós, adultos, fazemos muito uma coisa que é disfarçar a tristeza com raiva. Agora imagine uma criança que não tem códigos linguísticos para catalogar emoções."
Ou seja: sabe as latas de açúcar e arroz que as nossas avós tinham a dizer ‘açúcar’ e ‘arroz’? Pois, é a mesma coisa: "É tão simples como isto: pôr uma etiqueta nas emoções. Saber dar o nome às coisas é muito importante. Pensamos que isto é óbvio, mas não é de forma alguma."
Uma história ao deitar
Então, o que é que podemos fazer para não nos deixarmos arrastar na onda dos geniozinhos, mas ao mesmo tempo não perdermos, como os nossos políticos gostam de dizer, ‘o desafio da modernidade’? Sim, podemos estimulá-los: mas os melhores estímulos continuam a ser os pais. Siga os interesses da sua criança, alimente-lhe a curiosidade e tente criar um espaço de calma: "Pelo menos no período em que estamos com os nossos filhos, que seja um período de calma e de qualidade", deseja Ana Paula.
E, já agora, mais prosaicamente, veja televisão com eles: "Eles têm acesso a muita informação indiscriminadamente. Há muita escolha, e compete aos pais perderem algum tempo a escolher com eles os melhores programas."
Se acha que a sua criança tem demasiadas solicitações escolares, converse com os professores. Mas não deixe que fique sem infância em prol de um hipotético futuro brilhante. E, já agora, em vez de fiscalizar os trabalhos de casa, que tal ler-lhe uma história ao deitar? Pode crer que vai fazer mais pela sua capacidade de raciocínio do que muitos computadores infantis.