Maria Sequeira Gomes, 45 anos, professora universitária, não apenas quis adotar crianças mais velhas como recebeu dois irmãos. Assume que não foi fácil, por isso criou um site, ‘Adoptar e acolher’, com a ajuda que teria gostado de ter, e escreveu um livro, ‘Adopção tardia’, sobre crianças e pais que passaram por isso. Site e livro dão aos pais ferramentas muito úteis para ajudar no processo de vinculação, fornecer fontes de informação preciosas e tornar mais fácil um caminho cheio de dúvidas. Em conversa connosco, Maria contou-nos como foi – e está a ser – a vida de mãe adotiva.

Que idade tinham os seus dois filhosquando chegaram a sua casa?

Ele tinha 7, ela 17, embora a conhecêssemos desde os 16. Houve uma proposta de adoção do mais novo e soubemos que tinha uma irmã. Gostei muito dos dois, são miúdos extraordinários.

Muitas crianças para adotar ficam atualmente forada idade em que as pessoas estão dispostas a fazê-lo?

Sim, no ano passado para 23 crianças a adoção já não foi indicada porque elas se estavam a aproximar dos 14 anos, tendo sido encaminhadas para casas de autonomia. Como se aos 14 já não fosse importante terem uma família. A minha filha tem agora 18 anos, ainda é uma miúda, e há muitas coisas que não teve e está a ter agora. O conforto de uma família, de saber que ela é a pessoa mais importante na vida de alguém. Muitas crianças receberam amor das suas famílias, mas não receberam cuidado. Há uma diferença entre ambos: entre amor e as preocupações de mãe como ‘lava os dentes, vai fazer os trabalhos de casa, vamos ao médico’, etc. Os meus filhos estiveram numa excelente Casa de Acolhimento, mas eram dois entre muitos, não havia isto de ‘agora vamos as duas ao cinema’, por exemplo.

Ainda existe muito o preconceito da idade?

Entrevistei famílias que adotaram crianças dos zero aos 3 anos, a idade que os candidatos preferem porque acham que não vão ter problemas, que as crianças chegam em branco. E na verdade essas crianças revelaram dificuldades muito parecidas com as dos meus, que foram adotados bem mais tarde. As dificuldades têm menos a ver com a idade e mais com uma série de outros fatores: o afastamento dos pais biológicos, a experiência de abandono. Quando um bebé é retirado à mãe, sofre uma experiência de abandono, e o mesmo sucede com uma criança mais velha. A única vantagem é que uma criança adotada em pequenina tem mais tempo para construir uma relação com os pais. Por outro lado, com os meus filhos, sobretudo com a mais velha, houve uma escolha consciente, minha e dela, de que queríamos fazer parte da vida uma da outra. Isso fortalece os laços.

Então há vantagens na adoção tardia?

Para mim, sim. É muito mais fácil conversarmos uns com os outros. Uma das mães com quem falei adotou uma criança com 18 meses, e o bebé de cada vez que acordava da sesta chorava desalmadamente porque não sabia onde estava. Faz uma enorme diferença conseguirmos comunicar, fazer perguntas, termos a capacidade de dialogar uns com os outros. Outra coisa importante foi que nunca cortámos a relação com a Casa de Acolhimento. Havia quem dissesse que o devíamos fazer, mas eu sempre achei que não seria bom. Sempre que eles pedem para lá ir, vamos. E fazemos ainda a comida de quando lá estavam – ou tento fazer, porque a cozinheira era bem melhor que eu… (risos) Cortar amarras nunca é bom. A vida deles já é tão feita de rupturas que no momento em que chegam à casa nova deve haver alguma tentativa de continuidade.

Como se faz a criação de um vínculo?

Nunca é imediata, mas isso, como dizem as minhas amigas que tiveram bebés, nem quando eles nascem de nós. No meu caso também não foi. Gostei logo deles, tive muita sorte, mas o vínculo é uma coisa que se constrói. O facto de na Casa de Acolhimento haver vários cuidadores impede a criação de laços mais profundos. Eles têm uma relação muito boa com algumas educadoras, mas um verdadeiro vínculo de maternidade leva tempo a criar.

Porque decidiu adotar?

A minha mãe trabalhou na Casa do Gil, e eu e o meu irmão tivemos algumas experiências de acolhimento familiar enquanto crescíamos. Para mim, a adoção sempre me pareceu necessária e útil, e sempre o quis fazer. É verdade que subestimei alguns desafios. Os pais precisam de ser bem preparados porque vão ser curadores de traumas passados. Tinha 41 anos quando pus os papéis. Disse logo que queria uma criança mais velha e tive muita sorte com a equipa, que me contou de casos de pessoas que também tinham adotado crianças mais velhas. Isso facilitou a minha decisão e ajudou-me a desmistificar algumas ideias. Quando adotamos, só ouvimos falar sobre os casos que correram mal (como nos partos). Então pensámos nas afinidades que poderia ter com uma criança mais velha. Sou professora e disse por exemplo que poderia ser engraçado uma criança com quem pudesse estudar. Na verdade, eles odeiam estudar comigo (risos) e eu percebi que isso era uma utopia. Mas temos muitas coisas em comum.

O que diria aos pais?

Diria para se informarem e lerem muito sobre trauma e sobre crianças adotadas, para contextualizar melhor a raiva e tristeza da criança, percebendo que nada têm a ver connosco. Também vão conseguir melhor evitar gritar ou ameaçar, mesmo quando são desafiados. O ideal é sermos tranquilos e calmos, conseguirmos dizer ‘Está tudo bem, gosto muito de ti, isto vai-se tornar mais fácil’. Às vezes, os pais têm tendência para recorrer à parentalidade tradicional e esquecem-se de que isso lembra estes miúdos das casas violentas onde podem ter estado. Agir com calma leva mais tempo, mas permite construir laços profundos de confiança e evitar reações de medo. E ajuda muito conhecer outros pais. O sigilo na adoção prejudica tanto as crianças como as famílias. Quando escrevi o meu livro, apercebi-me de que tinha outra família adotante aqui no quarteirão, e isso mudou a minha vida, porque nos revezamos com os miúdos, trocamos ideias, ajudamo-nos. Nem toda a gente tem o arcaboiço e a calma para manter o sangue-frio todos os dias e se existisse uma rede de pessoas que passou pelo mesmo era muitíssimo útil para todos.

Há pessoas que têm o fantasmade as crianças lhes fugirem ao controlo…

Totalmente. E é verdade, no sentido em que nós de algum modo somos obrigados a construir um tipo de relação que se baseia numa ideia de confiança e na capacidade de dar escolhas, em vez de ‘tens de fazer isto porque eu quero’. Eu própria, no princípio, percebia que não os conseguia tranquilizar, mas isso é normal. Não nos conhecíamos. São crianças habituadas a muitas regras, que passaram por muitos cuidadores diferentes, e temos de construir uma relação de confiança. Durante o primeiro ano, não nos preocupámos com coisas como as regras à mesa, ou se havia uma birra explosiva em público, só queríamos saber se tinham conseguido dormir, se tinham comido, o básico. Como se fossem bebés.

O que foi mais importante?

Perceber que os meus filhos são especiais, a vários níveis. São muito resilientes, cuidadores, muito espertos e muito teimosos. (risos) Foi isso que os manteve vivos. Mas também têm fases de desafio e rejeição que nos podem magoar, e temos de ser nós, os adultos, capazes de saber dar dois passos atrás e de ter calma. E sabermos que também erramos e termos a capacidade de pedir desculpa. Isso faz muita diferença, porque nunca ninguém lhes pediu desculpa antes. 

De que têm estes pais mais medo?

Que uma criança mais crescida não se habitue a nós… Mas até um filho biológico pode ser diferente dos pais e terá as suas opiniões. A minha filha mais velha no início perguntava ‘e se as minhas opiniões políticas forem diferentes das vossas?’ Expliquei que vivemos em democracia e que não nos cabe impor nada a ninguém. Podemos conversar, argumentar, mas o voto é de cada um. Também creio que os pais têm medo de que o trauma sofrido pelas crianças mais crescidas seja demasiado difícil de curar. E pode ser, mas isso significa não lhes darmos sequer oportunidade? De resto, nunca me preocupei que ‘não saíssem a mim’. Sempre achei que o facto de não herdarem o meu nariz era uma grande vantagem. (risos) Acho que não saem a mim, são muito melhores do que eu. E temos muitas coisas em comum: o sentido de humor, o gosto por música (com a vantagem de eles serem afinados), a curiosidade pelo mundo…

Houve coisas em que mudou?

Sim, temos de nos aproximar uns aos outros de alguma maneira e esse esforço tem de ser nosso. No outro dia, uma candidata a adoção disse-me que não comia carne e que nunca cozinharia carne. Mas a comida é um fator de vinculação importantíssimo e temos de estar preparados para colocar os interesses dos nossos filhos em primeiro lugar. Esse esforço tem de ser feito, porque quando eles chegam a uma casa nova é tudo diferente: os cheiros, os horários, o sítio das coisas. 

E as crianças, tentam aproximar-se ou afastar-se?

Depende da personalidade de cada um e da idade. Muitos pais também não facilitam. Mudam logo a roupa das crianças, trocam o corte de cabelo, exigem muito delas assim que acabaram de se conhecer. Não o fazem por mal, mas é criminoso. Há que dar tempo e respeitar as decisões deles, mesmo quando não seriam as nossas. Em Portugal aumentou muito o número de devoluções de crianças mais crescidas, e isto acontece porque os pais não estão preparados para uma parentalidade de vinculação e os adolescentes com um passado de trauma têm de enfrentar questões difíceis: sou mais parecido com esta família ou com a outra? A minha mãe era uma pessoa má? Será que eu vou ser como ela? Como seriam os meus pais?

Para uma mãe adotiva também existe o fantasmada mãe biológica?

Quando é possível devia haver uma ligação com a mãe biológica, porque isso ajuda os jovens a criar a sua identidade. Assim, na adolescência não haveria nada para descobrir. Hoje já há poucos países com adoções fechadas como em Portugal. Além disso, fala-se das mães biológicas em termos muito negativos, que não me agradam, pois muitas vezes também foram vítimas de pobreza, de exclusão social, violência doméstica, etc. Dito isto, deve ouvir-se as crianças e os seus desejos. Há miúdos que não querem manter nenhuma relação com os pais e isso deve ser respeitado. As crianças têm conhecimento daquilo que lhes aconteceu e precisam de ter voz ativa no assunto. Em Portugal ouve-se muito pouco a criança.

As devoluções seriam evitáveis?

É difícil saber. Talvez haja sempre uma percentagem de adoções que corre mal, como pode suceder com um casamento. Mas talvez fosse possível diminuir as interrupções na adoção se existisse uma maior preparação das pessoas e uma rede de apoio sólida para os pais adotivos. Há dias muito difíceis, e os pais adotivos são supervalentes, principalmente no primeiro ano e durante a adolescência. Seria importante sentirem-se menos isolados, era excelente se houvesse redes de apoio que lhes permitissem desvalorizar algumas coisas ou deixar a criança com outra pessoa para conseguir descansar a cabeça.

É um desafio maior adotar irmãos? Que tipo de questões é que se põem?

Sim, porque os irmãos têm personalidades e necessidades diferentes, e precisam os dois de atenção única. Podia ser importante os pais conhecerem melhor as crianças que lhes chegam às mãos. Por exemplo, eu não sabia o que era uma criança parentalizada (aquela que se transformou numa figura paterna para os pais ou para os irmãos mais novos). As crianças parentalizadas são muito responsáveis e estão habituadas a defender os irmãos. É preciso saber isto, porque ajuda a evitar situações complicadas. Por exemplo, o irmão mais novo não come ao jantar e os pais dizem-lhe ‘não sais da mesa até acabares’. O irmão mais novo chora. E a irmã mais velha defende-o, claro. Vai sempre defendê-lo, e começa-se a gerar uma situação parecida com a que eles tinham em casa, em que o mais velho defende o mais novo daquilo que entende ser uma situação de risco. Assim, vai correr mal. Como pode correr bem? Sabendo pedir ajuda ao irmão mais velho, tornando-o num aliado. É importante não se entrar num esquema punitivo, porque quando a criança vê que os pais são tranquilos e respondem às suas necessidades, o seu nível de ansiedade baixa.

Como nasceu o seu livro, ‘Adopção tardia’?

O primeiro ano de adoção foi difícil e percebi que os pais tinham pouca ajuda, apesar da equipa ótima que nos acompanhou. Senti que precisava de ler muito sobre o assunto, por exemplo. Comecei a ter sessões de pós-adoção com um grupo americano, conheci outros pais, e comecei a perceber que as questões eram comuns. Pensei que um site resolveria isto, mas achei também que poderia ser útil conhecer outras famílias. Com o livro pude ouvir o que alguns jovens adotados tinham para dizer. É mesmo importante sabermos ouvi-los. Chegar a uma família onde tudo é diferente é muito duro. Os pais adotivos muitas vezes estão centrados em si, na sua alegria, e nem se apercebem de como de repente tudo muda para a criança. 

Como funciona o site ‘Adoptar e acolher’?

O site pretende ser um A a Z da adoção, que pode ajudar os pais e as equipas a conhecerem melhor a investigação recente sobre adoção e o que poderá ser importante na parentalidade adotiva. Há várias secções pequenas (desde a alimentação à escola, dos comportamentos desafiantes às dificuldades de integração sensorial). Há fichas de apoio traduzidas de instituições como o Child Welfare Information Gateway, que aprofundam cada tópico, e vídeos da Fundação Spaulding, que mostram os testemunhos das crianças, famílias e pais que explicam as dificuldades pelas quais passaram, etc.

Nunca é tarde para ter uma infância feliz,como dizia a Clarice Lispector?

E nunca é tarde para ter um presente feliz. Há coisas que já não conseguem recuperar, mas aquilo que eles viveram também fez deles as pessoas incrivelmente resistentes e extraordinárias que são.

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