Foto Pexels/Sergey Makashin

Comecemos por pôr as coisas em pratos (mais ou menos) limpos: o que é uma criança rebelde e o que é uma criança malcriada? Pomos as duas no mesmo saco: são as duas ‘crianças difíceis’. Mas não são a mesma coisa.

Uma criança rebelde pode apenas não aceitar ordens à primeira ‘ouvida’: elas perguntam a razão, querem saber porquê, fazem perguntas. Não são necessariamente birrentas, mas não aceitam regras ou restrições facilmente. Como isto não nos dá jeito, muitas vezes dizemos que é malcriada. Não é. É o verdadeiro espírito livre. Se dá trabalho educar um espírito livre? Dá. Mas são geralmente miúdos espertos, dotados, justiceiros (quem tem um lá em casa já reconheceu) e merecem pais com um bocadinho de paciência para lhes responder e não matar a sua curiosidade.

Ok, e os malcriados? Estes também são fáceis de reconhecer: basicamente, é quando aquilo que ele faz ou diz lhe dá vontade de levar a mão atrás, mesmo quando nunca o faria e quando todas as teorias da educação lhe dizem para nunca o fazer.

Problema: nenhum pai ou mãe reconhece que tem um malcriado em casa. Um rebelde é cansativo, um malcriado é ofensivo. Claro que a má-criação depende dos padrões de cada família, e há que relativizar. Mas dito isto, geralmente uma criancinha ‘malcriada’ irrita toda a gente, pai e mãe incluídos, mesmo que assobiem para o lado e digam ‘ah, coitadinho, é uma criança’. O que é verdade: são crianças. Mas isso não significa que podem fazer o que quiserem, que quebrem todas as regras à primeira birra e que façam aquilo que lhes apetece. Portanto, se uma criança nos ofende, vamos lá saber porquê e o que é que fazemos.

Fortes ou frágeis?

“Aquilo a que às vezes chamamos crianças mal–educadas são aquelas que não sabem expressar a sua frustração da melhor maneira”, explica Laura Sanches. Psicóloga clínica e autora do livro ‘Como educar crianças desafiantes’, já se confrontou muitas vezes com crianças a que chamamos difíceis. Mas explica que muitas vezes são os adultos que usam as palavras erradas, quantas vezes para se desculparem a si próprios.

Por exemplo: lembrem-se lá dos pais e avós das criancinhas insuportáveis que vocês conhecem. O que é que dizem delas? ‘Ai o Joãozinho tem uma personalidade muito forte’. É, não é? “E na maioria das vezes acontece exatamente o contrário”, explica Laura Sanches. “Na verdade, as crianças que resistem muito à autoridade dos adultos são crianças muito inseguras, por várias razões.”

Pus-me a pensar em crianças insuportáveis que conheço: as que desatam a gritar quando não conseguem o que querem, as que dizem coisas desagradáveis, as que batem nas outras crianças, que querem, podem e mandam. O mais irritante nestas crianças: os pais e avós delas.

E então, fazemos o quê? “O principal aqui é o foco na segurança: às vezes, temos que dizer-lhes que não gostamos de certos comportamentos, mas mostrando à criança que estamos do lado dela, isto é, corrigimos e ajudamos – isso tem de ser feito em vez de ignorar o comportamento – mas não nos colocamos como antagonistas, como adversários, não nos colocamos em lados opostos, não a fazermos sentir atacada.”

Eu percebo que nada vem do nada, como diriam os monges budistas, mas sinto-me sempre pouco budista quando estou com um miúdo malcriado. “Provavelmente, essas cenas que recorda já não foram incidentes isolados e há coisas que teriam de ser trabalhadas antes”, nota a psicóloga, com bastante razão. Mas em vez de olharem para o lado ou cederem à vontade do miúdo, tudo coisas que vi fazer aos adultos responsáveis, teria de dizer-lhe ‘não podes fazer isso, embora perceba que estejas frustrado’. “Tem de perceber de onde é que aquilo vem e agir em conformidade.”

Pequenos ditadores

Uma coisa já toda a gente percebeu: estamos mesmo a criar ‘reis da casa’, e a culpa não foi (só) da pandemia. “Hoje em dia, temos uma geração de crianças que tipicamente não se deixam orientar nem guiar, a típica criança mandona é cada vez mais frequente”, nota Laura Sanches. Com certeza que já ouviram falar da geração Alpha: são os nascidos depois de 2010 (antes deles veio a Geração X: nascidos entre 1965 e 1980, os Millennials, entre 1981 e 1996, e a Geração Z, entre 1997 e 2010).

Vamos aqui recordar o que nos ensinou a psicóloga Cristina Valente, especialista em gerações, sobre a Geração Alpha: é uma geração de autodidatas, de interessados, de ‘navegantes’, mas também uma geração que não sai de casa e que vai ser ainda mais protegida do que a Z. “A superproteção é um dos maiores problemas desta geração, e já está a ter enormes consequências”, assegura Cristina Valente. “Juntamente com as redes sociais, vem provocar aquilo que as próximas gerações têm de menos bom: o potencial para doenças emocionais, como falta de autoestima, ansiedade, ataques de pânico, depressões e ausência de rumo. Há décadas, mesmo antes da pandemia, que o mundo está a viver uma época de grandes incertezas, e a forma como estamos a preparar as crianças é protegendo-as. Mas isso não as ajuda a desenvolver os músculos da frustração e da resiliência.”

Portanto, ao que parece, nós, adultos, que devíamos prepará-los para os embates do mundo, não estamos a ser uma grande ajuda.

O instinto de defesa

Um dos maiores instintos da Geração Alpha é precisamente o instinto de defesa. “Pode ser ativado apenas porque não há uma autoridade competente na vida da criança, e portanto ela vai ser a sua própria autoridade”, descodifica Laura Sanches. Ou seja, numa situação de stresse, defende-se a si própria como acha melhor. “Há crianças que têm este instinto mais aceso. Quando isto não é corrigido e se torna cristalizado e rígido, já passamos para uma criança de quem não conseguimos fazer nada.”

Então e o que é que se faz para que isto não aconteça? “É importante perceber que situações ativam esse instinto, o que é que o desencadeia. Depois, é preciso haver uma autoridade, porque os miúdos precisam de se sentir guiados e orientados. E depois a criança tem de confiar nessas figuras e respeitá-las, para não sentir que é ela própria que precisa de assumir o controlo da sua vida.”

O problema é que a palavra autoridade é um fantasma muito grande para os pais. “Vemos a palavra autoridade como uma coisa negativa, malvista”, concorda Laura Sanches, “mas aquilo a que chamávamos autoridade há 50 anos, a do ‘cala-te e come’ dos nossos bisavós, não é a autoridade de que precisamos hoje em dia. Uma autoridade de imposição pura não funciona. Mas precisamos de assumir o nosso papel de adultos, coisa que falta muito hoje em dia”.

Falta muito, como? “Vejo os pais cada vez mais imaturos, com muita dificuldade em assumirem o seu papel de adultos, e isto está a piorar. A responsabilidade da maior parte dos problemas de uma criança é nossa! Somos nós que temos de a orientar, ensinar e guiar.”

Agora vou fazer papel de advogada do diabo (e encarnar o espírito de todas as avós de Portugal): então mas não vale mais deixá-las aproveitar a infância e deixar-me a mim fazer tudo o que elas querem? “Deixá-las fazer tudo o que querem não é deixá-las aproveitar a infância, só as torna inseguras, perdidas, desorientadas e ansiosas.” Toma lá que já ouviste. “Porque as crianças sabem, instintivamente, que esse não é o papel delas. Elas precisam de se deixarem guiar para relaxarem. Senão andam sempre em stresse. Claro que uma revolta não é uma chamada de atenção consciente e racional, mas o instinto delas diz-lhes que aquilo é errado.

O cérebro das crianças ainda não desenvolveu zonas fundamentais para o controlo dos impulsos. Importa por isso que não sejam expostas a situações onde esses impulsos sejam ativados, ou então assumimos nós a responsabilidade. Por exemplo, se as levamos a um restaurante sem que tenham maturidade para isso, que sejamos nós a assumir o controlo da situação.”

Tratamos muitas vezes uma criança como se fosse um adulto, esquecendo que ela ainda não consegue controlar a maior parte dos seus impulsos. “Mas muitos adultos também não conseguem, e este é o maior problema. Crescer não significa automaticamente amadurecer. Nós podemos crescer sem aprender a dominar as nossas emoções. Há adultos profundamente imaturos, e quando se tornam pais e avós não conseguem ensinar outras pessoas a crescer.”

Porque não são só alguns pais que muitas vezes são imaturos – os avós também não ajudam. Mas aqui temos de perceber que há avós com mais e com menos responsabilidades, consoante o tempo que passam com o neto. Se é daquelas avós que na prática é uma segunda mãe, temos pena: também lhe cabe a responsabilidade de educar o miúdo. 

Não têm de nos compensar

Mas voltemos ao princípio, às ‘outras’ crianças rebeldes, lembram-se, as que eram espíritos livres. Afinal, não é bom que uma criança saiba pensar pela sua cabeça, mesmo que seja uma teimosa do pior? Não temos muito a mania da obediência? Parece que, mais uma vez, estou a ver as coisas enviesadas. “Claro que é importante dar espaço à criança para se manifestar, para explorar as próprias motivações, para se descobrir a si própria com os seus gostos e vontades particulares”, explica Laura Sanches. “Mas muitas vezes baralhamos estes conceitos todos. Por exemplo, achamos que uma criança obediente não tem espaço para se descobrir, e isso não é verdade. Obedecer aos pais é muito diferente de obedecer a um estranho. Uma criança que obedece aos pais é uma criança que à partida se sente segura, que tem uma boa ligação com eles, que tem facilidade em seguir as suas indicações.”

Isto não vai fazer com que a criança seja futuramente um adulto conformista, antes pelo contrário. “Porque essa base de segurança é o que mais tarde lhe vai permitir ser fiel a si mesma, não seguir só o grupo e não estar sedenta da aprovação de um líder que representa a figura de autoridade que ela nunca teve. As crianças mais inseguras e até as mais desobedientes são as que mais tarde vão ter mais necessidade de se sentirem aceites pelo grupo e pelos pares, e serão essas que vão ter menos espaço para se descobrirem a si mesmas.” Conclusão: os pais não devem ter medo de assumir a sua autoridade e de encontrarem o seu papel de líderes.  

Conselhos para as mães que nos estão a ler: “É muito importante que três coisas se cruzem: não termos medo da nossa autoridade, da aceitação incondicional da criança e de hierarquias, outra palavra que está muito malvista.”

Explique-me lá isso melhor. “Há hierarquias naturais, como a que existe entre pais e filhos. Mas o facto de isto acontecer não significa que tenham menos direitos ou que sejam tratadas de maneira diferente. Temos de perceber é que somos nós os cuidadores e temos responsabilidade para com aquela criança.”

E para terminar, outra armadilha em que muitos adultos caem, vítimas da sua própria fragilidade. Há pessoas tão carentes que fazem todas as vontades à criança de modo a ganharem o seu amor. “Isso é um exemplo da inversão de hierarquias. A criança não vai amar-nos mais por lhes fazermos todas as vontades, tal como nós não amamos menos aquela criança por se portar mal. As crianças não têm de dar nada aos adultos, somos nós que temos de nos bastar para que a criança cresça sem esse peso. Nem toda a gente teve uma infância perfeita, nem toda a gente se sente amada, mas temos de colmatar essas falhas com outros adultos, com terapeutas, connosco próprios. Nunca com os nossos filhos ou netos.”

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