O sonho de Joana Andrade, surfista de ondas gigantes, é o meu pesadelo. E talvez por isso me fascine tanto a sua coragem e determinação. Para mim, não deixa de ser um mistério como é que alguém se mete de livre vontade naquele Canhão da Nazaré, o próprio nome bélico a indicar um impiedoso campo de batalha. Eu que fico enrolada em ondas de meio metro e venho à superfície a arfar após uma apneia de apenas cinco segundos. No documentário sobre a surfista de ondas grandes, ‘Big vs Small’, há uma cena em que Joana se imerge num lago finlandês e nada sob placas de gelo, entrando por um buraco feito com uma espécie de motosserra e saindo por outro. Suspeito que tenha ficado eu mais enregelada do que ela, a bater o dente de medo, só de me imaginar encurralada naquele cenário abominável.
Devo dizer, só para perceberem o nível de cagufa, que nem me qualifico como surfista da banheira, pois fui aquela pessoa que, quando tomava banho em casa, afastava de forma intervalada a cortina para ver se não vinha de lá um facalhão à Psycho de Hitchcock. Lembro-me de ficar aliviada quando a minha mãe decidiu comprar um cortinado com uma faixa transparente ao nível dos olhos a toda a largura. A boa notícia é que entretanto houve uma proliferação de divisórias de banho feitas em vidro.
Voltando ao mar, e aquela tendência das famílias que largam e vendem tudo para dar a volta ao mundo num veleiro? Claro, as que não enfrentam ventos e tempestades só para conseguirem manter-se à tona aqui em terra… Alguém me explique por que havia eu de querer enfiar-me numa embarcação de poucos metros com o meu marido e filhos – por muito que os adore – durante meses e levar com pés e nós numa máquina de lavar à vela sem a hipótese de me pôr a milhas? Seria o mesmo que ser sempre sábado e domingo sem direito a segunda de Aleluia.
Não é por tudo isto que me considere menos corajosa. Afinal, só ser mulher em Portugal é um ato de coragem e não me refiro à heróica capacidade, que facilmente delego, de andar de saltos altos na calçada portuguesa. Por exemplo, todas nós trabalhámos 48 dias à borla em 2022, segundo o mais recente barómetro do Gabinete de Estratégia e Planeamento, que pertence à Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego. É verdade, o fosso salarial aumentou em Portugal pela primeira vez em 10 anos. Realmente, há muitos dias em que tenho essa sensação, a de estar a trabalhar para aquecer, de acelerar a fundo e não sair do mesmo sítio – será sina perversa de jornalista que passou a vida a perseguir furos?
Ironicamente, no surf os prémios monetários dos circuitos mundiais masculino e feminino passaram a ser iguais a partir de 2019. A verdade é que eu e a Joana Andrade temos mais em comum do que inicialmente se podia pensar. Eu fujo do swell mas não consigo evitar a apneia no dia a dia, derrubada pelo teto de vidro, talvez ainda mais sólido do que o gelo finlandês. Ambas travamos as nossas lutas, e seja em Lisboa ou na Nazaré é ‘contra o canhão remar remar’. Lembrar-me-ei disto durante as minhas férias na costa algarvia, quando vierem as ondas do levante e ficar sem fôlego no espumaço de um set anão, vindo à superfície com extensões de algas no cabelo.
Aloha brothers, ou melhor, sisters.