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“Estou a viver com a minha mãe e a minha filha mais velha. A viragem deu-se em 2008 quando me divorciei. No início ainda aluguei uma casa para mim, mas dois anos depois, com um emprego onde ganho bastante menos e as despesas dos miúdos, começou a não ser viável e já estava a gastar as minhas poupanças para o dia-a-dia”, conta Rita Silva. Desde fevereiro que esta assistente comercial de 40 anos vive com a mãe, de 69, e a filha mais velha, de 20 anos. O outro filho adolescente ficou a morar com o pai.

Carla Almeida, também com 40 anos, conta uma história parecida: “Estou a viver na casa da minha avó, com o meu irmão de 35 anos que nunca chegou a sair de casa. Passei por uma separação complicada em 2007. Na altura tinha um emprego como diretora comercial em que ganhava muito bem, mas a multinacional deixou de ter representação em Portugal e fiquei desempregada. Tínhamos uma casa que pusemos à venda quando nos separámos mas não conseguimos vender e deixámos de conseguir pagar as prestações ao banco. A situação arrastou-se e chegou ao pré contencioso do banco. mais tarde conseguimos vender a casa, mas por um valor muito abaixo do que a tinhamos comprado, ficámos ainda  com uma dívida, que ficou a meu cargo porque o meu companheiro já tinha outras dívidas… Eu também tinha outro crédito e basicamente fiquei com uma renda a pagar ao banco… mas sem casa. Primeiro aluguei uma casa para viver e depois , porque as despesas eram grandes, partilhei casa com outra pessoa, mas mesmo assim o encargo financeiro era grande para mim e a solução foi vir morar com a minha avó (os meus pais já faleceram).

Para Teresa Gonçalves, 48, não foi o divórcio ou o desemprego a despoletar o regresso a casa dos pais, mas a espiral de créditos malparados. Funcionária Pública, a diminuição de 200 euros no ordenado juntamente com a abolição dos subsídios de férias e natal, desequilibrou-lhe as finanças. Como muitos outros portugueses navegou os anos de bonança fazendo alguns créditos pessoais além do crédito habitação. Quando o rendimento encolheu e surgiram despesas imprevistas, ficou na corda bamba, sem capacidade de fazer face às despesas. “Tive de pedir ajuda ao banco, fiz uma consolidação de créditos e vim viver para casa da minha mãe até ter a situação regularizada”.

Bênção ou pesadelo?

Estará a desenhar-se, à boleia da crise, uma nova forma de organização familiar? Um regresso à coabitação de várias gerações? Que implicações psicológicas terá para pais e filhos esta coabitação forçada na idade adulta? E que impacto terá para os filhos o regresso à casa de onde se saiu em nome da conquista da autonomia?

“A minha mãe é excelente e tenta que eu não sinta desconforto, mas qualquer pessoa que já tenha tido a sua casa, principalmente com filhos, sabe que é complicado perder o seu espaço, o meu espaço e da minha família”, desabafa Rita Silva. A minha defesa é tentar não pensar no assunto e distrair-me, mas não me vou adaptar, isto não é o meu conceito de vida. A minha filha está na faculdade e se tudo correr bem pode arranjar um part time e deixar de ser uma responsabilidade económica total para mim. O meu objetivo é conseguir ter a minha casa novamente. Entretanto, tento criar o meu espaço aqui e de alguma forma manter um tempo familiar para fazer as coisas à nossa maneira e ter os nossos rituais. Há dias ficámos, eu e os meus dois filhos, a ver um filme. Agora queria arranjar um sítio para passar férias, uma semana só os três, uma casinha, precisamos disso!”.

Novas relações, novas regras

 A adaptação à nova realidade dependerá sempre da relação que se tinha com os pais até então, mas isso nao basta. Mesmoq ue se dêem bem, pais e filhos terão sempre de recriar o relacionamento, escreve a psicóloga Laura Rodrigues da Silva numa tese de mestrado sobre este tema – “Regresso à casa dos pais: relações entre pais e filhos separados” (2008): “Quando os filhos são adultos e principalmente, quando saem de casa dos pais, a relação de dependência transforma-se em relação de interdependência entre as duas gerações. Quando estes regressam é necessário haver uma renegociação das fronteiras familiares”.

Carla Almeida conseguiu fazê-lo com sucesso, no caso da coabitação com a avó. “O facto dela já ter 78 anos e também beneficiar da minha ajuda e companhia ajudou. Foi muito pacífica a adaptação. A minha avó tem noção de que sou uma adulta, que já vivi em casal, e respeita a minha independência e autonomia, o meu espaço. Ao mesmo tempo somos um bocadinho mais unidas agora, partilho mais coisas da minha vida privada do que antes, por exemplo. Na adolescência não era bem assim, até havia alguns atritos. Dividimos as despesas da casa mas é verdade que sabe bem ter alguns mimos, a minha avó espera-me à noite e aquece-me o jantar, se deixo a roupa estendida e chove sei que ela vai apanhar. Por outro lado já não existe o controlo em relação às horas de chegada, apenas o respeito normal de pessoas que vivem juntas e que avisam quando chegam mais tarde ou se não vão dormir. Mas claro que não posso convidar os meus amigos para virem cá jantar e ficarem até às tantas. Não desejo continuar a viver aqui e resisti a fazê-lo, para mim era um falhanço, voltar à estaca zero, mas agora acho que devia ter vindo mais cedo, porque foi muito mais fácil psicologicamente do que pensava que iria ser.”

Ajustamentos inevitáveis

Na nova vida em comum pais e filhos precisam de respeito e independência, há questões práticas a definir, como a reorganização do espaço e tarefas. No caso de haver crianças pequenas toda uma reorganização ligada ao cuidado delas. Os pais podem ter tendência para querer ditar as regras todas ou, pelo contrário, prescindir das suas necessidades em detrimento das dos filhos. “A possibilidade de surgirem relações mais tensas é muito elevada. As rupturas entre pais e filhos na situação de re-coabitação são frequentes”, lê-se na tese da psicóloga Laura Silva. Teresa Gonçalves é o exemplo disto. “Para começar pedir ajuda à minha mãe foi muito difícil porque nunca nos demos bem, a nossa relação nunca foi pacífica, o clássico caso de ‘damo-nos bem quando estamos afastadas’. Custou-me deixar a minha casa que adorava, e está a custar-me estar aqui. A minha mãe tem uma personalidade dominadora e não facilita, felizmente a casa tem espaços separados, apenas com a cozinha comum. Acho que estou num processo de integração, entendo que a minha mãe não é fácil  mas não consigo deixar de me sentir afetada pelo ambiente em casa”.

E se não tiver nada a ver com a crise?

À primeira vista a falta de dinheiro está no topo das razões para estes retorno à casa paterna. A taxa de desemprego os 15% em maio. O crédito malparado vem a seguir: no primeiro trimestre deste ano havia cerca de 2300 imóveis entregues aos bancos por incumprimento. neste contexto, os divórcios e separações,  também a subir nas estatísticas, seriam um  catalizador deste desequilíbrio financeiro. Em maio, o sociólogo Vítor Sérgio Ferreira até falava ao jornal Público desta realidade atual feita de percursos intermitentes: “O universo do trabalho e das relações apresenta-se como algo em permanente mudança. Já não há empregos para a vida e a crescente taxa de divórcios denuncia a fragilidade da ideia dos casamentos ‘até que a morte nos separe”. Tudo a contribuir para o fim das vidas estáveis, e sobretudo previsíveis, dos anos de bonança.

No entanto, o psicólogo Quintino Aires desconfia desta visão do fenómeno e diz mesmo que, ao contrário do que pode parecer, não é a crise a causa dos adultos regressarem a casa dos pais  na maioria dos casos. “Este fenómeno vai além da questão económica, é uma questão de imaturidade emocional e a culpa é dos pais que criaram esta geração. De  resto, isto vale também para aqueles jovens de 30 e mais anos que não chegam a sair de casa, acumulam licenciaturas e no fundo continuam a ver-se como adolescentes. Aparecem-me nas consultas muitos pais cujos filhos regressaram a casa por causa da crise e se comportam exatamente como estes adolescentes rebeldes que não chegaram a sair: com prepotência e arrogância. São pessoas que se acham no direito de receber ajuda dos pais, o que já não é verdade, e o seu narcisismo impede-os de perceber que estão ali por favor. Atendo estes pais, deprimidos porque os filhos lhes desorganizam completamente a vida, e em casos mais extremos, alguns chegam até agredir os pais, que são capazes de os desculpabilizar ‘porque andam nervosos porque não arranjam emprego’. Isto existe, são jovens e adultos acham que o mundo lhes deve, seja o Estado ou os pais”.

“Viver com os pais na idade adulta nunca é saudável”

Depois do 25 de Abril, mais de um milhão de retornados tiveram de recorrer à casa de familiares ou amigos até refazer a vida. Alguns durante 10 anos. Quintino Aires usa este exemplo para recordar que a realidade de vidas difíceis, incertas e em casas alheias não é nova. Em qualquer caso, diz, “é sempre mais saudável partilhar casa com outras pessoas ou  famílias, como se faz de forma natural noutros países, do quevoltar a viver com os pais. É inevitável criarem-se tensões porque a relação familiar nunca é de igualdade como acontece com desconhecidos que partilham um espaço. Ou se cai na violência física ou verbal ou não se verbaliza e apanham-se úlceras”.

O que fazer então? “Estes pais que não souberam usar da autoridade necessária para criar filhos mais maduros dificilmente a vão conseguir impôr agora, seja para impôr limites aos filhos regressados ou aos que não chegaram a sair. São os pais que há 20 anos vinham às consultas porque não sabiam dizer não aos filhos. Temo que haja um rasto disto durante 20 anos, a não ser que se tenha coragem de expor que o verdadeiro problema não é a crise mas a imaturidade emocional dos portugueses. A crise não justifica tudo porque sempre houve precários, e as pessoas tem de saber acautelar o futuro”.

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