Todas as famílias têm histórias para contar e nem todas encaixam na definição tradicional – bem, seja ela qual for. Dezembro é conhecido como o mês da união familiar e, a julgar pelo exemplo cinematográfico, é a altura do ano em que até a família mais desconexa consegue unir-se à volta de um pinheiro ou piano a cantar em uníssono velhos hinos natalícios. E é impressionante como as 12 badaladas do Ano Novo trazem sempre um beijo que salva as almas mais irremediavelmente perdidas ao som do hino da alegria.
Não quero estragar a ‘magia’ do Natal, nada disso.
Que fique bem claro: milésimas de segundos antes, os protagonistas daquele retrato perfeito que não se cansa de admirar estavam aos berros uns com os outros, em parte porque a adolescente Madalena não queria sair do Instagram, onde está “a família que escolheu”.
Por vezes, a pressão para um Natal perfeito é tanta que ficamos desiludidos quando não vemos toda a gente em exata sintonia. Esqueça, os resmungões matinais de sempre não vão, de repente, acordar a cantarolar. Ou não espere que o seu marido, cujo passatempo preferido é mandar vir na estrada, desate a perdoar todos os que fazem as rotundas por fora e veja beleza infinita na condução domingueira do Natal.
Durante muitos anos, Mafalda, 51, passou a noite de Natal com a família do ex-marido por causa da sogra. “Sempre foi uma pessoa doente e todos os Natais vinha com a ladainha de que podia ser o último. O Carlos, que é filho único, cedia à chantagem emocional e lá íamos nós para a ‘Última Ceia’”, conta com a ligeireza que a distância permite. “Só para terem uma ideia, fui casada durante 10 anos, já estou divorciada há 11, a senhora ainda está viva e o Carlos continua a ir lá todas as consoadas, agora com a sua nova família.”
A relação com a sogra é das que mais má fama goza, nem sempre justamente, é certo. Mas é já um clássico e histórias não faltam para contar. Susana diverte-se ao tentar adivinhar o presente que vai receber este ano pelo Natal da mãe do namorado. “Desde que fomos viver juntos que me dá sempre qualquer coisa ‘útil’ para a casa. O ano passado, o Artur recebeu um casaco lindo e eu um amolador de facas. Temo que este ano venha o abre-latas elétrico.” (risos)
Os filhos dos outros
Talvez não haja nada que ponha mais à prova uma relação do que as crianças. Tiago, 41, conta o que já se transformou no lendário episódio da cadeira cor-de-rosa. “Foi em minha casa, estava lá o meu irmão, que tem uma filha da idade da minha. Tinha no jardim uma pequena mesa de plástico, com cadeiras de várias cores. De repente, as miúdas começam a disputar a cor-de-rosa, coisas típicas de crianças. Só vejo o meu irmão a berrar por cima delas, a dar a cadeira à sua filha e a sair porta fora todo zangado. Se aquilo era para distrair as miúdas funcionou, pois rapidamente esqueceram a cadeira da discórdia.”
Pior pior é quando vivemos com os nossos filhos e os filhos dos outros. Quando Fernanda, 37, se apaixonou por Mário, já os dois tinham filhos de casamentos anteriores, rapaz e rapariga exatamente das mesmas idades. As raparigas deram-se logo bem, mas o mesmo não aconteceu com os rapazes. “O filho do Mário era super bom aluno, o meu, mais calão, e ele estava sempre a compará-los, o que invariavelmente resultava num ambiente familiar muito desconfortável.” Foi de tal forma que a relação não sobreviveu ao primeiro Natal que passaram todos juntos. “Falei com o Mário, para tentar perceber o que íamos dar às crianças. Ele ganhava bem mais que eu e também era meu princípio não ceder a todos os caprichos, mais facilmente dava alguma coisa melhor no aniversário. Chegou a altura de dar os presentes, e não queria acreditar: o Mário tinha comprado uma Playstation novinha em folha ao filho e o meu ficou superdesmoralizado a olhar para a caixa de Lego que tinha recebido.”
Os presentes de Natal expõem muitas vezes as diferenças, como testemunha Sandra, 32. “Eu e a minha prima temos filhos exatamente das mesmas idades, mas temos formas muito diferentes de educar: ela dá tudo o que tem e não tem e eu estipulo um orçamento bem mais comedido. Claro que quando nos juntamos no Natal ela dá 100 presentes ao Miguel e eu dou 3 ao Luís. Não sou só eu que fico constrangida, é toda a família que assiste à cena. Assim, este ano já decidimos que não vamos dar as prendas uma a uma. Vai ser tudo ao molho e fé em Deus, para ver se a avalanche de presentes passa mais despercebida.”
Natal em 5/7 minutos
Por falar em molhada, Ricardo, 45, ainda se lembra bem do primeiro Natal que passou em casa da família da mulher, ele que estava habituado a um serão sereno e organizado com o seu núcleo duro. “Em casa da minha mãe, é tudo feito com muita calma, nunca jantamos muito cedo pois ficamos um bom bocado a conversar à volta dos aperitivos. Só depois vamos para a mesa e jantamos sem pressas. Por volta das 11h, sentamo-nos em rodinha e distribuímos os presentes, que abrimos um a um. Quando terminamos, atacamos finalmente os doces, enquanto as crianças se entretêm com os novos brinquedos”, conta Ricardo, que viria a descobrir uma forma completamente diferente de viver a consoada. “Primeiro, a família da Teresa é muito maior e mais barulhenta. Quando chegamos a casa da minha sogra, já estão todos à mesa, prontos para comer o bacalhau, quase nem dá tempo para tirar o casaco ou cumprimentar. Muitas vezes, as crianças até já jantaram. Depois, tudo acontece muito rápido, o jantar, os presentes, que abrimos todos à molhada, com os pais a guardarem imediatamente os 130 presentes dos filhos num saco e a abalarem pouco depois. São mais ou menos 5/7 minutos de Natal.” (risos)
Já Patrícia confessa que ao início achava o Natal em casa dos pais do Luís um bocado enfadonho. “Claro, eu estou habituada à grande confusão, por isso, admito que aquela calma toda me enervava, era como se de repente o Natal acontecesse em câmara lenta – só me lembrava daquelas preguiças no filme Zootrópolis. Passamos muito tempo a abrir presentes, quase todos para o filho único Diogo, que o menino jamais poderá ser exposto à frustração de não receber tudo o que escreveu na infindável lista.”
Os bastidores da foto perfeita
Espero que este texto a tenha munido de ferramentas extra para enfrentar o Natal que se avizinha. Não vá em cantigas, nem mesmo nas da ‘Música no Coração’.
Às vezes, o Natal é só mais uma reunião de família, com as imperfeições e quezílias de sempre. Se acontecerem, maravilha, mas não esteja a contar com grandes mudanças ou reconciliações. A família Addams não vai de repente abdicar do preto e aparecer com camisolas com alces coloridos e duendes iluminados. Crescer tem destas coisas e se ainda acredita que o Pai Natal foi mesmo com o coelhinho no comboio ao circo, então o melhor é arranjar uma terapeuta com alguma urgência.
Se conseguir sobreviver a mais uma quadra natalícia – e a mais umas sessões consecutivas da Mariah Carey em loop – já é mesmo muito bom. Em caso de dúvida, pense na Susana, na coreografia animada que publicou com a sogra e o seu novo amolador de facas no TikTok e em como minutos antes esteve muito perto de dar com ele na cabeça da senhora… Nem tudo o que parece é!