“Para começar, Marley estava morto. Não há a menor dúvida quanto a isso”. Basta ler este princípio para perceber porque é que Dickens foi um dos maiores escritores de sempre. E não só foi um dos maiores escritores de sempre como continua a ser absolutamente atual: quantos Scrooges não conhecemos nós hoje?
O ‘Cântico de Natal’ deve ser o conto mais famoso desta época. Foi filmado e representado milhares de vezes. Mas quem é que de facto o leu?
O velho e avarento Scrooge tornou-se desde o ano em que foi ‘inventado’ (em 1843, ao que consta escrito para pagar dívidas de um Dickens sempre apertado de dinheiro para sustentar os seus muitos filhos) numa espécie de símbolo de todos os egoístas deste mundo. A história começa como todas as históriasde Dickens: há uma personagem muito má (o azedo Ebenezer Scrooge, que odeia o natal e trabalha num escritório) e uma muito boazinha (Bob Cratchit, o seu secretário, pai de quatro filhos em especial um – como se dizia dantes – aleijadinho).
A coisa começa a animar quando, na véspera de natal, Scrooge recebe a visita do seu ex-sócio, Marley, há sete anos morto (e bem morto) a oferecer-lhe uma hipótese de redenção. E o conto torna-se, entre fantasmas, espíritos, passados e futuros, numa viagem não só pela fantasia mas pela alma humana.
É aqui que o ‘Cântico de natal’ se torna revolucionário. Scrooge é muito mau, mas todos nós, através dele, ficamos a pensar: ‘espera lá, e eu? Que fiz hoje de solidário com o meu semelhante?’ (ou o meu empregado, ou o meu filho, ou a minha mulher ou um total desconhecido?) E Dickens faz isso de forma tão sentida, tão encantatória, tão verdadeira, que chegamos ao fim todos nós Scrooge, mas todos nós redimidos pelo verdadeiro espírito do natal.
Além de tudo isto, é muito fácil de ler. Aliás, Dickens havia de se tornar um dos primeiros escritores a fazer leituras públicas (mais uma vez, por estar apertado de dinheiro) e tinha muita noção do ritmo de uma história, das frases que ficam no ouvido, das personagens ‘impactantes’.
Fiquemo-nos, no fim, com o seu princípio:
“Neste pequeno livro fantasmagórico, esforcei-me por criar o Espírito de uma Ideia que não deixasse os meus leitores indispostos consigo próprios, uns com os outros, com a quadra ou comigo. Que ele assombre agradavelmente as suas casas e que ninguém o deseje pousar.”
Um feliz Natal para todos vocês, e que o Espírito do Natal Futuro nunca vos atormente.
‘Um cântico de natal’ – Charles Dickens, Ed. Fábula, E9,95