*artigo publicado originalmente na revista ACTIVA nº344
Joana Benzinho passou o mês de agosto de 2008 na Guiné-Bissau. Foi visitar um amigo que lá estava em missão de serviço e não tinha quaisquer referências, expetativas ou juízos preconcebidos, mas aquelas férias acabariam por mudar a sua vida. “Sempre tive uma enorme curiosidade em conhecer novos povos e culturas fora dos grandes contextos urbanos, o que me levou a vários países em vias de desenvolvimento na Ásia, África e América Latina. A Guiné, nesse contexto, não fugia muito do quadro de pobreza e falta de infraestruturas comuns a tantas dessas nações. A epifania dá-se talvez com o confronto com a dignidade com que o povo guineense enfrenta as dificuldades e a honestidade com que encara os desafios diários.” Como exemplo desses valores, a jurista recorda o dia em que teve um problema no radiador do carro durante um passeio com uma amiga que as obrigou a parar numa estrada no meio do mato. Dos 10 condutores que ali passaram, foram 10 os que ofereceram ajuda. “A solidariedade, preocupação e humanismo que ali encontrei são muitas vezes palavras vãs no mundo que eu conhecia até então.”
E se por um lado Joana ficou sensibilizada com a amabilidade dos guineenses, também é verdade que não pôde ignorar a crise gritante no acesso à educação. Tropeçou nela nas suas voltas diárias a pé pela cidade de Bissau. “Cruzei-me várias vezes com um menino que me queria vender um cacho de bananas que transportava à cabeça. As frutas já estavam com um ar amassado num dos dias em que ele pediu insistentemente que as comprasse, pois faltava uma semana para terminar o prazo de matrículas na escola e os pais não tinham dinheiro para pagar.” A portuguesa, natural de Pombal, ofereceu-se para cobrir aquele valor, “que era uma ninharia para os nossos padrões”, mas a criança respondeu que não podia aceitar o dinheiro sem deixar as bananas. Se regressasse a casa com as duas coisas, o pai ia castigá-lo. “Fiquei sem chão. Engoli em seco, agarrei nas bananas, deixei-lhe o dinheiro da matrícula e acabei por conhecer através dele muitas outras crianças que viviam o mesmo drama.” Até então, nunca tinha cogitado que uma criança tivesse de lutar para ir à escola – e muito menos andar debaixo de sol ou chuva, a vender fruta para poder estudar. “Não é justo expor meninas e meninos de 6 ou 7 anos a esta provação.”
AFECTOS COM LETRAS
Joana regressou a Bruxelas, onde vive há 20 anos e é assessora no Parlamento Europeu, de coração cheio e, ao mesmo tempo, pesado. Na memória, tinha sempre presente a realidade daquelas crianças. Inquieta, sempre à procura de formas de ajudar, partilhou as suas histórias com amigos e reuniu um grupo. Em 2009, nascia a Organização Não Governamental para o Desenvolvimento (ONGD) Afectos com Letras, com a missão de inverter o quadro de iliteracia existente na Guiné-Bisssau. “Por uma questão de princípio, e porque esta minha ação implicava mexer com valores pecuniários, decidi criar uma ONGD que iria permitir dar um apoio efetivo de forma transparente e com rastreabilidade de todos os passos dados e de todo o dinheiro gasto no terreno.” No início do ano seguinte, os projetos da associação começaram a materializar-se. Primeiro, com o cofinanciamento da construção de um jardim infantil na localidade de Djoló, que atualmente é frequentado por 125 crianças. “Pagamos os salários das seis professoras e da cozinheira, e asseguramos o apoio diário bem como o seu funcionamento.” Entre 2010 e 2016, a Afectos com Letras ajudou a levantar mais três estabelecimentos de ensino (dois deles de raiz): uma creche em Varela, no norte, que acolhe 70 crianças; uma escola no bairro de Quelele, nos arredores da capital, que tem mais de 300 alunos, desde o infantário até ao sexto ano, e é gerida de forma comunitária; e outra em Maru Bague, no leste, com 115 estudantes, do primeiro ao quarto ano. “Neste momento, são cerca de 600 os educandos que estudam nas escolas patrocinadas pela Afectos com Letras. Também temos bibliotecas públicas de jardim espalhadas por todo o território nacional que permitem à população aceder à leitura – muitos tiveram o primeiro contacto com um livro através desta nossa iniciativa.”
MÁQUINAS DO TEMPO
Outro projeto de que Joana muito se orgulha é a instalação de descascadas de arroz em povoações remotas. Na Guiné-Bissau o arroz é a base da alimentação e o seu cultivo assume uma enorme importância histórica na subsistência das famílias. Os homens sulcam as terras, a sementeira e a apanha ficam a cargo das mulheres, e as meninas normalmente são as responsáveis pela descasca manual do arroz. Um trabalho que lhes toma entre quatro a cinco horas diárias, deixando-as exaustas. “Imaginem corpos frágeis e pequenos agarrados a um pilão maior que elas durante horas a fio a fazer a descasca. Estas meninas acabam por não ter oportunidade de ir à escola, pois têm que assegurar as tarefas domésticas como gente adulta.” Ao todo, já foram instalados seis equipamentos em diferentes aldeias, sendo que a primeira a receber um foi a de Barambe, em 2014. “Reunimos com a comunidade e propusemos doar uma máquina descascadora se nos dessem a garantia de que as meninas passariam a frequentar a escola. Passados cinco anos, a máquina continua a funcionar de forma exemplar e as meninas passaram a ser mais numerosas que os rapazes na escola.”
Estas máquinas foram revolucionárias nas diversas comunidades: criam tempo para as meninas irem à escola e para as mulheres se dedicarem a outras atividades que poderão ter um valor económico. Criam também um arroz de qualidade nutricional superior, conseguindo-se obter em cinco minutos 50kg de arroz descascado e limpo. O projeto ganhou o terceiro lugar na 10.ª edição do Prémio Terre de Femmes, da Fundação Yves Rocher. “Este prémio representa sobretudo o reconhecimento da importância do papel das meninas e das mulheres na sociedade guineense. Elas são o motor da economia, o sustento da família, a base de funcionamento da sociedade, as guerreiras que diariamente lutam para meter comida no prato dos seus. Fiquei muito feliz por ver este projeto ser reconhecido fora de fronteiras.”
O próximo passo da Afectos com Letras é criar novas oportunidades na comercialização deste arroz, ajudando na sua aprovação como produto biológico. Uma forma de reforçar os rendimentos dos produtores e de trabalhar a consciência ambiental. “Temos mais duas descascadoras de arroz em vias de ser implementadas em mais duas aldeias até ao final do ano.”
UM AMOR CHAMADO ALICE
Ser mãe não fazia parte dos planos de Joana Benzinho, mas o destino trocou-lhe as voltas numa das suas idas à Guiné. “Em 2016, a entrar nos 40, não foi o relógio biológico que me bateu à porta, foi o coração que bateu mais forte quando vi a Alice pela primeira vez.” Foi uma história de amor que se consolidou quando a bebé saiu do orfanato onde tinha sido deixada há poucos dias para uma hospitalização que quase lhe ceifou a vida – e que a jurista acompanhou de perto. “Com menos de um mês de vida, pesava 1,900 kg. Estava muito frágil, não comia, tinha vómitos quase permanentes. Foi impressionante a solidariedade que se criou naquele hospital. Íamos tentando distintos leites antialérgicos para ver se ela não os rejeitava e, entretanto, jovens mães apareceram a propor-nos dar-lhe peito para ver se ela aceitava.” Depois de muitos dias de angústia, quando a recém-nascida aceitou o primeiro biberão, a expectativa foi enorme. O segundo deixou todos num enorme estado de felicidade. “Foi nesse momento que decidi que ia estar ligada àquela menina guerreira para a vida. E iniciei todo um processo que começou por falar com a família de sangue para perceber se estavam seguros de a querer entregar para a adoção, entrar formalmente com o pedido, passar pelas audiências e formalidades habituais no Ministério Público e Tribunal de Menores e, claro, criar condições para que a Alice pudesse entrar definitivamente no meu quotidiano.”
O Tribunal concedeu uma autorização para que Joana levasse Alice de férias para Portugal durante duas semanas. Quando estavam de regresso a Bissau, precisamente no mesmo dia em que a fundadora da Afectos com Letras lá tinha aterrado pela primeira vez em 2008, recebeu uma chamada da sua advogada a dizer que tinha acabado de sair a sentença de adoção. “Sentia que não precisava de ter filhos para me sentir realizada, mas sei agora que foi a entrada da Alice na minha vida que me tornou plenamente realizada como mulher.”
ESPERANÇA NO FUTURO
Atualmente, Joana divide o seu tempo por quatro países. Trabalha três semanas por mês na Bélgica e uma em França. Depois, naturalmente, vem a Portugal numa base de um fim de semana por mês para matar saudades da família e visita a Guiné-Bissau sempre que é possível. O seu patrão já sabe que comprou o ‘pacote Joana/Guiné’ e todas as suas férias são convertidas em tempo de voluntariado, além de as deslocações necessárias fora desses períodos serem facilitadas pela entidade patronal. “Confesso que, por vezes, me falta tempo para dormir, mas quando a vida se leva com entusiasmo e os projetos se constroem com amor, tudo se torna mais fácil.” Por fazer diz que está quase tudo. “O nosso trabalho é uma gotinha no oceano. Tenho um sonho que espero conseguir realizar muito em breve e que está relacionado com as meninas vítimas de casamentos forçados.” Esta é uma realidade ainda muito presente naquele país africano. As crianças, algumas com pouco mais de 10 anos, quando fogem a um casamento arranjado entre famílias, muitas vezes com homens muito mais velhos, ficam entregues a si próprias. Fogem do casamento mas estão também a cortar laços com a sua própria família que não as aceita de volta. “Gostaria muito de conseguir criar uma casa de acolhimento com uma valência profissionalizante, que lhes permitisse obter competências que podem ser o seu escape e garante de uma real autonomia e independência quando atingirem a maioridade. Estas meninas são órfãs de famílias vivas, a pior condição que uma criança pode ter.” Enquanto não dá vida a este projeto, Joana continua a sua missão de fazer pela Guiné aquilo que espera que a filha faça um dia pelo seu país: respeitar as pessoas que lá moram, os familiares e ajudá-las a tentar ter uma vida digna. O que a motiva a fazer mais ou melhor? Ajudar a criar uma sociedade mais justa, onde as crianças possam todas ter acesso à escola, à leitura e a uma infância feliz, independentemente da geografia que as viu nascer.