
É quarta-feira, Leonor Godinho desce a Rua das Gaivotas ao meu encontro. À porta do Vago, reconheço-a de imediato. Tem sido notícia. Pelas razões certas – o seu trabalho como chef: aqui neste bar/restaurante/discoteca onde lhe cabe a curadoria gastronómica; e na ‘Vida de Tasca’, em Alvalade, de onde vem – o prato do dia foi pastéis de bacalhau com arroz de coentros – e para onde voltará a seguir a esta entrevista. “Está a loucura total, está cheio todos os dias, as pessoas estão a reservar com duas semanas de antecedência.”
Sentamo-nos a uma mesa, dois copos de água ‘on the rocks’, mas não tenho de fazer muito para quebrar o gelo. Leonor, 33, é de sorriso fácil, apesar de insistir que “em pequena era uma menina muito mais querida do que sou hoje. Era mesmo uma santa!”
Cresceu “por aqui” – nesta Lisboa que entardece – numa infância que descreve como “muito citadina”, sem grandes temporadas “na terra”. O pai, do Porto, a mãe, da Marinha Grande, a diversidade sempre teve lugar à mesa de família: “Cresci a experimentar coisas diferentes, tanto nos restaurantes onde os meus pais me levavam como em casa.” Talvez por isso nunca tenha sido esquisita. Arrozeira confessa – da infância guarda um fraquinho especial pelo arroz de manteiga –, diz com orgulho que “hoje não há nada de que não goste”.
Ao gosto de comer, também alimentado pelas avós, cozinheiras de mão cheia, eventualmente juntou-se o gosto de cozinhar. Em Roma (a fazer Erasmus) foi romana. “Lá cozinhava muito, foram seis meses em que desenvolvi mesmo muito gosto pela cozinha italiana, por cozinhar sozinha. Éramos 7 num apartamento sem sala, todos os momentos se passavam na cozinha.”
Quando regressou, passou a servir almoços e jantares no seu blog, Bibs – que é como os amigos a chamam, uma “longa história” que hesita em contar. “Eram receitas superbásicas, coisas que eu ia fazendo em casa ou que ia investigando, como molhos, bases…” Do outro lado, as suas receitas encontraram audiência. “O blog correu bem, comecei a fazer coisas, entre elas workshops para o 24 Kitchen.”
Na altura, Leonor Godinho estava na faculdade, a cumprir o que desde pequena acharia que seria o seu destino – ser psicóloga. Já estava a tirar o mestrado em Psicologia Clínica quando decidiu inscrever-se no Masterchef Portugal. “Fui eu que me inscrevi, eu era apaixonada pelo Masterchef Austrália, como toda a gente. Foram três meses da minha vida, porque cheguei à final. Tinha 22 anos, bastante nova a comparar com as outras pessoas e foi uma experiência ótima.”
A final do Masterchef foi o primeiro dia do resto da sua vida. “Foi o início da minha carreira profissional como cozinheira. A psicologia ficou para trás mas ainda terminei o mestrado, entreguei a tese e tive 19 valores.” Afirma-o com o brilhozinho nos olhos de quem se orgulha do feito, e com razão. “A minha orientadora sempre me apoiou imenso, foi uma querida, deixou-me ir, deixou-me voltar…”
Estava decidida a fazer carreira na cozinha. “Sempre fui muito decidida, da mesma forma que decidi ir para psicóloga decidi depois ir para cozinheira.” Mudar de vida era uma questão que estava resolvida. “O Miguel Rocha Vieira, um dos jurados, falou com o João Rodrigues para eu fazer um estágio autoproposto no Altis Belém. Correu tão bem que no fim contrataram-me.” Fez lá a sua escola. “Era muito completo ao nível de Food & Beverage: tem o Feitoria, um restaurante com uma estrela Michelin, um bar e a cafetaria Mensagem, que na altura servia 300, 400 refeições por dia. Passei por todos. “Deu-me tudo aquilo que eu precisava de aprender.” Autodidata, nunca teve formação do ponto de vista formal. “Nunca senti necessidade de o fazer. Ao início, tinha um bocado da síndrome de impostora mas acho que toda a gente tem.”
Os amigos de leonor
Antes de chegar aqui, onde entabulamos esta conversa, Leonor Godinho passou ainda pela Musa – onde, pela primeira vez, assumiu a cozinha como um projeto seu – e pelo Dr. Bernard, na Caparica. O que faz hoje na cozinha do Vago é resultado de tudo o que foi fazendo ao longo do caminho. “É comida de conforto, é snacky mas com um bocadinho mais de elevação, digamos assim. Comida fácil, que só quando se come, se percebe que há muito trabalho por trás.”
Faz tão bem saber com quem contar e a amizade não fica à parte nos negócios de Leonor Godinho. “O Vago é de um dos meus melhores amigos e sempre tivemos a cena de qualquer dia fazermos qualquer coisa juntos.” E o Vida de Tasca só surgiu porque é em Alvalade, ao lado do Cuca Monga, o estúdio de uns grandes amigos meus que têm bandas como Capitão Fausto, Ganso… Eu ia lá almoçar com eles muitas vezes, na altura era a Casa do Alberto. Eles diziam, a brincar, ‘um dia vais ficar com isso e juntamo-nos aqui todos’.”
Será que vão chegar os braços para tantos abraços? Curiosamente, no seu trabalho o contacto com as pessoas não é do que mais gosta. “Não sou introvertida, adoro ter contacto com as pessoas, mas não profissionalmente. Não sou uma pessoa de sala. Mas tenho feito alguma e tem sido mais fixe do que estava à espera. Nos primeiros tempos da Tasca, estava sempre metida na cozinha, mas a cozinha é aberta, o que ao início não foi muito fácil.”
Ficou com a Tasca, manteve o espírito, o menu e os preços de tasca. “É uma tasca mesmo, é tipo dourada grelhada com brócolos e batata cozida. Não é mais do que isso e não se pretende que seja mais do que isso. É um bocado contracorrente do que se está a passar e daquilo que eu faço no Vago. As pessoas têm a mania de dizer que isto não é uma tasca qualquer, mas é, só que a comida é muito bem feita. Se eu faço o meu bitoque com Vaqueiro? Não, faço com manteiga. As tascas e os tasqueiros – ou melhor, tasqueiras – são pessoas que estão a fazer um trabalho, não há nenhum romantismo por trás, e é normal que não tenham as mesmas aptidões que as pessoas formadas ou que trabalham há muito tempo nisto.”
E as mulheres, diz, são quem mais sofre na cozinha. “É uma profissão muito dura, especialmente para as mulheres. Até à haute cuisine, cozinhar era um ofício de mulheres. Quando a alta cozinha começou a rebentar, no início do século XX, em França, tiveram de pôr homens na cozinha para dar importância à profissão, e as mulheres passaram a ter um papel secundário.”
E (caramba!) há dias em que estar na cozinha é estar na corda bamba. “O peso físico é muito, é grande, o stresse é enorme, é preciso ter muito poder de encaixe.” Se ter mão para a cozinha não chegar, Leonor tem outros talentos. “Gosto de gerir equipas, acho que sou uma chef respeitadora, gosto de ter esses valores éticos de pagar bem às pessoas. Gosto da parte da liderança, acho que faço isso bem.” Não é, pois, por acaso, que integra o New Kids on The Block, não a banda – embora Leonor tenha estudado música durante 11 anos e também cante, como o pai, Sérgio Godinho – mas num coletivo de jovens cozinheiros, todos, lá está, amigos. “Temos uma visão diferente daquela ‘old school’. A nossa filosofia é de que não é preciso trabalhar 14 horas para se ser um grande chef ou um grande cozinheiro, não é preciso fazer o staff trabalhar horas a fio. É preciso criar equipas inclusivas, quer a nível do género, quer seja a nível de etnia, quer seja a nível de sei lá… orientação sexual já nem vou dizer porque acho isso tão ridículo.”

Numa outra terra
Leonor sabe bem que ‘nunca ninguém fez arroz de cabidela sem frango nem arroz nem a panela’ e, por isso, não sente a elevada rotatividade de pessoal que tanta gente aponta como o grande problema na restauração. “Para a combater, temos de pagar bem às pessoas, pô-las a trabalhar com contratos, uma coisa que na restauração é muito difícil por causa dos impostos… Eu sou uma pura socialista – não nos podemos esquecer que a riqueza dos nossos negócios é feita pelas pessoas. Há um bocado essa falácia de que ‘ai agora vou ter de pagar 1200, o que me vai custar 1800’, mas, quer dizer, pões mais uma pessoa, trabalhas mais, fazes mais dinheiro!”
E quem na nossa terra está a viver para ganhar? “Tenho muitos imigrantes, são excelentes trabalhadores e recebem o mesmo que os outros.” A diversidade, diz, é possível até numa cozinha dedicada à gastronomia portuguesa. “Ao início, tinha a mania de querer encontrar uma sous chef portuguesa mas depois pensei ‘tenho aqui uma cozinheira nepalesa, incrível, superdedicada, e eu estou com esta ideia encravada na cabeça? Vou mas é ensiná-la.’ E hoje ela faz serviços inteiros.”
Leonor Godinho prepara-se para abrir o Bibs Pastrami & outras sanduíches, em Santos. “As sandwiches são supermenosprezadas e eu adoro fazer comida que parece simples mas que é complexa, na verdade. Tenho uma sandes que já é um marco na minha carreira, uma sandes de pastrami, que eu fazia muito na Musa e depois trouxe para aqui. É um autêntico best seller. É um projeto com outro grande amigo meu.” Tão bom!