É inquestionável que a depressão tem um forte nas mulheres. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a depressão é um dos principais problemas de saúde no mundo desenvolvido, pelo que se estima que esta perturbação mental afete mais de 300 milhões de pessoas a nível mundial. No entanto, é na mulher que se verifica uma maior prevalência da mesma: em Portugal, as estimativas apontam para valores de 2 a 3% para os homens versus 5 a 9% para as mulheres para as formas mais graves de depressão.
Para compreender melhor os motivos para que esta doença tenha uma incidência maior junto das mulheres, bem como as melhores estratégias de diagnóstico, prevenção e tratamento, tivemos oportunidade de conversar com Adriana Moutinho, médica psiquiatra.
- Muitos estudos indicam que depressão é uma doença que afeta mais as mulheres e Portugal não é exceção. Entre os fatores que explicam estes números, qual o peso dos de ordem biológica? Podemos dizer que, em certa medida, as mulheres são “reféns” das hormonas?
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a depressão é uma das principais causas mundiais de incapacidade e em Portugal apresentando uma das mais elevadas prevalências da Europa.
A depressão é uma doença que resulta da interação complexa entre fatores biológicos e ambientais. Isto significa que não tem uma causa única, mas que depende de vários fatores, que ao interagirem entre si aumentam a probabilidade de ocorrerem alterações no funcionamento normal do cérebro e consequentemente a pessoa ficar doente.
As mulheres apresentam maior risco que os homens de sofrer de perturbações depressivas e ansiosas, fator esse que aumenta a partir do início da puberdade. As causas ainda não estão completamente esclarecidas, mas, em parte, parecem estar relacionadas com a vulnerabilidade de algumas mulheres às alterações dos níveis das hormonas sexuais que ocorrem ao longo da vida (mas provavelmente também com variações na expressão genética, fatores imunológicos, etc.). As hormonas sexuais são importantes reguladores da atividade neuronal, nomeadamente com efeitos na neuroplasticidade, neuroinflamação e comportamento. Assim, não é de estranhar que ocorram variações no funcionamento cerebral durante a puberdade, gravidez e pós-parto, menopausa, mas também após um aborto ou devido às flutuações hormonais ao longo do ciclo menstrual.
- Há fases da vida em que devem estar mais atentas a alterações de humor, por exemplo? Fases como a gravidez, menopausa, pré-menstrual… Nestes casos, o tratamento deve ser interdisciplinar?
As variações do humor são, de forma geral, normais, sendo expectável que existam diferentes reações emocionais, por exemplo, em resposta a acontecimentos externos. Desta forma, a tristeza não é sinónimo de depressão, é uma resposta natural à perda, derrota, desilusão, trauma ou catástrofe. O que define a doença é a intensidade excessiva da tristeza, acompanhada por determinados outros sintomas típicos, a duração desses sintomas (superior a 15 dias) e o compromisso da capacidade funcional da pessoa doente.
Em particular, no caso das mulheres, as hormonas sexuais parecem desempenhar um papel muito importante na regulação do humor. Em algumas mulheres, e associadas a outros fatores de risco, parecem contribuir para o desenvolvimento de perturbações depressivas e ansiosas, em especial nas fases da vida em que essas modificações hormonais são mais evidentes. Essa vulnerabilidade é especialmente relevante no período perinatal, i.e. desde a conceção até 12 meses após o parto. O pós-parto é, sem dúvida, a fase da vida com maior risco para o início e/ou recorrência de uma doença mental, em particular de doença mental comum, como a depressão ou a ansiedade, cuja prevalência, nesta fase da vida, se estima entre 15-20%.
A abordagem diagnóstica e terapêutica deve ser sempre multidisciplinar, sendo de extrema importância a sensibilização dos médicos de diferentes áreas de especialidade para a saúde e doença mental da mulher, visto que na maioria dos casos o primeiro contacto com os serviços de saúde não será diretamente com a Psiquiatria, mas provavelmente com o Médico de Família, o Ginecologista-Obstetra ou até com o Pediatra dos filhos. E é absolutamente essencial um diagnóstico e intervenção precoce, porque se sabe que isso melhora o prognóstico.
- No caso dos fatores socioeconómicos, temos facto de muitos estudos indicarem que o peso das responsabilidades familiares, ainda recai de forma desequilibrada sobre as mulheres. Essa é uma das justificações para a maior incidência desta doença entre as mulheres? O peso de se ser ‘perfeita’ – como mãe, profissional e mulher – justifica também este quadro? São as mulheres demasiado exigentes consigo próprias?
Como já referi, a depressão é uma doença com uma origem multifatorial, ou seja, resulta não só de fatores biológicos (genéticos, hormonais, imunológicos…) mas também ambientais, como, por exemplo, um baixo nível socioeconómico, fraco suporte social e familiar, vivências traumáticas ao longo da vida em particular na infância, violência doméstica…
Os fatores culturais ligados ao papel da mulher na sociedade – enquanto mães, esposas, profissionais – além das expectativas da própria mulher sobre como espera desempenhar todos os seus papéis exemplarmente, sem descurar nenhum, podem sem dúvida funcionar como um fator de stress psicossocial relevante, que pode contribuir para uma doença mental. Contudo, muitos dos fatores socioeconómicos não são específicos para o sexo feminino, pelo que não servem só por si para justificar a maior prevalência de depressão nas mulheres. Aliás, segundo dados epidemiológicos da Organização Mundial da Saúde (OMS), o padrão de associação entre a prevalência das perturbações psiquiátricas e o género é consistente para a maior parte dos países a nível mundial estudados, independentemente do grau de desenvolvimento económico. Em suma, os fatores biológicos parecem ter um papel mais determinante neste caso.
- Há também o peso da imagem corporal, agravada pela pressão das redes sociais. Isto é notório na sua prática clínica? Nomeadamente, entre as adolescentes?
A nossa saúde mental é influenciada pelas nossas interações sociais no dia a dia, e não podemos esquecer que atualmente uma parte significativa das interações sociais dos indivíduos acontece online, através das redes sociais. Penso que não podemos diabolizar estas plataformas, que podem ser ótimas ferramentas para as pessoas interagirem, conectarem e se apoiarem umas nas outras, promoverem o sentido de comunidade e manterem relações que não seriam possíveis de outra forma, o que pode melhorar a saúde mental, se a informação obtida for correta e bem aplicada.
Por outro lado, o aumento do uso das redes sociais pode provocar um desejo excessivo de estar conectado, promover experiências negativas, influenciar negativamente a autoestima e autoimagem e amplificar comportamentos de risco, em particular nos mais novos, o que obviamente pode afetar negativamente a saúde mental dos indivíduos. No início deste ano foi publicada uma revisão científica sobre este tema numa revista médica, que concluiu precisamente que as redes sociais são “uma faca de dois gumes” no que diz respeito à saúde mental, mas que será importante investir no potencial positivo, promovendo, por exemplo, a educação e ferramentas de navegação online construtiva nas escolas, por forma a melhorar a autoestima e saúde mental dos jovens.
- De que forma a pandemia agravou o problema da depressão entre as mulheres? Quais as queixas mais comuns?
A evidência mais recente tem demonstrado que houve um aumento, a nível global, da prevalência de depressão e perturbações de ansiedade durante a pandemia de Covid-19, , afetando de forma mais significativa as mulheres e os jovens, e que as variáveis relacionadas com a pandemia influenciaram diretamente esse crescimento. Por exemplo, em países com maior taxa de infeção por SARS-CoV2 a prevalência de depressão e ansiedade teve um aumento mais significativo.
Os principais fatores apontados para justificar estes dados foram, por um lado, os efeitos do próprio vírus no organismo, diretamente no cérebro ou indiretamente pela resposta inflamatória sistémica que ele provoca, e, por outro, os impactos sociais e económicos, que se sabe afetarem mais a classe feminina. As mulheres têm maior risco de ficar em desvantagem económica devido aos salários, que são de uma forma geral mais baixos, e vínculos laborais menos seguros que os homens, com maior ameaça de desemprego. Por outro lado, as responsabilidades familiares, acrescidas com d encerramento de escolas e com vários casos de familiares doentes, tendem a pender sobre as mulheres. A juntarmos a tudo isto, o facto de terem ainda maior probabilidade de serem vítimas de violência doméstica, cuja incidência aumentou durante os períodos de confinamento. No fundo, a pandemia veio acentuar, drasticamente, a desigualdade de géneros.
- Quais os principais sinais a que devemos estar atentos no caso de um quadro depressivo e que nos devem levar a pedir ajuda?
Os principais sintomas de depressão são tristeza intensa, irritabilidade, choro fácil, falta de prazer e interesse nas atividades que antes eram prazerosas, diminuição da energia, sentimentos de angústia, incapacidade ou culpa, desesperança, alterações do sono e apetite, ideias de morte ou suicídio. Estes sintomas têm de estar presentes na maior parte do tempo, durante um período de, pelo menos, duas semanas e causarem diminuição da funcionalidade nos vários contextos da vida da pessoa (laboral, familiar, social…). Qualquer pessoa que apresente sintomas deste tipo e esteja em sofrimento deve procurar ajuda médica, para avaliação, diagnóstico e início do tratamento adequado o mais rapidamente possível.
- De que forma a ansiedade – uma das primeiras expressões de que algo não está bem – pode conduzir à depressão? Ou são dois quadros clínicos autónomos que se confundem muitas vezes?
A ansiedade é uma sensação de nervosismo, preocupação, medo ou desconforto, sendo uma reação normal a uma situação de ameaça ou stress psicológico e desempenha um papel fundamental na sobrevivência. Quando alguém se vê perante uma situação perigosa ou geradora de medo, a ansiedade desencadeia uma resposta de luta ou fuga. Nesse momento, são ativadas uma série de alterações fisiológicas (por exemplo, aumento da frequência cardíaca, hipervigília…) que preparam o corpo para reagir. Numa fase inicial os efeitos da ansiedade podem ser positivos, aumentando a performance, mas só até certo ponto. Se esta continuar a aumentar passará a ser mal adaptativa e a eficiência do desempenho vai começar a diminuir.
A ansiedade é considerada uma doença quando ocorre em momentos indevidos, com frequência excessiva e/ou é tão intensa e duradoura que interfere com as atividades normais do quotidiano. As perturbações de ansiedade são extremamente prevalentes e embora possam ser entidades nosológicas independentes, com critérios de diagnóstico bem definidos, surgem muito frequentemente associadas a outras perturbações psiquiátricas, nomeadamente à depressão.
- As mulheres são também que mais facilmente recorre a ajuda médica. Como se explica esta maior disponibilidade das mulheres face aos homens para enfrentar de frente as questões de saúde mental? A nossa literacia emocional é um fator positivo neste processo?
Os comportamentos de risco e preventivos para a saúde são influenciados pelo género, assim como as manifestações das doenças, a referenciação e/ou aceitação de determinadas intervenções terapêuticas e a resposta a esses procedimentos.
Nem sempre as mulheres procuram ajuda médica mais facilmente que os homens. Exemplo disso são as doenças cardiovasculares, em que geralmente as mulheres subestimam o seu risco e procuram ajuda mais tardiamente que os homens.
No caso das doenças mentais no geral, e da depressão em particular, as mulheres tendem mais facilmente a reportar os seus sintomas a terceiros e procurar ajuda médica. De uma forma geral, nas mulheres a depressão tende a surgir em idades mais jovens, durar mais tempo e ter maior probabilidade de recorrência; mais frequentemente está associada a fatores de stress psicossocial; é mais sensível às alterações sazonais; frequentemente surgem sentimentos de culpa e ruminações negativas; há maior probabilidade de se associar a perturbações de ansiedade e do comportamento alimentar; as tentativas de suicídio são mais frequentes (embora as mortes por suicídio sejam menos frequentes que nos homens). No caso dos homens, um episódio depressivo tende a apresentar-se mais frequentemente com queixas de irritabilidade, agressividade ou violência, abuso de substâncias, comportamentos de risco e queixas somáticas, o que pode “camuflar” a depressão e dificultar o diagnóstico.
Na verdade, fatores sociais e culturais influenciam a maneira como mulheres e homens são ensinados a expressar as suas emoções de forma diferente. O estigma associado às doenças mentais existe em ambos os sexos. Contudo, os homens são geralmente influenciados por ideais tradicionais de masculinidade, em que se espera que sejam autoconfiantes, emocionalmente controlados e estoicos, o que afeta a maneira como expressam os seus sintomas depressivos. A somar a isto, o viés dos próprios profissionais de saúde, que tendem a considerar a depressão como uma doença das mulheres também pode contribuir para o subdiagnóstico de depressão nos homens.
- A depressão tem várias fases e, se diagnosticada a tempo, podemos falar de uma cura?
A depressão é, numa grande percentagem dos casos, uma doença aguda. Exige avaliação médica para um diagnóstico precoce, sobretudo porque é importante que se avalie a pessoa do ponto de vista global para fazer o diagnóstico diferencial, ou seja, se possam excluir outras causas médicas não psiquiátricas para os sintomas. Estabelecido o diagnóstico, com base em critérios bem definidos, deve iniciar-se o tratamento o mais precocemente possível. O tratamento de primeira linha é farmacológico, em particular com antidepressivos, podendo ser associados a psicoterapia cognitivo-comportamental. É muito importante salientar que os antidepressivos são fármacos altamente seguros (e que não provocam dependência), que existem opções terapêuticas que se podem usar em todas as fases da vida (nomeadamente na gravidez e durante a amamentação) e são extremamente eficazes. O objetivo do tratamento é a remissão dos sintomas, ou seja, a “cura”, devendo o tratamento farmacológico ser mantido por um período de manutenção de 6 a12 meses, após remissão dos sintomas (no caso de um primeiro episódio depressivo).
- Fala-se muito de depressão crónica. Mas é importante passar uma mensagem de esperança? Afirmar que a depressão crónica não é sinónimo necessariamente de uma vida sem qualidade…
Quando se fala em “depressão crónica” pode estar a referir-se a duas entidades diagnósticas diferentes: distimia – quadro depressivo ligeiro, mas persistente por um período superior a 2 anos; perturbação depressiva recorrente – que como o nome indica consiste em episódios depressivos (2 ou mais) repetidos ao longo da vida com intervalos livres de sintomas entre eles. O risco de recorrência de um episódio depressivo depende de vários fatores, nomeadamente sexo feminino, história familiar de depressão, outra doença psiquiátrica concomitante, doença médica crónica comorbida, longo período de depressão não tratada, abandono precoce ou abrupto do tratamento, fatores de stress psicossocial. Além disso, o risco de recorrência aumenta a cada novo episódio depressivo.
O tratamento é idêntico ao anteriormente referido, embora a duração deva ser mais prolongada, durante pelo menos dos anos e, em alguns casos, mantido cronicamente como profilaxia de recaídas.
Obviamente que podemos passar uma mensagem positiva porque a depressão é uma doença do cérebro, cujo tratamento é efetivo, não provoca dependência, não perde eficácia ao longo do tempo e não provoca efeitos secundários a longo prazo. Mas não podemos negligenciar esta patologia, porque se não tratada acarreta necessariamente aumento da morbilidade e mortalidade por várias causas e diminuição da funcionalidade e qualidade de vida.