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O nosso sistema imunitário tem como função proteger-nos de microorganismos externos agressores através da produção de um ‘exército’ de anticorpos que os combatem. Mas o que acontece quando o sistema imunitário não reconhece os seus próprios agentes defensores? Foi o que quisemos saber.

O que são doenças autoimunes?
O sistema imunitário defende os nossos órgãos e sistemas das agressões externas, de infeções, por exemplo. As doenças autoimunes surgem por falta de competência do nosso sistema imunitário, quando este sofre uma desregulação. Nós temos alguns antigénios com que o sistema imunitário convive sem agredir. A determinada altura, há uma perda de tolerância do nosso sistema imunitário e ele vai reagir contra esses antigénios próprios do organismo com a formação de autoanticorpos que causam danos orgânicos nos órgãos, nos tecidos, nos sistemas.

Quais são as doenças autoimunes mais comuns?
Há muitas doenças autoimunes – o lúpus eritematoso sistémico, a artrite reumatóide, a psoríase, a tiroidite de Hashimoto, a esclerose múltipla, a diabetes tipo I, a síndrome de Sjögren… – temos conhecimento de mais de 70 doenças autoimunes. Destas 70, a maioria são doenças do foro reumatológico, e as mais frequentes são a artrite reumatóide e depois o lúpus eritematoso sistémico. Estas também são das mais comuns em Portugal. Mas há muitas outras doenças que a reumatologia diagnostica e trata, como as doenças autoimunes musculares, as miopatias idiopáticas autoimunes, a poliomiosite, a dermatomiosite, a esclerose sistémica, as doenças mistas do tecido conjuntivo…

Já se sabe por que o nosso sistema imunitáriose vira contra nós?
Não se sabe quais são as causas, pensa-se que possam ser do foro genético, até porque já são conhecidos mais de 100 genes que estão por detrás dessas doenças. Apontam-se também como causas algumas infeções víricas e ambientais para o aparecimento dessas doenças, mas a causa permanece de etiologia desconhecida.

As mulheres têm uma incidência maiorde doenças autoimunes?
Sim, as mulheres são as mais atingidas, pensa-se, por isso, que poderá haver um papel das hormonas sexuais nas doenças reumáticas autoimunes. Os homens têm o mesmo tipo de doenças, mas, por exemplo, em relação ao lúpus em cada 10 doentes 9 são mulheres. Esta proporção marcadamente feminina acontece em todas as doenças autoimunes. Na artrite reumatoide, por exemplo, há um pico de incidência nas mulheres entre os 35-45 anos, já o lúpus eritematoso sistémico atinge mulheres mais jovens em idade reprodutiva, o que traz mais problemas em termos de tratamento e de prognóstico. Estamos a falar em picos de incidência, mas na verdade estas doenças podem ser transversais a qualquer faixa etária. Nós temos doenças reumáticas autoimunes em crianças, adolescentes e adultos jovens, não são doenças reumáticas de idades avançadas. Por exemplo, 10 a 20% do lúpus juvenil acontece numa população em idade pediátrica, abaixo dos 16 anos, e habitualmente estes casos revestem-se de prognóstico mais grave do que nos adultos.

Artrite reumatóide e lúpus eritematoso sistémico são duas das doenças autoimunes mais comuns e que atingem mais o sexo feminino.

Como é feito o diagnóstico?
Temos de fazer a história clínica, e as manifestações clínicas são muito importantes. Depois apoiamo-nos em exames analíticos, imagiológicos e na imunologia, na deteção dos autoanticorpos. No caso do lúpus eritematoso sistémico temos critérios de classificação, o SLICC, em que temos de ter 4 critérios, um imunológico e os outros podem ser manifestações clínicas – rash malar, rash cutâneo, a existência de uma alopecia, de alterações no hemograma, na urina…

Pode-se ter mais do que uma?
Sim, muitas vezes nas doenças autoimunes do foro reumatológico, aquelas que eu conheço e são as mais frequentes, isso pode acontecer.

Que sinais são suspeitos
 e devem levar-nos ao médico?
As doenças autoimunes são muitas, claro que as que são de um só órgão – se for só tiróide, ou só fígado, ou só diabetes – essas são mais fáceis de diagnosticar e têm tratamento muito mais específico, desde que sejam vistos por pessoas da área. Quanto às outras doenças autoimunes, depende muito das manifestações clínicas, por exemplo, pode ser uma artrite reumatóide se uma mulher, sobretudo entre os 35-45 anos, iniciou um quadro de dor de pequenas articulações, como mãos ou punhos, que durem mais de 6 semanas; se, para além da dor, nota muita tumefação, se de manhã tem muitas dores em fechar as mãos, se tem mais de três articulações atingidas, se tem dor durante a noite… Nestes casos pedimos o estudo analítico, como o fator reumatóide, os anticorpos antipeptídeos citrulinados e também os parâmetros inflamatórios, a velocidade de sedimentação, a proteína C reativa, e depois um RX.
No caso do lúpus, que é a doença autoimune por excelência, sobretudo nas mulheres em idade reprodutiva – embora também possa acontecer numa idade pediátrica, sobretudo depois da puberdade –, é um diagnóstico em que é preciso uma grande sensibilidade porque o lúpus pode mimetizar, numa fase inicial, qualquer doença. Pode só dar sintomas constitucionais – febre à noite, fadiga muito intensa, muitas vezes emagrecimento –, e depois pode dar uma série de manifestações clínicas diferentes conforme os órgãos ou sistemas atingidos: alterações de anemia hemolítica, alterações de baixa de leucócitos e neutrófilos, ou baixa de linfócitos ou plaquetas, manifestações de derrame pleural ou derrame pericárdico, alterações articulares, convulsões – em que se pensa que é epilepsia mas são manifestações neurológicas do lúpus –, alterações renais – os doentes têm persistentemente proteínas na urina ou sedimentos urinários ativos com eritrócitos, leucócitos… Como vê, são doenças bastante complexas e se não são vistas, de forma precoce, por um reumatologista muitas vezes o diagnóstico pode ser atrasado e haver dano irreversível.

São doenças crónicas?
Sim, muitas vezes com as medicações conseguimos que entrem em remissão, mas a qualquer momento pode haver uma agudização da doença.

A doença é sempre controlada com medicação?
Sim, atualmente, além dos fármacos modificadores de doença que, só por si, conseguem controlar e fazer com que entre em remissão, temos os fármacos biotecnológicos que são tratamentos-alvo para os mecanismos celulares que estão a propiciar a doença. Muitas vezes conseguimos fazer com que o doente entre em remissão completa sob terapêutica e depois vamos vigiando.

A menopausa é uma altura em que há maior probabilidade de aparecer uma doença autoimune?
Não, embora haja, por exemplo, a síndrome de Sjögren, que é uma doença reumática autoimune que pode surgir em mulheres na menopausa ou perimenopausa, em que a doente começa a ter o olho seco, a boca seca, dores articulares. Pode ser síndrome de Sjögren primário, isolado, ou pode estar associado a outras doenças reumáticas, nomeadamente lúpus e artrite reumatóide.

Acredita-se que 3% da população portuguesa sofre de uma doença autoimune.

TESTEMUNHO DE INÊS ABRANTES

Inês Abrantes, autora do livro ‘Eu Consigo, Tu Também’, tem 3 doenças autoimunes (Foto: @inesabrantes)

Viver com 3 doenças autoimunes
“É um choque descobrir que temos uma doença crónica”, diz Inês Abrantes, 29 anos, licenciada em Gestão Desportiva e PT. Sempre foi saudável e adorava desporto, mas entre 2015 e 2017 diagnosticaram-lhe três doenças autoimunes. Otimista, soube superar-se e faz uma vida normal, adaptando o nível de esforço à sua saúde. Agora é Personal Trainer e Group Trainer. No livro, ‘Eu consigo, tu também’, conta a sua história, dá conselhos de alimentação e de exercícios. Aqui fica a entrevista (feita em abril de 2022).

Até aos 20 anos nem sequer suspeitava que poderia vir a ter uma doença autoimune? 
De todo, sempre me considerei uma pessoa muito saudável e nada apontava para o aparecimento destas doenças. 

Quais foram os sintomas que a levaram a consultar um médico? 
O que me levou a procurar um médico foram exatamente os sintomas bastante evidentes como muita sede, muita fome, várias idas diárias à casa de banho e perda de peso (cerca de 7kg em pouco mais de uma semana, que foi exatamente o tempo que demorei a tomar a decisão de procurar um médico).

Demorou quanto tempo a ser diagnosticada com diabetes tipo I?
Assim que procurei um médico e fiz as primeiras análises sanguíneas, fui logo internada e foi-me diagnosticada a doença. 

Como reagiu ao diagnóstico e de que forma isso alterou a sua vida?
É sempre um choque quando descobrimos que temos uma doença para o resto da vida, principalmente em idade jovem. E não vou esconder que isso realmente aconteceu comigo, como acho que é expectável. Em termos de alteração de rotina posso dizer que passei a reservar muito mais tempo para cuidar de mim uma vez que as minhas rotinas requerem agora algum tempo para o seu controlo. 

Como suspeitou que havia ainda outra doença autoimune por diagnosticar?
O segundo diagnóstico veio no decurso de uma bateria de exames que foram feitos ainda na altura do primeiro diagnóstico. Esta é a que requere um nível de dedicação menor vá, digamos assim. Apenas tenho de tomar um comprimido todos os dias de manhã em jejum e fazer análises trimestralmente para controlo. 

Dois anos depois diagnosticam uma terceira doença autoimune, Artrite Reumatóide. Como é que foi lidar não só fisicamente com estas doenças, mas gerir tudo isto psicologicamente?
Esta terceira doença foi bem mais impactante do que as outras duas, porque veio acompanhada de sintomatologia de dor. Estive bastante tempo até descobrir exatamente o que era e depois como tratar da melhor maneira. Durante este processo não foi fácil gerir o impacto que teve em mim a nível psicológico e cheguei mesmo a procurar um psicólogo que foi muito importante em todo este processo. 

Deita qualquer pessoa abaixo, mas a Inês escreve no seu livro que hoje em dia é mais otimista do que alguma vez foi. Como isso aconteceu?
Dizem que o que não nos mata, torna-nos mais fortes e foi exatamente isso que aconteceu comigo! Todo este conhecimento que pude ganhar sobre mim própria e sobre o meu próprio corpo, foi gratificante e o desfecho de uma situação destas só depende de nós e da nossa força de vontade em olhar para a vida com optimismo

De que forma estas doenças crónicas moldaram a sua forma de viver?
Mudaram-me melhorando-me a 100%. Melhorando a maneira como cuido da minha saúde física e mental e como olho para tudo o que são obstáculos que vão aparecendo no meu dia a dia.

A Inês é PT, faz muito exercício físico, como foram os primeiros tempos a tentar perceber como o seu corpo lidava com os problemas de saúde?
Nos primeiros tempos após o diagnóstico da Diabetes não retomei logo a prática de exercício físico até sentir que tinha o controlo da doença. Mas, aos poucos, tudo normalizou. Quanto à artrite reumatoide, muitas vezes tenho de adaptar os meus treinos devido às dores que sinto nas articulações.

Apesar de muitas pessoas pensarem que o exercício físico pode fazer mal, é precisamente o inverso
Se o exercício físico for realizado corretamente sim. Mas deve ser prescrito tendo em conta todo o histórico clínico e capacidade funcional de cada atleta. 

É uma PT muito mais atenta aos seus alunos com mais dificuldades e com certeza alguns também com doenças debilitantes. Procuram-na muito essas pessoas?
Sim bastante. Acho que a principal razão é porque o ser humano tende a relacionar-se com pessoas com as quais se identifica, principalmente por um motivo tão importante como a saúde. 


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