Nelson Olim (Fotos: João Lima)

Aviso: quando se começa a ler o livro de Nelson Olim, ‘Um Dia de Cada Vez’, não se consegue pousá-lo até chegar à última página. São retalhos da vida de um médico que escolheu dedicar-se à emergência humanitária. Histórias curtas, contadas na primeira pessoa e tão vividas que parece que estamos ali ao lado dele, na carrinha do INEM quando ‘voa’ para assistir a um cenário multivítimas, quando opera numa tenda à luz de um telemóvel algures na Indonésia ou quando tenta fazer das tripas coração num território remoto e em guerra. Pense numa zona do planeta que seja pouco ‘recomendável’, ele já lá esteve: Iémen, Gaza, Iraque, Sudão do Sul, Afeganistão, Congo, Somália… check! Como se resume uma vida assim? Difícil, mas nestas páginas vai conhecer um pouco melhor o nosso entrevistado, que por sorte nossa veio uns dias a Lisboa antes de voltar ao Líbano. Quem corre por gosto não cansa.

O seu pai foi médico, foi ele a sua inspiraçãopara seguir a carreira em Medicina?
Sim, ele foi uma inspiração, mas quando estava no secundário o que queria mesmo era seguir Genética, mas não havia o curso e por isso fui para Medicina, porque havia essa disciplina no terceiro ano, que foi uma desilusão enorme. O que vale é que nesse ano fui desafiado por uma amiga a fazer urgência no Hospital de Santa Maria voluntariamente, com uma equipa de ortopedia que me ensinou a interpretar Rx, a fazer o papel de enfermeiro instrumentista, e eu comecei a achar imensa piada àquilo e percebi que gostava desse tipo de medicina de efeito imediato, em vez do ‘tome o medicamento e venha cá para a semana’.

Isso aconteceu um ano antes do que é suposto?
Sim, no terceiro ano. Quando fui para o quarto ano continuei a fazê-lo, e no mesmo dia em que estava com a equipa de ortopedia a fazer urgências, havia também um cirurgião plástico que volta e meia não tinha mãos a medir com tantos doentes e também comecei a assisti-lo. Quando tive de escolher a especialidade, optei por Cirurgia Geral porque podia fazer um bocadinho de tudo. Mais tarde, reparei que o que mais gostava na Cirurgia Geral era o Trauma e não a cirurgia programada. Gostava do desconhecido, abrir e não saber o que vou encontrar, o ter de me forçar a pensar e a resolver depressa. Foi então que decidi trabalhar também no INEM. Entre hospital, urgências e INEM chegava a trabalhar 80-90h por semana.

E quando é que Israel entra na ‘equação’?
Quando me apercebo que queria experimentar o trauma penetrante. Em Portugal, a maior parte do trauma que vemos é fechado – os acidentes, as quedas –, não vemos o trauma penetrante – baleados, vítimas de explosões – a não ser alguns esfaqueamentos. Do ponto de vista cirúrgico, o trauma penetrante é mais interessante porque é sempre para operar. E onde isto acontece? Em situações de guerra, conflito, e eu, como tinha a possibilidade de fazer um estágio de formação fora, quis ir para um hospital onde houvesse muito trauma penetrante. Na altura, encontrei três sítios que eram reconhecidos internacionalmente: em Miami (por causa das guerras entre gangues), Joanesburgo e Haifa. Fui aceite nos três, mas no caso de Miami seria um estágio de observação, não podia tocar nos doentes, o que não me agradava, por isso ou ia para Joanesburgo ou Haifa.

Como decidiu?
Os acontecimentos decidiram por mim. Estava em casa a estudar para um exame e tinha a CNN internacional sintonizada, sem som, e de repente vi que tinha ocorrido um atentado à bomba num restaurante em Haifa onde havia muitos mortos e feridos. Estavam em direto, via-se fumo a sair do restaurante e o corrupio de ambulâncias a chegar e a sair do local. Estava-se em 2001-02, em plena Segunda Intifada.

E como foi viver num país que estava a ferro e fogo?
Estive lá vários meses e foi uma aprendizagem brutal, um banho de conhecimento! Eles tinham um sistema muito bem organizado e montado para aquele tipo de trauma. Foi a minha primeira grande lição e tive dois grandes mentores que fizeram questão de me apadrinhar.

Nelson Olim

O meu estágio em Haifa, durante a Segunda Intifada, foi a minha primeira grande lição, uma aprendizagem brutal.”

Não acharam estranho alguém de um país muito pacífico querer ir para um cenário de extrema violência?
Sim, um pouco, ainda por cima não sou judeu, mas Haifa era um sítio muito tolerante, uma cidade multicultural, com judeus, árabes cristãos, árabes israelitas, drusos… Receberam-me muito bem e ajudaram-me muito. Fiquei a viver praticamente dentro do hospital, num dormitório, e tinha um bip ligado à urgência que apitava cada vez que entrava um doente, dia ou noite, e eu estava lá sempre.

Depois de vir de Israel houve um acontecimentoque o marcou bastante…
Sim, o tsunami na Ásia, em 2004. Na altura, estava ligado à Proteção Civil. Quando se deu o tsunami, ligaram-me para saber se eu queria ir para Sumatra. Aceitei, mas foi complicado porque foi na véspera das minhas primeiras férias de casado. Quando chegámos a Banda Aceh, um dos locais mais afetados, vimos o impacto daquela catástrofe. Fazia lembrar as imagens de Hiroshima, tudo terraplanado. Ainda recolhiam os corpos e havia no ar um cheiro a morte que nunca mais se esquece.

Mais tarde vai para a Cruz Vermelha Internacional…
Sim, continuava com a ideia de fazer cirurgia de guerra. Quando vim da Indonésia ainda fui para a Marinha uns anos e depois concorri ao Comité Internacional da Cruz Vermelha, fiz um curso de cirurgia de guerra e passados uns meses mandaram-me para uma primeira missão no Sudão do Sul.

Um batismo duro?
Muito, foi das missões mais duras que tive, mesmo do ponto de vista logístico porque estávamos literalmente no meio do mato, a dormir em tendas, com as hienas à volta a uivar à noite, um filme. Com a Cruz Vermelha corri meio mundo, fui ao Iémen, Nigéria, Somália, Congo, Ucrânia, Nagorno-Karabakh, Irão, Iraque, Afeganistão, Kosovo…

Qual o marcou mais?
Talvez o Sudão, fiz lá várias missões, muito duras, todas no meio do mato, com recursos mínimos. Dormia numa tenda, tomava banho com água do poço, a comida era cozinhada na fogueira. Todos os dias de manhã, na sala de operações, usávamos inseticida para matar moscas e mosquitos, fechávamos as portas para não entrarem mais e começávamos logo a operar. Os doentes estavam sempre a chegar, com grandes ferimentos e nós com condições mínimas, com muitas limitações de tempos operatórios. Não podia embarcar em cirurgias longas porque o anestesista não tinha capacidade suficiente para manter aqueles doentes a dormir durante muito tempo.
Também gostei muito da minha missão no Congo, foi ali que usei, num só mês, todas as técnicas que conhecia. Em 30 dias operei 215 baleados e vítimas de catana: fiz tudo o que sabia, desde ortopedia, cirurgia plástica, neuro, cardíaca, cesarianas… Foi gratificante profissionalmente, mas do ponto de vista emocional e físico foi um estouro. Era o único cirurgião no hospital, praticamente não dormia porque chegavam baleados constantemente.

Estas missões não podem ser muito longas, pois não?
Não dá, porque nos levam à exaustão. Lembro-me de ligar para Genebra e dizer ‘ou mandam alguém para me ajudar, ou daqui a dias não têm cirurgião porque não vou aguentar este ritmo muito mais tempo’. Depois do Congo estava esgotado, já tinha feito ‘n’ missões praticamente sem interrupção e já havia ali algum stresse pós traumático. Decidi que tinha de parar.

Alguma vez temeu pela sua vida?
Temer pela vida não, nunca tive uma arma apontada a mim, mas houve algumas situações tensas, nomeadamente no Iémen onde estive rodeado de soldados armados, a coisa podia ter corrido muito mal.

Nelson Olim

Há missões que nos deixam à beira da exaustão, operamos de forma contínua, quase sem dormir.”

Decidiu parar depois da missão no Congo, mas teve uma oferta irrecusável?
Estava tão exausto que parei, mas ao fim do segundo mês a Organização Mundial de Saúde (OMS) abordou-me porque estavam a lançar um novo projeto no Médio Oriente, que envolvia criar hospitais de campanha e equipas médicas de emergência para eventuais casos de catástrofe. E eu aceitei entrar no projeto e fui para o Cairo um ano. Depois, em 2018-19, começaram as manifestações em Gaza, junto à vedação com Israel, que acabavam sempre em carnificina e a OMS perguntou-me se estaria interessado em liderar a equipa de Trauma da OMS em Gaza… e lá fui eu.

E como foi viver em Gaza?
Foi um trabalho muito recompensador, mas ali, sim, tive medo. Foram várias as vezes que durante a noite, em casa, acordava sobressaltado com os bombardeamentos. Era assustador, sentia-se o prédio todo a abanar e não sabia se a próxima bomba nos ia acertar. Foi dos poucos sítios onde senti que as coisas podiam ter corrido mal. Essa casa onde eu dormia hoje já não existe.

Como médico de emergência humanitária, como vê o conflito em Gaza e o bombardeamento de hospitais?
É uma catástrofe em todos os sentidos, do ponto de vista humanitário é a catástrofe perfeita, até temos uma população bombardeada que não tem para onde fugir, o que é raríssimo. Quando se começa a bombardear determinado sítio, a população foge, vimos isso recentemente na guerra na Ucrânia, mas aqui a população está murada.

Porque diz que é uma crise humanitária perfeita?
Porque tem mortos, feridos, uma população deslocada que não tem acesso a água, eletricidade, alimentação, a saneamento básico, a cuidados de saúde, 70% dos hospitais foram destruídos [a entrevista foi em 28/11]. E estamos todos a assistir a isto sem fazer quase nada. Temos a ONU a implorar por uma pausa e a ser ignorada. Se um país pode violar o direito internacional humanitário de forma descarada e sair impune, o que impede outros de fazer o mesmo? Isto abre um precedente gravíssimo.

Pode fazer com que os profissionais de saúde questionem ir para locais onde haja conflitos armados?
Sim, isso já acontece mas não é frequente. Tive uma colega que morreu no Afeganistão e outra foi raptada no Iémen.

As profissionais de saúde estão mais vulneráveis?
Em alguns contextos há efetivamente um risco ligeiramente maior para as mulheres em contexto humanitário, sejam elas profissionais de saúde ou não. Até porque há a questão da violência sexual que está associada às guerras.
Mas se entrarmos numa situação em que os hospitais, ambulâncias, escolas, não são santuários, então os profissionais vão começar a pensar duas vezes. Uma das coisas que sempre senti nestes cenários de guerra é que o hospital era um lugar seguro, mesmo quando ouvia os tiros lá fora. Depois disto nunca mais vamos ter a sensação de que há santuários e uma guerra sem regras ou santuários é a selvajaria total. Está a retirar-se a dignidade humana àquele povo.

O Nelson esteve em vários países muçulmanos, como é a situação da mulher enquanto paciente?
É complicada, em países muçulmanos de tendência mais radical a ideia de uma mulher mesmo ferida ser atendida por um médico homem não era bem aceite. Na altura das manifestações em Gaza tínhamos postos de estabilização de trauma, onde os feridos eram reanimados, ressuscitados e depois é que iam para o hospital. No caso de um homem ferido não há problema, os médicos cortavam a roupa, expunham, viam as feridas, faziam ali o primeiro socorro. Quando vinha uma mulher, eles tinham pudor em despi-la, então mandavam uma enfermeira descrever o que via, mas não se expunha. Estudos mostram que as mulheres neste tipo de circunstâncias acabam por ter uma mortalidade superior à dos homens, e a minha convicção era que isto tinha a ver com o facto de elas não terem acesso ao mesmo nível de cuidados porque a maior parte dos médicos são homens. Quando nos apercebemos deste problema, criámos uma zona resguardada, para que as enfermeiras pudessem ver as feridas para as tratar.

Nelson Olim

Se em guerra não houver regras, e os hospitais deixam de ser santuários e são bombardeados, é a selvajaria total.”

Quando vão para esses locais têm de aceitar as regras.
Ou respeitamos ou já não podemos fazer o nosso trabalho. Há situações no sentido ético do ponto de vista humanitário que temos de saber digerir. Vou dar-lhe um exemplo, estamos a lançar um programa no Líbano que consiste em distribuir um pequeno kit para estancar hemorragias que possa ser usado em caso de alguém ficar ferido num bombardeamento. Um dos grandes problemas que temos para aplicação destes torniquetes para estancar hemorragias é que se tem de expor a ferida. Se for um homem, não há problema em cortar a roupa, expor a ferida e por o torniquete. Se for uma mulher, mesmo que ela esteja a sangrar, é possível que eles não façam nada. Tocar numa mulher que está de abaia, levantar a abaia, expor a perna, é impensável, mesmo que seja para lhe salvar a vida. É exatamente o mesmo com desfibrilhadores automáticos externos, não vão expor o peito da mulher. Mas no Catar, por exemplo, as equipas de ambulâncias passaram a ter um homem e uma mulher para garantir que pelo menos uma pessoa tem acesso à vítima. Temos de procurar soluções.

No seu livro conta uma experiência no INEM que o marcou muito mas que nem teve tempo de processar.
A convivência diária com as perdas dos outros afeta-nos, mesmo que nós queiramos manter alguma distância. Essa história do bebé que morre asfixiado, sem que pudéssemos fazer nada, teve um impacto muito grande em mim e no técnico que estava comigo. Ele porque tinha uma criança pequena, eu porque na altura a minha mulher estava grávida. Custou-nos imenso, de tal maneira que chegámos ao carro e ambos chorávamos, cada um para seu lado, quase com vergonha de termos no fundo cedido a este sentimento e não termos sido suficientemente fortes para aguentar a situação. Informámos a central e pedimos algum tempo porque não estávamos bem. Eles acederam, mas 5 minutos depois dizem ‘desculpem, mas há um homem em paragem cardíaca e vocês são quem está mais perto’. E lá fomos, arrumámos todo aquele sentimento e fizemos um reset. Acumulamos muita emoção sem que haja possibilidade de a resolver internamente, e isso tem um peso a médio e longo prazo.

Sente que tem traumas por resolver?
Volta e meia tenho pesadelos com tsunamis, se ouvir um trovão ou fogo de artifício a minha primeira reação é pensar que é um bombardeamento. Há duas semanas, no Líbano, acordei às 6h com um clarão e um estrondo enorme. Pensei que estavam a bombardear Beirute mas depois ouvi a chuva a bater na janela. Afinal era um trovão e relâmpagos. Há algum stresse pós-traumático sim, se não houvesse também seria preocupante.

Qual a missão para a qual gostava que o convidassem?
As missões ligadas a desastres naturais são as mais gratificantes. Há imenso trabalho, mas a sensação é que dali para a frente é sempre a melhorar. Quando saímos, já o mercado abriu, a rua principal foi arranjada, o centro de saúde está a funcionar…
Quando vamos para uma situação de guerra, no primeiro dia a situação está má e habitualmente piora. Há mais feridos, mortos, mais estruturas destruídas e menos acesso a medicamentos.

Mudou a sua maneira de ser com este trabalho?
Sem dúvida, sou uma pessoa muito mais tolerante, ponderada. Não sou tão rápido a julgar, tento perceber os dois lados. Há tempos, dizia-me um amigo ‘sou do tempo do disco de vinil, temos de ouvir os dois lados para perceber a história toda’. Preocupa-me ver que as pessoas tomam partido nas guerras como se fossem clubes de futebol. Há muita polarização, o que impede de ser objetivo.

Esta edição [janeiro de 2024] é sobre a paz, que mensagem daria às nossas leitoras?A
quilo que tenho dito às minhas filhas, não sejam tão rápidas a julgar, deem um passo atrás e tentem ver o mundo de uma perspetiva superior, mais humanista, onde a vida humana tem igual valor, mesmo que seja de outra cor ou pertença a outra religião. A mensagem é pedir que todos nos coloquemos num plano onde não há bons e maus, onde aquilo que nos une é sermos todos humanos.

Um livro que não deve perder: UM DIA DE CADA VEZ, Nelson Olim

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