Todos os anos, há 3800 portuguesas a quem é diagnosticado cancro da mama. Manuela Fria, 60 anos, foi uma delas. Com naturalidade, concordou em contar-nos, passo a passo, a história de como conseguiu fazer da doença uma forma de entender melhor a própria vida.

5 de Setembro 2001

‘Sempre tive nódulos no peito e vigiei a situação. Mas agora apareceu-me um nódulo diferente dos outros, com uma característica que não é um bom prognóstico: a retracção do mamilo.

Fiquei preocupada e marquei consulta no meu médico, mas não disse a ninguém, apenas ao meu marido. Quando fiz a mamografia, percebi logo que aquilo era mau. O radiologista não me assustou, mas disseme o suficiente para eu perceber. ‘Há aqui uma coisa que não está bem esclarecida, devia falar com o seu médico, quer que lhe marque consulta?’ Aquilo alertou-me: a que propósito é que ele me ia marcar uma consulta? Na consulta, o médico disse-me que via ali uma ‘coisinha’ e precisava de ser operada. Eu já estava preparada para a notícia. Mas ele ainda não sabe se será preciso fazer uma mastectomia (retirar o seio). Aceito tudo. Tenho a mais profunda confiança no meu médico e acho que isso é fundamental.’

31 de Outubro 2001

‘Fui operada na Cruz Vermelha. Afinal, não foi preciso retirar o seio, apenas a parte do nódulo e fazer o esvaziamento da axila, porque tinha gânglios na parte linfática. Depois da operação, o meu médico veio ter comigo e disse-me: ‘A operação correu a cem por cento.’ Aquilo soou bem. Achei que o meu problema tinha acabado ali, que só seria preciso tirar os pontos. Até que o médico disse: ‘O resto do tratamento veremos quando vier a análise.”

15 de Novembro 2001

‘Hoje, fui buscar a análise, mas tive medo de abrir o envelope, coisa que até aí fazia sempre. O médico disse então que tenho de fazer umas sessões de quimioterapia. ‘Este é o pior dia da minha vida. A minha vida acabou, que não terei forças para fazer as coisas que gosto e sabe-se lá se não vou morrer. As lágrimas saltam-me sem que as consiga conter. A primeira pergunta que toda a gente que passa por isto faz, foi a que eu também fiz: ‘Ó doutor, o cabelo vai-me cair?’ Ele consolou-me: ‘Sim, mas depois vai-lhe crescer mais bonito.’ Voltei para casa e não consegui falar com a minha mãe. O meu marido está em Londres. Agora que eu precisava tanto dele. Mas, afinal, quais são as duas pessoas de que eu mais preciso agora? O meu marido e o meu médico. Mas tendo que escolher um, prefiro o médico!

‘Estar sozinha neste dia é extremamente duro. Falei com o meu marido ao telefone e, a chorar, disse-lhe: ‘Vai-me cair o cabelo todo!’ Ele respondeu: ‘Não me interessa, gosto de ti não pelo teu aspecto, mas por aquilo que tu és!’ O meu marido é espectacular: são estas coisas que cimentam uma relação. Aos meus filhos, de 32 e 27 anos, disse a verdade, e eles apoiam-me em tudo, como sempre o fizeram.’

22 de Novembro 2001

‘Comecei hoje a quimioterapia. Comprei antes os medicamentos e, depois, o médico é que os vai misturar. Saí da farmácia com dois sacos de supermercado cheios! Eu nunca estive doente, não estou habituada a lidar com a doença e, de repente, penso: ‘Espera lá: sou uma doente!’ Costumava ler as bulas de medicamentos ‘normais’, mas agora não o faço. Não quero saber: afinal, não tenho opção. Tenho mesmo de os tomar, para que é que me vou martirizar com as contra-indicações? Hoje apareci no consultório com o meu marido e uma amiga. Passaram-me as coisas mais estranhas pela cabeça. Disse-me a assistente: ‘A senhora não se importa de pagar já?’ Perguntei logo: ‘Porquê? Não vou estar em condições de assinar o cheque no fim?’ Afinal, era apenas a assistente que precisava de sair! O tratamento durou à volta de uma hora e é incómodo, temos ardores vários. Por acaso, nunca me sinto agoniada, isso depende das pessoas.’

23 de Dezembro 2001

‘Começa-me a cair o cabelo. É como se estivesse colado, sai aos bocados. É muito complicado, porque o Natal é a época em que está a família reunida e toda a gente nota e nos tenta consolar sem conseguir. Tenho as camisolas cheias de cabelo, nem lavo a cabeça por causa disso.’

26 de Dezembro 2001

‘Quando vi o meu marido a cuspir cabelo, decidi: acabou-se. Pedi ao meu filho mais novo que me rapasse a cabeça à máquina zero. E foi uma vida nova que me nasceu. Foi como começar a partir do zero, porque, a partir daí, o cabelo só cresce. Resolvi não usar peruca: ainda fui comprá-la, mas quando pus a na cabeça achei-me mascarada. Além disso, custa 40 contos! Se em casa vou andar careca, para que é que na rua vou pôr peruca? Mas tenho de usar gorro, porque sinto muito frio no alto da cabeça. Parece que tenho um saco de gelo. Por isso, comprei um gorro e durmo com aquilo.

28 de Dezembro 2001

O meu neto, de três anos, acha estranho ver-me assim, porque costumava brincar com o meu cabelo. Quando saio, uso um gorro normal, mas sinto que as outras pessoas me olham. Apesar disso, não evito sair à rua, continuo a fazer as minhas caminhadas ao pé do mar. Muitas pessoas evitam falar nisso com medo de me magoar. Mas se levantam o assunto, eu respondo normalmente: ‘Não sou a primeira, e antes fosse a última!’ A minha mãe é a pessoa a quem eu tive mais dificuldade em mostrar que tinha rapado o cabelo e sempre que ia a casa dela levava o gorro. Acabou-se. E disse-lhe: ‘A mãe já sabe que rapei o cabelo, vou tirar o gorro!’ Ela ficou serena, mas senti a sua dor. Pensei: ‘Antes quero estar no meu lugar do que no dela.”

7 de Fevereiro 2002

‘Sou uma pessoa optimista, mas, às vezes, como é natural, tenho quebras e penso: ‘Não tenho antecedentes genéticos, não fumo, nunca estive doente, faço exercício físico, alimento-me bem, gosto de uma vida ao ar livre. Porquê eu?’ Mas, depois, procuro fazer um compartimento fechado no meu espírito: penso dia a dia. Cada vez que acabo um tratamento, penso: ‘É menos um.’ E, no resto do tempo, procuro fazer a minha vida normal, coisas que me dão prazer, sem me martirizar. E fazendo um esforço, isso conseguese. ‘À noite, quando as coisas são mais negras, as lágrimas caem-me e eu pergunto-me novamente: ‘Mas por que é que me aconteceu isto a mim?’ Mas, depois, penso: ‘Pode ser que não seja tão grave’, e vou dormir. Sempre tive o hábito de adormecer pensando em coisas agradáveis. Mesmo em nova, quando estava chateada, pensava que estava numa festa, via-me a entrar no salão com um vestido bonito. Nestes dias de doença, penso muitas vezes que estou a passear. Adoro caminhar, faz parte dos meus passatempos. Também leio muito, porque me ajuda a concentrar.’

10 de Março 2002

‘Fiz oito tratamentos de quimioterapia. Funciona assim: num dia faz-se um tratamento e o seguinte faz-se três semanas depois. Entretanto, fui à Internet, li, informei-me. Quero saber, mas, acima de tudo, tenho de me proteger. Por isso, paro sempre que estou a ficar assustada. Para quê estar a martirizar-me? Sempre foi o meu lema. Vivo dia a dia. Penso: ‘Hoje é o meu dia de tratamento’, mas, durante as três semanas seguintes, tento, dentro das minhas possibilidades, não pensar nisso. Sinto-me muito debilitada fisicamente, mas, mesmo assim, tento fazer a minha vida normal. Também sei que estes sintomas são normais e espero que passem.’

10 de Abril 2002

‘Comecei a fazer rádio, no Hospital de Santa Maria. E, quando lá entrei, tive uma sensação estranhíssima. De repente, pensei: ‘Hoje, não venho visitar ninguém. Hoje, faço parte destas pessoas que estão aqui doentes.’ Até então, só estive num hospital como visita. Na clínica, estava mais protegida e escudada de outros doentes. Em Santa Maria, é terrível, porque vemos todas as outras pessoas na mesma situação que nós. As pessoas olham muito umas para as outras, mas fecham–se, vê-se que têm muita dificuldade em falar do que lhes está a acontecer. Quando entrei, deram-me uma bata azul. Com a bata vestida, o cabelo rapado, a cara envelhecida, olhei para o espelho e decido: não vou olhar mais. ‘Quando entrei na sala de radioterapia, que tem uma porta blindada com uma espessura de 30 centímetros, senti-me mesmo mal. ‘Credo digo eu parece que vou entrar numa câmara de gás!’ Respondeu a técnica: ‘Não diga isso.’ Para aliviar a tensão, respondi a brincar: ‘Não é do gás, mas é da electricidade.’ Nunca hei-de esquecer aquela porta.’

19 de Março 2002

‘Vão ser trinta dias todos seguidos. Aquilo não nos toca no corpo, mas temos a sensação de que estamos a ser queimadas. Quando voltei para a sala, vi uma senhora na mesma situação que eu, muito desanimada. Acha que não vai ver o filho acabar o curso, que lhe vão acontecer coisas horríveis que ouve às outras mulheres. Comecei a falar com ela. ‘Ninguém nos garante que amanhã estamos cá, afinal, qualquer pessoa pode ser atropelada. Enquanto estamos aqui, estamos bem. Estamos a tratar-nos. Tem é que ver como é que se sente, fazer o que o médico diz e andar para a frente.’ No outro dia, ela contou-me que tinha dito ao marido: ‘Conheci uma senhora que parecia uma aparição.’ Fartei-me de rir. Nunca soube o que lhe aconteceu. Tive muita pena de não ter ficado com o contacto dela.’

22 de Setembro 2002

‘Depois de fazer os últimos tratamentos de quimioterapia, fui ao médico e, desde então, tenho feito exames de seis em seis meses. Acabaram os tratamentos, mas vou sempre ao médico com a inquietação interior: ‘Será que está tudo bem?’ O que acho fundamental é, como diz um médico, não fazer do medo o aliado da doença. Porque, quando se detecta desde o início, há muita probabilidade de cura. Há mulheres com mais de 40 anos que nunca fizeram uma mamografia por medo. Mais tarde, vim com uma amiga minha ao IPO e contactei com o Movimento Vencer e Viver, que é constituído por mulheres mastectomizadas, que ajudam outras mulheres. Decidi inscrever-me e aceitaram-me.’

15 de Setembro 2006

‘Venho para o IPO a ouvir os pássaros e penso: ‘Que privilégio que eu tenho de me sentir bem e de poder ouvir os pássaros, quando houve uma altura em que pensei que a vida tinha acabado para mim.’ Venho cá às segundas-feiras. É muito bom sentir que consigo ajudar outras pessoas. Às vezes, distribuo rebuçados. No outro dia, uma senhora disse-me: ‘O seu sorriso é melhor do que o rebuçado.’ Isto, para mim, compensa tudo.’

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