A minha amizade com a Manuela começou com umas luvas de boxe. Ninguém no ginásio tinha nada assim: imaginem umas luvas XL, em amarelo-canário. ‘Vai matar alguém?’, perguntei-lhe. Acrescente-se que a Manuela tem 66 anos, é a avó com que toda a gente sonhou e faz da arte de ajudar os outros uma missão na vida. Perguntei-lhe certa vez porque era tão boa pessoa: “Não há nada melhor do que fazer alguém feliz”, respondeu-me.
Um dia, gabei-lhe um colar que ela trazia com o símbolo da paz. “Olhe – explicou – a minha filha morreu com 23 anos. Tive de ir reconhecer o corpo dela ao hospital. Estava de tal maneira destruída que só a reconheci por este símbolo, que ela tinha tatuado na mão esquerda. Por isso mandei fazer o colar.”
Fiquei engasgada. Mal sabia eu o resto. Com o tempo, Manuela contou-me a história da sua vida, com a mesma doçura com que ‘arrumava’ o instrutor de boxe. E eu fiquei para sempre envergonhada de me queixar do trânsito ou da crise. Ora ouçam.
A VIDA POR UM FIO
“Nasci na Trafaria. Só estudei até à 4.ª classe e aos 7 anos comecei a trabalhar num cabeleireiro, varria o salão, ajudava no que era preciso. Aos 12, fui trabalhar como peixeira. Levantava-me às 4 da manhã para ir para a Ribeira, tirava o peixe do gelo, vivia sem conseguir fechar os dedos, de tão enregelada, e ainda limpava a casa da minha patroa e da mãe dela. Trabalhava desalmadamente. Um dia, parti um relógio. Fugi e não quis voltar.”
Aos 13 anos, Manuela foi chamada para uma fábrica de malhas. “Fazia tudo: dava fio, por exemplo. Dar fio era ir ao armazém buscar os tabuleiros de lãs e passá-los aos maquinistas. Eu comia muito mal, porque a minha mãe estava desempregada e o meu pai tuberculoso. A minha mãe quando eu chegava a casa tinha vergonha de dizer que não havia comida, e já estava deitada. Eu vivia com fome: às vezes, caía ao chão, eu e mais os tabuleiros de fio. Até que um encarregado começou a pagar-me o almoço.”
Conheceu o primeiro marido num baile e acabaram por casar. “Casei sem nada: as minhas vizinhas deram-me tudo, roupas, panos, etc. O meu marido trabalhava, mas tudo o que ganhava – ele e eu – perdia ao jogo.”
Vieram três filhos. Mas a tuberculose é contagiosa e propagou-se de pai para filha – e de mãe para filha: quando Sandra nasceu, já vinha doente. Manuela esteve um ano de baixa: teoricamente. “Na prática, continuava a trabalhar.” Um dia, percebeu que ele tinha outra mulher. “Confrontei-o e ele deu-me a maior tareia da minha vida: lançou-me as mãos ao pescoço e partiu- -me três costelas. Quando ouvi as crianças a gritar e a atirar-lhe pedras, cresceu-me uma força sobre-humana e atirei-me a ele. Não sei como o fiz, mas consegui afastá-lo.”
Divorciaram-se e ele levou tudo menos as crianças. Conheceu o segundo marido num jogo de futebol de salão, e encontrou finalmente a estabilidade emocional. Mas outro golpe estava para vir.
“Aos 16 anos, a minha filha meteu-se na droga. Para mim, foi outra traição. Como é que não me apercebi, pensei. Sentei-me no sofá e chorei tanto e disse-lhe tanta coisa! O médico dizia ‘a senhora tem de aprender a amar esta filha, que não é aquela que a senhora teve’. Ela mentia, fugia, continuava na droga. Eu sentia-me tão sozinha, não tinha ninguém a quem me agarrar.”
Um dia, Sandra chegou a casa e disse ‘Mãe, estou grávida’. Tinha 23 anos. O pai do bebé, nunca o viram. “O Ruben nasceu na véspera de Natal. Já vinha dependente de droga. Quando me ligaram, fui buscá-lo à maternidade: ele chorava sem parar, e a mãe não conseguia tomar conta dele. O meu marido não queria filhos, mas eu trouxe o bebé para casa: a partir do momento em que entrei com ele ao colo, ficou apaixonado.”
Dois anos depois, toca-lhe à porta um vizinho e anuncia de chofre – “A sua filha morreu.” “Fiquei em estado de choque. A Sandra estava em Espanha, já não a via há algum tempo. Eu nem sabia o que fazer. Tivemos de ir ao hospital reconhecer o corpo dela, mas estava tão destruído pela Sida que só consegui reconhecê-la pela tatuagem na mão. Fiquei devastada. Durante muito tempo não fui eu. Mas hoje está tudo bem. O Ruben tem 20 anos e sabe de tudo. Acho que o melhor para qualquer criança é a verdade. E tenho uma vida boa.”
Depois disto, como é que pode ser a pessoa terna e bondosa que é? “Tenho uma grande capacidade para pôr as coisas para trás das costas. Não imponho o meu sofrimento aos outros, acho que não têm culpa, por isso afasto-me e depois começo de novo. Muitas vezes, nos dias mais negros, ia apanhar ar, ia ver montras e chorar longe de todos. Acho que o amor que se tem à vida, a nós próprios, aos outros, é que nos dá forças. A nossa força não está lá fora, naquilo que nos acontece ou deixa de acontecer, está dentro de nós. É nisso que eu acredito.”
UMA SURDA ENTRE 200 PESSOAS?
Mas há quem tenha levado uma vida sem fome nem frio e mesmo assim já tenha o que contar. É o caso de Leonor Guerra, 35 anos. Surda desde os 7 anos devido a complicações de sarampo, viu-se de repente num mundo estranho: “Já sabia ler, escrever, falar… Foi um trauma. De repente, deixei de compreender as pessoas. Ouvia alguns sons, mas não entendia o que diziam.”
Reaprendeu a ‘ouvir’ usando outros sentidos. “Leio lábios, expressões corporais e faciais, e tornei-me intuitiva. Tento adivinhar o que está a ser dito. Muitas vezes acerto, muitas vezes não, o que dá azo a situações cómicas.” Continuou a ler e a escrever. E a falar. “E refugiei-me no mundo dos livros, mais interessante e simpático que o real. No mundo real, onde me chamavam surda, gozavam comigo, e muita gente achava que eu fingia a surdez.”
Recusou uma escola especial e acabou o secundário teimosamente com média de 19. Mas a universidade foi um mundo novo: uma surda num anfiteatro com 200 pessoas? “Tinha zero nas aulas. Não conseguia acompanhar. Não sabia estudar. Nem falhar. A minha primeira negativa foi o início de uma série delas. Nunca tinha chumbado, não sabia como lidar com o falhanço, não sabia como me levantar, e entrei em depressão. Não contei a ninguém. O meu comportamento tornou-se desviante, estava revoltada com tudo, não me conseguia integrar, partia espelhos para não ter de me ver, comecei a odiar o facto de ser surda, comecei a odiar-me de morte. Foi uma espiral descendente.”
A certa altura, conheceu o primeiro amor e amaram-se muito, durante 12 anos. O casamento acabou por terminar: “Eu era perfeccionista, vivia para o trabalho. A minha vida desabou ali. Piorei. Tornei-me revoltada, cheia de raiva e ódio, agressiva.”
Até que um dia teve um enorme acidente de carro. Ardeu tudo, menos Leonor. “Nos dias em que estive deitada sem me conseguir mexer, pensei muito. E decidi viver. Pela primeira vez na vida, comecei a tentar entender-me a mim mesma. Pela primeira vez, aceitei a ajuda dos meus pais e irmã. Para mim, aceitar ajuda era admitir o falhanço. Levei muito tempo a aceitar que não vale a pena chorar sobre leite derramado e que os erros servem para aprender.”
Hoje, a sua vida mudou muito: “Tornei-me mais dinâmica, mais segura, mas o medo é algo que fica. O medo que o passado se repita é muito grande: ainda não consigo largar a ideia de que se me conhecerem melhor, não gostam de mim. Ainda estou a trabalhar nisso: não deixar que o passado me domine. Mas crescer nunca foi fácil.”
ESPERANÇA MESMO NO LIMITE
Voltamos à pergunta inicial: como é que sobrevivemos a um passado difícil? “Resistir não é uma capacidade inata: tem a ver com a nossa resiliência, ou seja, a nossa capacidade para nos adaptarmos a situações adversas, que vamos desenvolvendo ao longo da vida”, explica o psicólogo Bruno Almeida de Brito, especialista em situações limite e stresse pós-traumático. “Como é que crescemos para lá de um passado adverso? Conseguindo tirar algum ensinamento das situações más, por piores que tenham sido, e fazendo com que situações futuras sejam mais bem ultrapassadas.” A capacidade de resistência está ligada às nossas referências.
“Mesmo com uma família péssima, as pessoas podem encontrar outras pessoas de referência que lhes ensinam a ter esperança”, explica o psicólogo. “E outras vezes as pessoas fazem uma identificação negativa: ‘eu não quero isto para mim, e portanto vou fazer exatamente o contrário do que esta pessoa fez comigo’. E isso é uma forma de transformar a raiva em progressão e superação.”
Mesmo em situações limite é possível ter esperança: “Somos, antes de tudo, animais. E o nosso código genético diz-nos que temos de sobreviver. Podemos pôr uma data de aculturações por cima, mas o nosso objetivo é sempre sobreviver, e havemos de fazer tudo para que isso aconteça. Olhar à volta e ver quais são as nossas hipóteses de sobrevivência é muito mais efetivo do que exigir que tudo esteja planeado e resulte como nós queremos. E enquanto tivermos pelo que lutar, a nossa vida fará sempre sentido.”