Longe vão os tempos em que ‘Gabriela, Cravo e Canela’ fazia parar as sessões do Parlamento ou em que as golas com pontas de metal do Sinhôzinho Malta enfeitavam todas as camisas lusas.

Alguns adultos talvez se tenham desencantado do formato casa-descasa dos folhetins de televisão. Mas um novo público acaba de ser conquistado: as crianças e adolescentes apaixonaramse pelas desventuras dos ‘Morangos com Açúcar’ e outros produtos afins. O fórum de discussão no sítio da TVI é um bom reflexo desta paixão, que suscita mensagens como ‘Oix, ixuh ta a fikar mal, extou dependente dox Morangos’. bem, para vossa comodidade apresentamos a versão traduzida. As mensagens dizem quase todas a mesma coisa: ‘Estou dependente dos ‘Morangos’.

.’

Aproveitámos para fazer de advogado do diabo e colocar aos criadores as queixas recolhidas durante alguns dias junto de vários pais.

Primeira queixa: porque é que a vida daquela gente é toda tão irregular? ‘Dizem-nos frequentemente que os miúdos nos ‘Morangos’ não têm uma família normal’, responde Pedro Lopes, da mesma equipa. ‘Mas o que é uma família normal? Hoje a maioria das crianças não tem os dois pais em casa.’

Inês descodifica alguns problemas, digamos, técnicos: ‘Nós não podemos ter as personagens todas que gostávamos e damos prioridade a personagens mais novas.’ Ah, por isso é que há tanta gente sem pai? ‘Pois. Como é uma novela para miúdos, optamos sempre por pôr miúdos.’ Mas depois o resultado final não fica estranho? ‘Fica. Mas temos às vezes um problema deste tipo: um actor que faz de pai tem de sair. Ora nós não podemos agarrar noutro actor e dizer: ‘Olhem, este agora é que é o pai.’ Portanto a opção é ou sai a família toda ou aquelas crianças ficam sozinhas.’

UMA NOVELA NÃO EDUCA…

Segunda queixa de encomenda: porque é que a novela é tão deseducativa? ‘Uma telenovela não é para ser educativa’, lembra Inês. ‘É evidente que temos alguns cuidados, mas não se educa uma criança pela televisão. O que acontece é que às vezes acabamos por levantar algumas questões a que os pais não sabem responder.’

Pedro acrescenta que ‘não há nada nos ‘Morangos’ que as crianças não possam ver. Claro que não são coisas para alguém com 4 anos. Mas não há nada ali que num liceu os miúdos não falem entre eles. O que se passa é que é uma realidade que muitos pais desconhecem e não querem ver. Aliás, há coisas que os miúdos só falam com os amigos, e quando os pais assistem a essas conversas, tal como nós as apresentamos, podem ficar chocados.’

Terceira queixa: porque é que aquilo é tudo tão irreal? Acham mesmo que aventuras como uma professora grávida de um aluno ou um rapaz que namora a madrasta do melhor amigo reflectem a realidade dos adolescentes portugueses? ‘Tudo isto é ficção, tem de ter um bocadinho de conto de fadas’, defende Inês. ‘A telenovela sempre serviu para as pessoas sonharem. E as crianças vêem coisas bem piores e mais deseducativas que os ‘Morangos’.’

‘Mesmo assim, penso que a nossa vida de bairro funciona segundo esses dramas novelescos e amorosos’, afirma Pedro. ‘Histórias de romances de rapazes com mulheres mais velhas é do mais antigo que há, até já havia no Eça.’ Pois, no Eça talvez, mas nas nossas escolas acham que é assim tão comum? ‘Mas aí entra precisamente o sonho’, nota Inês. ‘Muitos adolescentes têm a fantasia de ter um caso com o professor ou a professora.’

‘A ficção não tem a pretensão de copiar a realidade’, resume Pedro. ‘Tem um lado real e depois um lado que corresponde aos nossos devaneios. Geralmente, quem faz programas para adolescentes adopta uma mensagem paternalista. Quem tenta diverti-los sem lhes passar a mão pelo pêlo, mesmo que às vezes possa ser controverso, é criticado. Nós tratamo–los como iguais. É como a expressão ‘jovem’. Não há nenhum miúdo que diga de si próprio que é um ‘jovem’.’

…MAS TEM DE DESEDUCAR TANTO?

Todos os dias chegam cartas à redacção da revista ‘Telenovelas’, a pedir informações e moradas, de admiradores que querem escrever aos actores dos ‘Morangos’. ‘Querem saber tudo sobre os seus ídolos’, conta Rita Sena Lino, chefe de redacção. Também ela sublinha que uma telenovela não é serviço público: ‘A sua função é entreter o telespectador. Os temas são livres e a forma de os explorar também. No Brasil, a ‘New Wave’ [que passa ao final da tarde na SIC] tem, de facto, a pretensão de ajudar os pais e educadores a lidar com certos temas educação sexual, saúde, gravidez na adolescência e tenta mostrar, através das situações, como os problemas acontecem. É um caminho tão válido como o seguido pelos criadores de ‘Morangos’.’

Que a televisão não é o veículo ideal para uma cultura definir os seus valores já se descobriu há muito, e por uma razão simples: enquanto a televisão se mantiver uma indústria, dependente de lucros e audiências, há pouco que se possa fazer. Mas continua a haver quem tente.

‘Uma telenovela não tem de ser educativa. Mas também não pode ser deseducativa.’ São palavras de Maria Miguel, directora do Colégio Avé Maria, em Lisboa, que no ano passado começou a notar que todas as crianças viam a mesma telenovela. Intrigada, resolveu ver também. Assistiu durante uma semana e ficou arrasada. Passo seguinte: enviar um alerta aos pais. ‘Aquilo era abaixo de tudo’, lembra. ‘É o deturpar da vida, não há uma família constituída, as crianças falavam com os pais como nunca ouvi nenhuma delas falar assim, coisas de uma absoluta irresponsabilidade.’

Talvez porque os pais tenham seguido as indicações ou porque a novidade já tenha passado, hoje já não ouve tantos dos seus alunos a falarem nos ‘Morangos’. Mas continua a preocupar-se: ‘Não é programa para crianças de 12 anos, quanto mais de 7. Aquilo resulta numa baralhação total na cabeça deles.’

FANTASIA E REALIDADE

‘Eles não têm a noção da irrealidade daquilo, e aí é que está o perigo. Se não pensarmos com eles, passa-lhes completamente ao lado’, afirma a professora Sara Pereira, do Instituto de Estudos da Criança, da Universidade do Minho.

O problema é a frágil distinção entre fantasia e realidade. ‘Há pouca consciência de que a telenovela forma as crianças, mas é o que está a acontecer.’

Mãe de duas crianças, de 8 e 12 anos, Sara resolveu falar com a filha e com algumas amigas e ficou boquiaberta: ‘Elas sabem que ali estão actores, mas não têm noção de que é apenas uma construção, uma história. O problema muitas vezes nem são os temas em si, mas a forma como são abordados. Sem mediação, as crianças podem assimilar essas informações de forma negativa.’

Ainda hoje recorda uma cena de telenovela que a deixou estarrecida: ‘Era qualquer coisa como: uma rapariga dizia a um rapaz que a amiga gostaria de ir para a cama com ele. E ele dizia: ‘Está bem, mas em troca dormes tu comigo’. Aquilo depois podia ser trabalhado de forma a que eles percebessem que a coisa não se resolvia assim, mas não: ela lá acabou por ceder porque achou que era um favor que fazia à amiga! Aí tomei consciência de que não podia deixar miúdos pequenos a pensarem que a sexualidade é uma questão de troca.’

Sara foi das poucas mães a converter a sua criança a outra ‘fruta’. E como é que conseguiu o milagre? ‘Deu trabalho’, ri. ‘Ela ficava irritadíssima e dizia que as amigas também viam e depois ela queria conversar e não sabia. Expliquei-lhe que havia outras coisas que ela podia ver. Agora deixo-a ver à sexta-feira, por exemplo. Mas é complicado, e percebo que muitos pais desistam.’

O importante é dar-lhes alternativas, levá-los a dar uma espreitadela por outros canais. ‘Não acho que proibir funcione, mas penso realmente que o acompanhamento é essencial’, conclui.

PROIBIR NÃO É REMÉDIO

‘As telenovelas hoje são dos poucos espaços de representação do quotidiano a partir dos quais poderia ser possível desencadear itinerários formativos de descoberta, de reflexão, de formação até. Mas o preconceito ainda está muitíssimo enraizado.’

Manuel Pinto, professor e investigador da Universidade do Minho, autor do livro ‘Televisão, Família e Escola’ (Ed. Presença) e de uma tese de doutoramento sobre as crianças e a televisão, é assumidamente contra aquilo a que chama ‘diabolizar a televisão’. ‘Continua-se a achar que não se aprende nada com a televisão, e no entanto há uma série de descobertas que podiam ser aproveitadas como material de discussão. Quem é pai ou mãe sabe que isto não é fácil. Mas o não ter qualquer tipo de relação com essa experiência acaba por cavar um fosso ainda pior. E uma escola que não cria contextos para a discussão da actualidade é uma escola que não educa.’

O preconceito é antigo. ‘Já nos anos 50 se dizia que a radionovela desencadeava sentimentos nefastos, e isso repete- se no que se diz hoje em relação às telenovelas, que é uma forma simplista de lidar com o problema.’

Portanto, proibir não funciona? ‘Julgo que é completamente irrealista, até porque isso gera cortes gravíssimos para os miúdos. É que o problema não é a telenovela, o problema é a conversação entre as crianças. A telenovela cria aquilo a que chamamos de ‘comunidades interpretativas’, que funcionam como espaço de socialização, de liderança.’

A telenovela levanta acima de tudo outro problema: o da relação da nossa cultura com a sexualidade. ‘Os autores da novela encontram uma forma de a tratar que pode ser discutível. O problema é que depois ela não é discutida. Um autor americano, Neil Postman, diz que, ao contrário do tempo dos nossos pais, as televisões hoje escancararam o mundo dos adultos desde muito cedo, e não há para os mais novos um crescimento na descoberta. Não há estratagemas para conquistar a adultez, hoje a adultez escancara-se e impõe-se, tudo é dito, deixa de haver segredos, e isto mata a própria noção de infância e mata a própria noção de maturidade.’ Antigamente espreitava-se pelo buraco da fechadura, hoje a porta está escancarada, é isso? ‘Sim. Que efeitos é que terá? Não sabemos e temos de reflectir sobre isso. Mas sabemos que há coisas irreversíveis, e perder tempo a sonhar com um mundo que já passou não adianta.’

FALAR DE QUÊ EM QUE IDADE

Até aos 6 anos:
Discuta o papel de cada pessoa na família, as profissões, a forma como as pessoas se organizam.


7-10 anos: Foque-se nas preocupações sobre a imagem, a roupa, as diferenças raciais.


11-13 anos: Fale dos sentimentos, como são expressos e como as pessoas podem ser mal-entendidas.


14-17 anos: Comportamentos sexuais e as suas consequências, das doenças sexualmente transmissíveis até às respostas emocionais.

O LADO BOM DE UMA TELENOVELA

Os episódios podem dar material para uma boa conversa em família.

Aproveite para levar o seu filho a reflectir sobre as personagens e as histórias. Levante algumas questões e deixe que ele responda: o que é que a aparência das personagens diz sobre elas e sobre a maneira como querem que os outros as vejam, por exemplo.

Leve-o a olhar para as famílias apresentadas e deixe que ele descubra: de que maneira é que as famílias funcionam? Em que são iguais e diferentes da família dele?

O sexo é sempre um tema importante, e ele pode verificar se as personagens falam sobre o que vão fazer, se usam protecção, quais as consequências possíveis dos vários comportamentos.

Seja selectiva: alguns adolescentes não gostam de falar de sexo com os pais, especialmente quando os amigos estão presentes.

Se eles quiserem mesmo ver e não estiver em casa, grave e veja depois com eles, pelo menos algumas vezes.

Mantenha a discussão informal e divertida. Contenha a vontade de dizer ‘Mas vocês gostam mesmo disto?’ mesmo que lhe apeteça muito. Ninguém gosta de ver o seu programa preferido com o velho dos ‘Marretas’ ao lado.

Não espere que concordem consigo. Lá porque não lhe respondem, não quer dizer que não tenham ouvido e que não fiquem a pensar nisso.

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