O seu bebé não dorme nem deixa dormir, não lhe consegue pegar ao colo sem que ele desate num pranto. E sabe que não são cólicas nem os dentes, o pediatra assegura-lhe que não há nada de errado com a saúde dele. O que se passa, afinal?
Se o cenário lhe é penosamente familiar, saiba que não está sozinha. Foi a pensar nestes pais “desesperados, que já não sabem a quem recorrer”, que a Unidade da Primeira Infância (UPI) do Hospital D. Estefânia (Lisboa) criou a Consulta do Bebé Irritável, já há cerca de 10 anos. “É a pedopsiquiatria que pode oferecer cuidados mais diferenciados nesta área”, explica o pedopsiquiatra Pedro Caldeira da Silva, responsável pela coordenação desta consulta. Achámos que era uma área muito desprotegida. As pessoas queixavam-se muito mas ninguém ligava e diziam: ‘é uma fase, isso passa’. Também queríamos combater o estigma ligado à saúde mental, abrindo consultas com uma designação mais aproximada das dificuldades das crianças.”
A criança deve ser observada primeiro por um pediatra para excluir a existência de qualquer outra doença. Os bebés podem chegar ali reencaminhados pelos serviços de saúde, mas muitos contactos já se fazem por iniciativa direta dos pais e sem necessidade de burocracias. “É um serviço muito humano”, diz o pedopsiquiatra.
A UPI trata cerca de 200 novos casos todos os anos. Trabalha em parceria estreita com a consulta de desenvolvimento do D. Estefânia. “Para além dos bebés silenciosos e irritáveis, há ainda crianças com problemas alimentares ou problemas do desenvolvimento. A diferença em relação às consultas de desenvolvimento é que acompanhamos as crianças. Elas não vêm cá só para serem avaliadas a cada seis meses. Se for necessário faz-se apoio à interação entre pais e criança, intervenção direta com a criança, articulação com a escola.”
O que é um bebé irritável?
“É aquele que os pais acham que é irritável, tendo em conta aquilo que acham que é expectável e que aguentam”, diz-nos Pedro Caldeira da Silva. Assim descrito, pode parecer inespecífico, concorda, mas os profissionais têm técnicas especiais para investigar os mistérios destes bebés. “Muito frequentemente estes bebés têm dificuldades do sono, acordam muitas vezes de noite e choram muito. Dormem mais durante o dia que de noite e depois têm dificuldade em regular os ritmos da alimentação. Depois, tudo começa a correr mal na relação com o bebé.
As crianças começam a chegar à consulta por volta do quinto ou sexto mês, até fazerem um ano, em média. “Naturalmente, os pais resistem a ir ao psiquiatra com um bebé. Mas são os pedopsiquiatras que estudam e sabem como os bebés conhecem e registam o mundo, os seus estímulos sensoriais e emocionais.”
Mães deprimidas, filhos irritáveis
Às vezes, esta irritabilidade inexplicável pode querer dizer que alguma coisa não está bem com um dos pais, observa o pedopsiquiatra. “A razão mais frequente é a depressão materna, ou a pós-parto ou aquela que já vinha de antes – foi a conclusão a que chegámos, depois de analisarmos os primeiros 60 casos. Por outro lado, estes bebés com temperamento difícil também são causa de depressão das mães, por isso acaba por se tornar numa interação nos dois sentidos.”
Noutros casos, os bebés sofrem de Perturbação Regulatória do Processamento Sensorial. “Reagem de forma diferente a estímulos sensoriais como os sons, o movimento ou o toque. Estímulos que são banais para a maior parte dos bebés são excessivos para outros, mais hipersensíveis. Há bebés que não gostam de ser balançados, outros têm uma sensibilidade especial no tato e ficam muito desconfortáveis com determinadas roupas. Aquilo que é um ruído normal para um bebé pode ser muito assustador para outro.” Até existem aqueles que não gostam de ser pegados ao colo. “Não é por não gostarem das mães; têm é uma hipersensibilidade no aparelho vestibular (que dá a sensação do equilíbrio). Mesmo que lhes pegue de forma normal, pode ser muito depressa para ele. O bebé tem que antecipar esse gesto – ou que vai mudar a fralda ou tirar a roupa. É importante que tudo seja compreensível para ele e que o nível de estimulação seja adequado. Se for demasiado intenso e imprevisível, ele começa a elaborar a ideia de que o mundo é assim: perigoso, imprevisível, catastrófico.”
Conversas com bebés
Como se faz o diagnóstico de algo que não é uma doença orgânica, numa criança que não fala? “Os pais conhecem muita coisa dos seus bebés, mas muitas vezes não conseguem estabelecer padrões para o comportamento deles e nós ajudamos a percebê-los – a altura do dia em que acontecem mais, o que resulta melhor e pior. Há toda uma ‘conversa’ que os bebés têm connosco e que estamos treinados para observar: se desviam o olhar ou não, a forma com sorriem (ou não), como reagem à aproximação de outra pessoa, ao toque, à estimulação multissensorial. É um trabalho de tentativa e erro, mas vamos conduzindo as observações segundo as hipóteses que temos.”
Em média fazem-se seis consultas até resolver ou minorar os problemas. “Podem ser mais, mas podemos dizer que a intervenção é bastante eficaz.”
O tratamento pode passar por reduzir os estímulos à volta do bebé, mas muitas vezes são os pais que precisam dele, diz o pedopsiquiatra. “A maior parte das vezes, é pela palavra e aconselhamento de aplicação de estratégias para lidar com o bebé, tentando perceber as dificuldades, as ansiedades que ele desperta nos pais, o que representou a chegada de um filho na sua vida, o seu bem-estar.”
Os misteriosos bebés silenciosos
Do outro lado da trincheira dos bebés difíceis estão aqueles que são tão caladinhos e quietos que os pais acham que têm um projeto de santo em casa. E esse é o problema, diz Pedro Caldeira da Silva. “Tratamos muitas crianças com perturbações da relação e da comunicação, no espectro do autismo. Estas crianças preocupam-nos porque passa cerca de um ano desde o período em que os pais começam a notar alguns sinais e a altura em que eles são referenciados para uma primeira consulta. E esse ano é crucial no tratamento.”
Para chamar a atenção dos pais e de outros profissionais de saúde para estes casos, a UPI criou a Consulta do Bebé Silencioso há cerca de 5 anos. “Não queremos alarmar os pais. Pode ser uma perturbação mais grave, ou não.”
Para além das doenças do espectro do autismo, há mais causas para esta falta de resposta a estímulos. “Pode tratar-se de um bebé sub-reativo (que precisa de muito mais estímulos), ou que sofra de uma depressão major. Também pode ter um défice auditivo e não interagir porque não ouve bem.”
Sinais de alerta
“O mais evidente é a criança chegar aos dois e não falar. Esperam até aos 2 anos e meio e só depois vão à consulta. Mas antes desse sinal há um conjunto de outros, mais discretos, nos quais nem os técnicos de primeira linha reparam, muitas vezes: evitamento do olhar, não responder ao nome, não apontar nem seguir o apontar do outro, não ter partilha afetiva (não partilhar alegrias ou tristezas), não ter atenção conjunta (não se interessar por aquilo que os outros se interessam), não vocalizar nem chamar.
A deteção precoce é crucial. Os pais já estão mesmo mais alerta para este ‘silêncio’ anormal dos seus pequenos. “Começam a chegar à consulta bebés com um ano ou ano e meio, o que é ótimo pois ganhamos imenso tempo de intervenção numa altura crítica, em que o cérebro ainda se está a formar. Ainda se estão a estabelecer ligações entre células cerebrais e a escolher, biologicamente, as vias de comunicação que se vão estabelecer no cérebro daí para a frente – e a experiência do bebé influencia isso.” Estes casos podem justificar um seguimento de anos, dependendo da gravidade de cada caso. Mas com tratamento precoce estas crianças podem ter uma evolução tão positiva ao ponto de eventualmente ultrapassarem este diagnóstico de perturbação. “A experiência que temos é de que as crianças que começam a fazer tratamento antes do ano e meio têm uma evolução mais positiva.”
CONTACTOS ÚTEIS
Consulta do bebé irritável e do bebé silencioso – Unidade da Primeira Infância do Hospital Dona Estefânia. tel. 218.530.733