Victor Moryama

Ana Cláudia Quintana Arantes, brasileira, é médica e especialista em cuidados paliativos. Diz que se faz silêncio quando está numa conversa e explica o que faz na vida. Formou-se em medicina mas viu morrer tanta gente em macas de hospital que decidiu dedicar-se ao fim da vida. É sócia fundadora da Associação Casa do Cuidar, professora em The School of Life e da Casa do Saber, e desenvolve cursos intensivos de conversas sobre envelhecimento e como lidar com a morte. É autora dos livros ‘A morte é um dia que vale a pena viver’ e ‘Histórias lindas de morrer’ mas afirma que não gosta da expressão ‘ajudar a morrer’ (“as tabaqueiras fazem isso por mim”) mas acompanhar até ao fim. E luta todos os dias contra o tabu que ainda é falar da morte.

Porque é que temos tanta dificuldade em falar do nosso fim?
Como não sabemos cuidar do nosso tempo, não sabemos fazer escolhas adequadas com esse tempo. Desperdiçamos domingos a fio. As pessoas dizem ‘a morte mata a vida’. E acham que se falarem sobre a morte ela vai acontecer. Eu digo ‘há 25 anos que falo sobre isso e ainda aqui estou’ (risos). E então, como achamos que somos eternos, desperdiçamos a vida. Adiamos constantemente a nossa felicidade e quando de repente esse limite chega, e não fizemos nada do que queríamos, isso assusta-nos.

Há quem tenha tempo para se aperceber da chegada da morte. De que é que temos medo, de sofrer?
Isso é muito inquietante. Muita gente não aceita cuidados paliativos porque acha que está a aceitar a morte. Muita gente me pergunta ‘Você ajuda as pessoas a morrer?’, e eu digo: ‘Não, as pessoas morrem sem ajuda mesmo, eu ajudo-as a viver de maneira plena até ao fim.’ As pessoas têm sobretudo medo do limite, do muro, de não terem mais tempo. Mas o medo afasta-nos da capacidade de aprender. E quem está a morrer torna-se um mestre.

O que aprendeu com essas pessoas?
Alcançam uma consciência plena do que realmente importa. A morte consegue dizer-nos o que é importante. Por exemplo, eu, que não estou a morrer, parti o tornozelo, foi bem feio, preciso de ajuda para tudo. Se eu não tivesse a Morte do meu lado a falar: ‘Ana, por amor de Deus, isso é uma fase da sua vida, não é uma coisa definitiva, você pode aprender com isso’, ficaria furiosa com isto. E eu posso perguntar: ‘Eu sou tão boa pessoa, porquê eu?’, mas isto é uma pergunta estúpida. Na verdade a pergunta é, ‘porque não eu?’. A sua fragilidade não te aprisiona, te liberta. A sua vida não vai embora enquanto você está dependente. Você está ali. O que é importante é ter uma vida digna, sem dor, sem sofrimento físico.

E o que realmente importa é quase sempre a mesma coisa ou é diferente de pessoa para pessoa?
O cenário pode variar, mas o conteúdo é o mesmo: receber e demonstrar afeto, perdoar e ser perdoado, agradecer. Aquele teu chefe que te fez a vida num inferno, graças a ele você mudou de emprego e ficou muito melhor. Você se separou e sofreu horrores, mas depois encontrou o amor da sua vida. A gratidão é um processo necessário para dizer adeus. Se você sempre foi grata, mesmo sem ter os dias contados, morrer fica muito mais fácil. Porque esse trabalho já está feito. Não que você não se arrependa, porque toda a gente comete erros. Mas também é importante se perdoar por isso.

O que pode fazer um médico e o que pode fazer uma pessoa da família para acompanhar quem morre?
Primeiro há que tirar ou amenizar o sofrimento físico. Quem está com dores não tem como refletir sobre a vida. Depois, mostrar à pessoa que você se importa, o que é diferente de ter pena, e que está à disposição para ajudá-la em qualquer coisa: vestir as meias, comprar um remédio, levar para um exame, cuidar do gato. Mas atenção: olhe para a sua vida primeiro e não prometa o que não pode dar. Decida o que pode oferecer. E disponha-se a ouvir. Nós não aguentamos ouvir. Dizemos ‘Ai, não diga isso!’ E a pessoa pensa: “Mas eu estou com medo, eu preciso de falar com alguém sobre o meu medo, o meu funeral, a minha filha’, e não tem quem a ouça. Ou então ela não quer falar, e você tem de respeitar esse silêncio também.

Podemos morrer felizes?
Morrer é um acelerador de felicidade, e todos nós, finitos, todos nós com consciência, nos apercebemos disso. Uma vez eu tinha um paciente com um cancro que lhe invadia todos os ossos. Um dia sentiu-se tão melhor que pediu novos exames e disse que estava até à espera de um milagre.Vieram os resultados, e ele tinha piorado muito. Mas sorriu-me e os olhos sorriam também. Eu tirei a bata de médica e perguntei: “Diga-me, como é que se faz para chegar aqui como você?” E ele respondeu: “O meu pai ensinou-me que o livro da vida tem duas páginas: a primeira você lê quando tudo dá errado na sua vida. E a página diz: isto vai passar. A segunda, você lê quando tudo estiver dando certo. E a página diz: isto também vai passar. E foi assim que eu vivi a vida.” A gente pensa, a morte é um ponto final. Mas se sempre vivemos em equilíbrio, não vai ser preciso correr tanto, debater-se tanto, naqueles últimos momentos. Está tudo feito.

Como é que a morte de outra pessoa nos afeta?
Para quem fica, também é um processo de profunda transformação. Se eu for muito ligada a você, você deixa de ter o seu reflexo nos meus olhos. Mas se eu consegui mostrar-lhe nos meus olhos que você é forte e inteligente, isso vai ficar contigo. No processo de luto, você se vai reconstruir a partir da memória de você própria no meu olhar. E se você tiver consciência desta morte anunciada, ainda está a tempo de estar com essa pessoa, de acarinhar, de pedir perdão.

E como é que ajudamos quem está a morrer a falar dos seus medos?

Não é preciso entrar logo a matar (risos). Pode dizer ‘Vou ter muitas saudades suas’. Tive uma rapariga que me perguntou uma vez: ‘Doutora, eu sei que vou ter de me despedir da minha mãe, mas como é que eu vou saber qual é a altura certa?’ E de facto a gente não sabe qual é a altura certa. Mas despedir-se não é só dizer adeus, é dizer tudo o que você sempre quis que ela soubesse. ‘Então’, dizia ela ‘e se eu disser adeus e no dia seguinte ela estiver bem outra vez?’ ‘Mas aí você diz olá outra vez!’ (risos) Não é uma coisa definitiva, tudo se pode dizer sempre. Falar é libertador. É como se você tivesse um avião para apanhar. Você faz o check-in, e faz a mala, mas ainda tem um dia inteiro para passear! Então, a despedida é assim. Despede, guarda a mala, e aproveita o dia que ainda tem livre.

Como se vive antes da morte?
Você aproveita cada segundo, tudo lhe parece incrivelmente mais belo. É um processo muito bonito que noto em todas as pessoas que acompanho. Mas nem toda a gente se transforma numa excelente pessoa só porque está a morrer. Um cancro não santifica ninguém. Claro que às vezes não é por mal. Muita gente cria os filhos para a liberdade, não para o amor presente. Isso não é mau. Mas na hora de morrer, tem os filhos longe.

Porque se meteu nisto de ensinar a morrer? (risos)
Foi um processo muito sofrido. Há pessoas que sabem que vão sofrer, mas sabem como sofrer. Eu não sabia. Entrei na melhor faculdade de medicina no Brasil, com uma força descomunal na ciência, com gente inquieta em busca de respostas. Mas os médicos estão tão focados na doença que se anestesiam para o sofrimento dos pacientes. Não é maldade, é o caminho que encontraram para sobreviver. Mas a ciência implica cada vez mais que nos importemos com o outro. Diziam-me sempre, nos casos terminais, ‘Não há nada a fazer.’ Mas há! Há sempre! Através da minha sabedoria, do meu conhecimento, da minha capacidade de estar presente, eu posso ajudar.

Põe-se no lugar do outro, é isso?

Não exatamente. Ajudar é mais do que isso. Porque se eu me ponho o lugar do outro, isso é arrasador. Você não se pode pôr no lugar do outro, porque isso te destruiria e você não seria capaz de ajudar. Então você encontra forma de ser útil. Você não troca de sapatos, mas você cura as feridas do pé.

Há casos ainda hoje em que não sabe que fazer?
Eu posso não saber, mas a pessoa sabe. O que eu posso fazer é ajudá-lo a descobrir uma saída, a usar as chaves que ele tem, a decidir que porta ele quer abrir. Isso faz-se conversando, olhando nos olhos, permitindo o silêncio. A gente tem uma enorme necessidade de encher o silêncio. Mas ficar em silêncio não é ficar ali no telemóvel. É pegar na mão, fazer um carinho, fazer uma festa. E isso dá tempo ao paciente para se abrir a essa situação nova e encontrar as suas respostas.

Mas muita gente não tem essa pessoa que está perto…
Morremos muitas vezes sozinhos estando acompanhados, quando as pessoas não conseguem ficar ao lado, quando passam o tempo a chorar ou a dizer ‘não me abandone!’ Tive uma menina de 20 anos que fez um curso comigo, e era das únicas pessoas que não tinha perdido ninguém. Três meses depois, a avó morreu de cancro, e quem tratou de tudo foi ela. Ela sabia quem da família precisava de ajuda, falou com os médicos para controlar os sintomas, perguntou à avó o que queria que fosse feito. Mas quantas pessoas ficam fechadas no seu sofrimento, no seu umbigo, ‘estou a perder a minha mãe!’, e é preciso abrir mão disso para apoiar a outra pessoa. A pessoa não morreu ainda, enquanto ela vive aproveite a presença dela, leve à praia, leve a ver o mar, não viva para a químio.

É possível morrer em paz sozinho?
Muita gente morre sozinha de família, mas não de seres humanos. Por exemplo, eu cuidei de moradores da minha rua. Não tinham família com eles, mas tinham-me a mim. Isso até pode ser uma lição de vida, para criarmos esse vínculo de amor com outras pessoas. Você pode estar sozinha de filhos, sozinha de marido, mas não está sozinha de amigos.

O que pensa da eutanásia?
É um exercício irracional de controle, porque a morte é a grande experiência da entrega. Só há mais duas experiências de entrega: sono e orgasmo. Se você quer controlar, morrer no dia do seu aniversário rodeado dos filhos e com alguém tocando Bach, é uma cena linda, mas para mim não faz sentido. Se a pessoa está num sofrimento atroz, a pessoa não quer morrer, quer ser aliviada.

Alguém alguma vez lhe pediu a morte?
Pediu. Aí eu pedi três dias. Tratei os sintomas, a dor passou, três dias depois, ele já não queria morrer, queria passear no jardim. Para mim, a eutanásia fará sentido como escolha quando 100% das pessoas tiverem cuidados paliativos. Neste momento, se nós viramos a cara e torcemos o nariz e não temos maturidade para discutir sequer a morte natural, como vamos discutir a eutanásia?

Dá aulas de acompanhamento de morte mas nem toda a gente tem compaixão ou empatia. Isso ensina-se?
Claro. Todos nós, seres humanos, temos essas capacidades. Mas somos ensinados desde pequenos a não as exercer, como reserva de espaço pessoal. Por exemplo: há duas crianças brincando, uma empurra a outra, a outra magoa-se. A professora diz, ‘olha o que você fez, ele está sangrando! Ponha-se no lugar dele, gostaria que fizessem isso com você?’ O que isso ensina, compaixão? Não. Culpabilidade. A resposta compassiva seria: ‘João, você empurrou o António e ele magoou-se. Isso dói. O que é que você pode fazer para o ajudar?’ Pegar água, segurar na mão, cantar para ele, brincar com ele, fazer um desenho? Percebe? Você faz o mal sem querer, mas quando sai da culpa, dá-se para a regeneração.

Dê-me um conselho…
De toda a vez que tiver problemas que lhe tiram o sono, pergunte o que é que a sua morte acha disso. Ela lhe vai dizer se vale a pena preocupar-se ou não.

Alguma vez teve essas conversas com a sua morte?
Tantas! Uma delas foi quando não sabia se havia de pedir demissão do hospital para me dedicar aos cuidados paliativos. E pensei, se morresse na semana que vem, nunca me ia perdoar por não ter tomado essa decisão. Agora, ficar brava porque pintaram a minha parede de amarelo em vez de creme? Não vale a pena.

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