O dia está quente, já perdi a conta às entrevistas e, por uma vez na vida, não consegui fazer o trabalho de casa. Isto enerva-me. Só sei que Tamar publicou um livro (‘O mel da deusa’), que tem um projeto nas redes sociais com o mesmo nome, onde fala sobre sexualidade, que Tamar não deve ser o seu verdadeiro nome, que é especialista em ‘sexualidade consciente’, que eu também não sei o que é, e que se tornou o ídolo de muitas mulheres. Previno-a já: se isto não funcionar, quero o meu dinheiro de volta. Ela ri-se. Eu estou de mau humor, o carro teve um furo. Ela tem uma bolha no pé mas continua sorridente. Sento-me para saber mais sobre esta pessoa. E de repente o mundo fica luminoso. Bem-vindos a uma viagem libertadora pelos mistérios femininos.
Tamar é o seu nome verdadeiro?
Não, Tamar é uma personagem. Como não fiz um percurso académico em sexologia, não quis usar o meu nome, Marta Azevedo. Então a Tamar nasceu do meu encantamento pela Mesopotâmia, pelas histórias da Bíblia e pelo livro ‘A tenda vermelha’. É uma mulher do Antigo Testamento, a quem, quando enviuvou, o sogro roubou tudo, mas que conseguiu levar a melhor.
E como é que a Tamar formadora de sexualidade substitui a Marta socióloga?
Fiz o percurso formativo habitual: licenciatura, pós-graduação, mestrado, tudo na área de Sociologia e Gestão de Recursos Humanos. Durante mais de dez anos fui consultora e formadora na área organizacional, e depois comecei um processo de desenvolvimento pessoal, quando descubro as ferramentas bioenergéticas e somáticas na sexualidade. Isto significa usar as respirações, movimentos, sons e toques específicos, partindo do pressuposto de que temos muita informação que desconhecemos guardada no corpo, temos memórias antigas que podemos acordar. Não me interessava por sexologia clínica, que faz um tipo de abordagem mais ligado à conversa. Eu não sou terapeuta: sou educadora.
Mas o sexo não está na cabeça?
Claro que sim. Mas o que é que interessa falarmos, por exemplo, de fantasias se o meu corpo está tão bloqueado que eu nem consigo dizer que as tenho? E isto é muito comum. Se eu peço a um homem que me fale das suas fantasias sexuais, ele desfia um rol. Se pergunto a uma mulher, ela responde que não tem ou que não sabe. Portanto, não faz sentido ir para casa fazer uma lista das suas fantasias, temos de ir por outro lado. Falta-nos toda uma educação para a cultura do prazer que parte dos sentidos. Isto são práticas de atenção plena.
Imagine que eu estou aqui numa consulta consigo. Que acontece?
Eu pergunto: o que é que a traz cá? As duas queixas mais comuns são: ‘nunca tive um orgasmo’, e ‘não tenho vontade de fazer sexo’. Eu faço mais perguntas: não tem orgasmo com o parceiro? Tem orgasmo com estimulação manual? Com estimulação oral? Com masturbação? E aqui a esmagadora maioria das mulheres não tem orgasmos com penetração, mas sim com estimulação do clítoris. Se a resposta em relação ao parceiro é sempre ‘não’, há problemas relacionais: nesta relação ou ‘herdados’ de outra. Também pergunto como foi a menarca, a primeira experiência sexual, porque na sociedade atual há uma desvalorização dos ritos de passagem de uma mulher. E vou recolhendo histórias muito violentas, como a de uma mãe que vê a filha tocar-se com 5 anos e lhe diz ‘menina feia, Jesus ficou zangado contigo’. E este corpo erótico, esta capacidade de sentir, perante cada frase destas, cada castigo, cada olhar acusador, fecha-se. Quando temos esse levantamento feito, vamos aprender a soltar-nos do sistema. Se estou disponível para a minha energia sexual, o cérebro já não alimenta pensamentos de prisão. Há quem nem sequer seja capaz de respirar. Há uma ligação direta entre os lábios e a vulva, os maxilares e a pélvis, a garganta e o canal vaginal. Muitas mulheres não conseguem por exemplo manter a boca entreaberta. E a nossa sexualidade precisa de aprender a relaxar.
A do homem não?
Não. A do homem precisa de intensidade, ação, adrenalina. As mulheres precisam de relaxar, mas estão esmagadas pelo cansaço. E aqui temos de perceber que a sexualidade também é uma questão política. A sociedade tem de mudar e por isso é que a sexualidade consciente também é feminista. Não é possível não o ser, porque o ambiente não é de todo favorável a este espaço de autocuidado, de consciência e de ser feminino. Estão sempre a dizer-nos o que temos de fazer e a culpa é sempre nossa. Na intimidade, a mulher assume que está cansada, o homem diz ‘mas eu estou aqui disponível’, e as amigas dela dizem ‘mas tu tens que lhe dar o que ele quer’. Isto ainda existe.
Não seria de supor que algumas coisas já tivessem mudado? Porque há coisas que são hoje muito diferentes. Por exemplo, dantes criticava-se uma rapariga porque ela não era virgem, hoje critica-se porque é…
Essa pressão para ter sexo cada vez mais cedo tem mais a ver com validação externa e estatuto, e continua focada na perspetiva masculina da sexualidade, que ainda é a da pornografia. Os meninos são socializados para objetificar. O seu sentido primordial é a visão. As meninas são socializadas para desejar essa objetificação. E portanto continuam pressionadas de fora para a validarem. Sim, a sociedade já permite que uma mulher apareça no Instagram em fotos de biquíni, mas é essa a liberdade por que lutamos? As jovens já são educadas numa linha de liberdade e independência: estuda, viaja, namora. Mas chegam a uma idade em que começam a ficar impacientes, porque ainda fazemos a ligação entre sexualidade e fertilidade. Se a mulher não estabiliza numa relação, chega aos 30 e começa a pressão social de ‘foi giro, aprendeste, divertiste-te, mas agora chega’. E muitas vezes, nessa altura tudo fecha na vida sexual daquela mulher. Ou então casa-se, e aquele primeiro ano corre muito bem mas depois começa a regredir em termos sexuais.
A novidade é erótica?
É, porque o erotismo precisa da nossa atenção ao outro, e a novidade suscita atenção e ligação. Mas numa relação longa a intimidade também é importante. A rotina tem muito má fama, mas criar intimidade é essencial. E ser íntimo não é só fazer sexo: inclui tocar, olhar nos olhos, a vulnerabilidade, a proximidade, a fragilidade, o ser capaz de apoiar as emoções do outro. Há muita pobreza a este nível. Temos medo de sentir. Então o que temos: o erotismo foi reprimido e a intimidade foi inibida. Temos de abrandar, mas sabemos que se abrandarmos caem-nos em cima os nossos fantasmas. Eu às vezes dou como TPC: ‘vá tirar um tempo para não fazer nada’. E depois a mulher conta-me, ‘ai foi tão bom, fiz chá, li um livro, falei com as amigas, fui passear…’ Até podem ser práticas saudáveis, mas paralelamente estão a aumentar as anestesias como o consumismo e o excesso de trabalho, que são coisas patrocinadas pela sociedade.
Vendem-nos a ideia de que temos de ser bonitas e bem vestidas para sermos desejadas?
Claro que ser bonita ajuda na autoestima. Mas nós não temos de nos transformar numa pessoa diferente para sermos amadas. Eu também trabalho a imagem: mas vamos descobrir juntas, por exemplo, qual é o seu perfil erótico. Por exemplo, investigue a roupa que tem em casa e perceba o que é que cada look a faz sentir. Eu, por exemplo, tenho uma saia de veludo com uma racha de lado. Sempre que a visto, sinto-me femme fatale (risos). Mas isto não é assim com todas as mulheres: cada uma de nós tem o seu ‘gatilho’, aquilo qua faz sentir sexy. E isto também depende da altura da vida e do momento. Não temos de ser sempre iguais e nem só de femmes fatales se constrói a sexualidade. Há dias em que o meu sexy é o conforto, e até posso estar tapada da cabeça aos pés. Porque o erotismo é uma relação, uma comunicação. Quem sou eu naquele momento? O que é que eu quero expressar?
Se para um homem o desejo vem da imagem, para a mulher vem de onde?
É muito complexo. Mas é muito importante para a mulher perceber qual é a sua ‘check list’ naquele momento. O que é que me atrai agora? Perfis que me façam rir, que sejam aventureiros, espontâneos. Se estiver noutra fase da minha vida, já me vai atrair quem seja mais sólido e confiável. Mas a mulher é que dá as cartas, quer no jogo da sedução quer numa relação longa. Quando é que nos começamos a preparar para a próxima relação sexual? Imediatamente a seguir à última. O homem desliga o interruptor. Depois no sábado a seguir torna a tentar e a mulher está ressentida porque acha que ele não lhe ligou nenhuma a semana inteira. E isso gera um conjunto de mal-entendidos. A queixa predominante do homem heterossexual é ‘ela nunca toma a iniciativa’. Mas o desejo da mulher é complexo. Por exemplo, há uma relação direta entre os beijos e a lubrificação da vagina. Mas neste tempo alucinado, o homem não está disposto para uma coisa a que os homens chamaram preliminares mas que para uma mulher já é sexo. Alguns dizem ‘eu aceito que não chegam 5 minutos, mas então diga-me ao certo quanto tempo ela quer’ (risos). Ora as pessoas têm de começar a ouvir-se. Os dois elementos do casal, sejam do mesmo sexo ou de sexo oposto, têm de estar juntos nisto.
Diz que os homens hétero estão a desmoronar…
Porque aquilo que se lhes exige também é irrealista. Também se sentem vazios. Se não dão tempo à energia para fluir entre os dois, também se sentem máquinas. Claro que há sexo sem amor e amor sem sexo. O que não deve haver é sexo sem vontade. Mas até isto é fluido. A terapeuta belga Ester Perel criou a expressão ‘sexo de manutenção’, ou seja, às vezes até nem me apetece muito mas faço, porque é uma maneira de estar aqui para ele. Mas o que o homem me diz muito é ‘ela esteve lá, mas eu não a senti’. Portanto, cada relação é uma relação, com todas as suas particularidades. Se eu estabeleci uma relação com este homem, ou esta mulher, onde o sexo faz parte do acordo, e se eu não vou cumprir essa parte, estou no meu inteiro direito, mas tenho de falar disto. Porque o meu ‘não’ impacta na vida daquela pessoa.
Sempre se interessou pelas filosofias do Oriente?
Curiosamente, não. A espiritualidade que vem com muitas delas a mim nunca me cativou. Detesto aquela ideia de que o corpo é um templo. O corpo não é um templo, é um lar! Mais uma vez, não tenho de me pôr de joelhos! E nós temos coisas sujas, as nossas casas também não estão sempre arrumadas. Ouve-se muito no discurso dos mestres espirituais que se anda cá para transcender, para recusar o corpo. Não. Nós andamos cá para transformar, porque a potência feminina é a da transformação. Nós passamos por fases hormonalmente muito complicadas e não podemos esquecer que isso existe. Mas varremo-las para debaixo do tapete porque sempre fomos dominadas por culturas solares, masculinas. O patriarcado, o capitalismo, tudo isso são culturas solares porque o sol tem sempre o mesmo padrão. Mas a lua tem fases, e nós somos regidas pela lua. Por isso é que há tanto medo da sexualidade, da transformação, da terapia: tudo isto é do domínio lunar. Estenda o braço: a parte de fora é a exposta, a forte, a solar, a pele bronzeada. A parte de dentro é a misteriosa, a feminina, a lunar. Portanto, mais do que o Oriente, o que me inspirou foram as sociedades pré-agricultura, onde havia o maior nível de igualdade entre homens e mulheres.
Como é que a pandemia e o confinamento afetaram os relacionamentos?
A pandemia veio extremar tudo, foi um acelerador do que já existia. Tive uma história muito bonita. Eu estava a trabalhar com uma mulher mas já tinha percebido que o homem era muito participativo. Durante o confinamento ela entra em modo mãe, irritada com o marido, sem vontade para nada. Eu apenas tinha deixado como TPC que eles trabalhassem em divisões diferentes e que se vestissem todos os dias como se fossem sair para trabalhar. O homem foi logo mais à frente: do quarto, manda-lhe uma mensagem a dizer ‘olá. Gostei muito de te ver passar. Queria muito que me mandasses um nude teu’. E ela não foi capaz. Aliás, ficou tão espantada que até chegou a pensar que ele tinha uma amante (risos). Então combinei com ela que, em vez de um nude, lhe mandasse uma foto de um ombro, ou um bocadinho da alça. Porque ele não queria um nu: queria acesso a algo secreto e inalcançável que a separação tinha recriado.
Portanto, o sexo é feito de mistério, jogo, mas também de confiança, calma e solidez?
Sim. Rotina e fantasia. E isto não tem a ver com género ou com orientação, vale para toda a gente. Por exemplo, é superimportante na cama o homem estar submisso, ou seja, disponível, porque se ele se põe nesse papel, mostra segurança. Mas a mania de que o homem controla ainda existe. Este homem não se vai permitir muita coisa, nem a si próprio nem à mulher.