“Corri todos os médicos. Estava tão desesperada que ia a tudo o que me prometesse um milagre.” Patrícia Santos passou por todo o drama dos tratamentos, injecções, esperas e desesperos que os casais inférteis tão bem conhecem.
Casou aos 27 anos, e aos 33, depois de ver o tempo a passar, resolveu investigar.
As análises detectaram um problema no marido, e o casal inscreveu-se na consulta de infertilidade da Maternidade Alfredo da Costa. Enquanto esperava, Patrícia fez um tratamento numa clínica particular que não resultou. “Foi muito complicado aceitar esse falhanço, porque já me sentia grávida. Não saía do sofá, achava-me mais gorda, e quando não resultou senti que tinha perdido um filho. Foi um balde de água fria, chorei muito, fiquei contra o mundo inteiro.” O segundo tratamento, na Maternidade Alfredo da Costa, também deu negativo. E o terceiro. E o quarto.
“Aquilo começou a ser uma obsessão na minha vida,” lembra. “Não conseguia pensar noutra coisa e sentia-me tratada com muita frieza. Quem me dava apoio eram os outros casais que lá estavam, formávamos uma espécie de família.”
Ainda hoje recorda a angústia do tempo a passar. “Aquelas duas semanas à espera do resultado eram um horror. Na primeira vez que fiz o tratamento, contei a toda a gente, família e amigos. Mas quando não deu certo foi terrível, toda a gente queria falar nisso e ligava cá para casa. Depois passei a não falar no assunto.”
Foi até ao último tratamento possível na Maternidade e ainda tentou duas vezes em clínicas privadas. Gastou muito dinheiro. Finalmente, desistiu. “A minha médica de família aconselhou-me a parar por ali e a procurar outras soluções, como a adoção, mas o meu marido não quis e eu respeitei a sua decisão. Mas não consigo entender por que é que ele não quer adotar, nunca conseguimos falar sobre isso. Ele fecha-se muito, nunca quis ir ao psicólogo. Vive muito revoltado, vê os irmãos todos com filhos e ressente-se disso.”
Ainda hoje, aos 54 anos, também a ela lhe dói ver famílias com crianças. “Sei que a comparação é horrível, mas sinto que não ter filhos é uma doença incurável. Já não ando na ansiedade dos tratamentos, mas não consigo deixar de pensar nisso.”
É IMPORTANTE PODER DIZER ‘ODEIO-TE’
“Tudo isto criou uma barreira e um distanciamento entre o casal,” nota Patrícia. A mesma coisa é confirmada pela terapeuta familiar Catarina Mexia, que há anos dá apoio a vários casais estéreis. “Em relação aos homens, o problema é que a infertilidade continua associada à potência sexual. Além disso, quem faz a transferência do nome é o homem. Portanto, para um homem sem filhos a sua família morre ali, e adotar, para muitos deles, não é a mesma coisa, porque não é o sangue deles.”
Quando não há uma gravidez, a situação pode ser terrível. “Em situações de infertilidade, há um medo muito grande de engravidar, que é contraproducente com a vontade de ter, e acaba por gerar uma montanha-russa emocional. As mulheres queixam-se de que os maridos não estão com elas, mas mesmo se estivessem 24 horas sobre 24 horas iriam sentir-se sozinhas. Há uma sensação de solidão muito grande, que é uma solidão com elas próprias.” Mesmo quando conseguem um filho, muitos casais acabam por se separar.
Quando esse filho nasce depois de um período de infertilidade, ao contrário do que se poderia pensar-se que as pessoas se aproximariam mais, que as dificuldades uniriam o casal, as feridas são profundas, e aquele filho pode tornar-se a representação constante disso”, explica a terapeuta. Quando não conseguem um filho, tudo depende da forma como este casal vivia. “Quando os casais estão organizados um para o outro, a falta de uma criança é superada. Afinal, a razão que juntou aquelas pessoas foi o facto de gostarem de estar juntas. E é preciso não perder isto de vista. Quando os dois acham que um casal sem filhos não é casal, então temos um problema.”
Curiosamente, nota a frequência com que uma mulher com problemas de fertilidade se junta com um homem também infértil. “Não sei porquê, mas acontece muito. E resolver esta soma de infertilidades pode ser muito complicado.” Por muito doloroso que seja, é fundamental que as pessoas falem. “Há maior facilidade da parte das mulheres. Não é fácil um homem expor emoções que são frequentemente muito complicadas: há muitas vezes uma grande raiva em relação à mulher. E têm de fazer um rearranjo na forma como entendem todo aquele processo.
Aqui, o que é feito é reformular as situações, permitir-lhes odiar o outro, se necessário, e contar a história de outra maneira que não a politicamente aceitável que diz ‘eu não posso odiar o meu marido, só posso ter pena dele ou ser solidária’. Nada aqui é óbvio, tudo tem de ser dito. Há um bocado aquela ideia do amor romântico, em que o outro sabe tudo sobre nós, mas a realidade não funciona assim.”
QUANDO A VIDA NOS TROCA AS VOLTAS
Fala-se muito da angústia da infertilidade, mas esta não é a única razão para ficar sem filhos. Muitas mulheres que sempre desejaram ser mães vêem que a vida lhes recusa esse sonho, mas o seu drama é mais escondido, mais subtil. Foi o caso de Margarida Baptista, 45 anos. Aos 24 anos, depois de um curto casamento, estava separada. “O meu marido não queria filhos, e isso também pesou na decisão de me separar, porque eu não concebia uma relação sem crianças.” Por volta dos 38 anos, com outra pessoa, pensou: é agora ou nunca. Mas a relação terminou e o filho também não aconteceu.
“Isso coincidiu com o nascimento da minha sobrinha, que mexeu comigo de uma maneira muito profunda.” Os sobrinhos acabaram por preencher o desejo de crianças. Mas o luto que já fez dos filhos que não teve foi o resultado de uma depressão profunda, que a levou à psicoterapia. “Consegui perceber o que queria e o que não queria. Neste momento aceito aquilo que tenho e aproveito as alegrias da minha vida.” O facto de ser professora de adolescentes ajudou-a a lidar com o seu drama. “Gosto muito da minha profissão, levo os meus alunos a visitas de estudo, ao teatro, a museus, e tenho imensos projectos que não poderia levar a cabo com filhos.” Outra coisa que a ajudou foi a quantidade de mulheres que descobriu em situação idêntica.
“Muitas das minhas amigas mais próximas também não têm filhos, e todas tentamos ocupar o tempo da melhor maneira possível. Agora, cada pessoa tem de descobrir essas outras coisas na vida: voluntariado, ajudar instituições, ajudar as amigas com filhos. É só procurar. Acho que o papel de vítima é cómodo e viciante.
Gera afectos à nossa roda mas não nos liberta para outros tipos de vida.” E, acima de tudo, não cair na tentação de se proteger afastando-se das crianças: “É muito pior dizer: ‘Ai, agora não quero ver mais crianças na minha vida.’ Com os filhos dos outros é tão bom, a gente tem o melhor deles e depois devolve-os. (Ri) Os afectos são essenciais na nossa vida, e o das crianças é muito especial. Para que é que eu me vou privar se posso cultivar isso com os sobrinhos, com filhos de amigos, com outras crianças? A maternidade é importante mas não é fundamental, e não ter fihos não significa necessariamente viver sem crianças.”
‘SÓ QUEM FOI MÃE É QUE SABE’?
Mas por vezes o problema das mulheres sem filhos são… as mulheres com filhos.
“Muitas são pouco compreensivas”, nota Margarida. “Acham que a maternidade lhes dá um estatuto de superioridade, o que é muito irritante. Quando começam com aquelas conversas do ‘só quem foi mãe é que sabe’…e aquela ideia de que elas, coitadinhas, não têm tempo para nada e que só elas é que sabem o que é estar verdadeiramente cansada… Respondo logo: ‘Olha, mas tu tens uma coisa que eu não tenho, filhos’.”
O que mais custa são determinados comentários: “Estarmos a conversar e de repente desatar tudo a falar nas crianças… e são conversas inf indáveis. É muito fácil falar nas crianças para não falarmos de nós. Há pessoas que têm filhos mas não têm mais nada.”
Margarida aconselha as mulheres sem filhos a protegerem os seus interesses. “A pessoa tem de impor os seus limites, estar com as crianças quando ela quer e não quando os outros precisam.” E, acima de tudo, aconselha as pessoas a procurarem ajuda. “Não concebo que, com tantos tipos de aconselhamento e de terapia, as pessoas sofram dessa maneira. Peçam ajuda, não há razão para eternizarem uma situação complicada e difícil de aceitar.”
“TENHO OUTROS INTERESSES NA VIDA”
Também Teresa Guerreiro, de 59 anos, recusa ter pena de si própria. “Não temos tempo de vida para tristezas. Eu adoro crianças e não as tive, mas vivo muito bem sem isso.” A sua história de vida é um turbilhão. Filha única, cresceu rodeada de amigos e primos e casou aos 22 anos com uma pessoa dez anos mais velha.
“Ele era um homem muito interessante, muito intenso, e foi uma grande paixão. Ele achava que o mundo não estava para ter filhos, e eu concordei. Mas fiquei grávida. Passei muito mal, ele não me dava apoio, qualquer coisa me dizia que aquilo não era para mim, e fiz um aborto logo nos primeiros tempos. Sou católica, mas achei que aquela altura não era a ideal para ter crianças.”
O casamento durou oito anos. Depois do 25 de Abril, foi para Londres, onde conheceu o segundo marido, um austríaco: “Era um artista, e eu achava que, como artista, ele tinha de ser um homem sensível. A coisa foi boa no primeiro ano, depois foi muito má. Falámos em ter filhos, mas ele era uma pessoa muito reprimida, e as nossas relações eram muito complicadas.” Ficou novamente grávida já na fase da separação. “Mais uma vez, não deu. Eu não ia ter uma criança fora da minha terra, sem apoios e em fase de separação.”
Abortou já em Portugal. Quando se separou, já tinha 45 anos. “E de repente disse: ‘O que é que me aconteceu? Fiquei sem filhos!’ Sempre achei que tinha tantos anos à minha frente que acabei por deixar passar a oportunidade. Nessa altura fiquei muito angustiada, achei que a vida tinha ficado de repente muito pequenina.”
Passados dois anos encontrou o seu terceiro marido. “Achei que era a altura ideal para uma criança, mas quando lhe sugeri isso ele exclamou: ‘Veja lá a sua idade’. Entendi isso como uma recusa, e não insisti. Só mais tarde percebi que ele queria um filho tanto quanto eu.”
ADOTAR NEM SEMPRE É SOLUÇÃO
Aos 48 anos, Teresa decidiu adotar. “Foi muito complicado. Eu admitia crianças até aos 4 anos, qualquer sexo e qualquer cor. Acabaram por nos propor o caso de irmãs, uma de 8 e outra de 13. Mas quando vimos a história daquelas crianças… nem quero pensar nisso. O meu marido chorava, eu sufocava. Acabei por admitir: ‘Não consigo.’ E isso afetou-me imenso, foi a primeira vez na minha vida em que tive uma crise com o meu marido. Criei um ambiente péssimo, fiquei a culpabilizar-me, não teve consequências mas podia ter tido.”
Depois de tudo isto, Teresa considera-se realizada em vários aspectos. “Tenho uma vida boa, tenho uma mãe fantástica, tenho um marido que me adora, sou patroa de mim própria, todos os meus amigos me procuram, tenho a casa cheia com os meus primos mais novos. Acho que sou uma pessoa cheia de sorte.” Se voltasse atrás, teria tido filhos: “E bastantes. Mas com um filho, se calhar, não teria feito metade do que fiz na vida. Sabe aquilo de que me arrependo a sério? De não ter tirado uma especialização profissional. A partir daí, com outra estabilidade, então sim, teria partido para ter filhos. Mas o importante é andar para a frente. Não tive filhos porque não era para ter. Mas não foi trágico, porque tenho outros interesses na vida.”
HÁ MUITAS MANEIRAS DE NOS TORNARMOS IMORTAIS
Conclusão: “As pessoas têm de perceber que têm muito mais recursos do que aquilo que pensam”, lembra a terapeuta Catarina Mexia. “Às vezes estamos tão desesperadas no fundo do poço que acabamos por olhar para cima e não ver a escada.”
Claro que é preciso querer sair do poço: “O papel da vítima pode ser muito confortável e difícil de abandonar, porque dá muito poder. Quem é que se atreve a fazer mal a uma vítima? Quem é que se atreve a dizer aquilo que ela precisa de ouvir? Quem é que se atreve a tratar mal uma pessoa que já está em baixo?”
Uma das primeiras decisões que pede aos casais que a procuram é um prazo para o fim dos tratamentos. “E se as coisas se prolongarem e nada acontecer? É doloroso, mas as pessoas têm de determinar um prazo, porque senão ficam eternamente penduradas. Muitas destas mulheres precisam de fechar o dossiê, e muitas vezes isso não é feito. E não é feito mesmo quando as pessoas dizem que vão desistir. Porque isso é apenas uma atitude racional: não estão a pôr as emoções em ordem, elas continuam lá.”
Fazer o luto do filho que não se teve é doloroso mas necessário. “Pensamos que só choramos as pessoas que estiveram connosco e se foram embora, mas pode ser muito mais difícil fazer o luto de pessoas que nunca tivemos, fazer o luto de um sonho: arrumar as emoções, expressar a pena, não se sentir menos mulher porque aquele foi um objetivo não conseguido.
É reorganizar as prioridades para dar um outro sentido à vida sem que esta esteja sempre marcada pela perda, para que tudo o que ela faça não seja ‘em vez de’.” O não ter filhos também tem a ver com a imortalidade. “Mas nós só deixamos de existir quando as pessoas deixam de se lembrar de nós. E quantas pessoas com filhos não caíram no esquecimento? E, mesmo em vida, ninguém lhes telefona, ninguém lhes diz nada? Há tantas maneiras de nos tornarmos imortais.”