Vera Lúcia, 31 anos, tinha um sonho de infância: abrir o seu próprio salão de cabeleira. Trabalhou por conta de outrem até perceber que estava na altura de tirar o sonho da gaveta e ser chefe de si mesma.
Problema: era natural de Cabo Verde, não tinha nada de seu para oferecer como garantia para um empréstimo, tirando a força do trabalho. "Conheci o Microcrédito através de uma amiga que recorreu a ele para abrir uma loja. Há quatro anos que andava a tentar abrir o meu negócio mas, como era mãe solteira de dois filhos, todo o dinheiro que fazia só dava para sobreviver. Teria problemas em obter um crédito normal." Ligou para o escritório de Lisboa da Associação Nacional de Direito ao Crédito (ANDC). Cinco dias mais tarde, tinha uma técnica à porta de casa para ajudá-la a criar a sua micro-empresa. "Precisava de começar a trabalhar depressa. Apresentei o projecto, dizendo onde e como seria o salão, e orçamentos para materiais e equipamento."
Um caso de sucesso
Não foi preciso esperar muito para obter resposta ao seu pedido: dois meses depois, o banco acedeu ao seu pedido de cinco mil euros. E a 1 de Maio de 2006, Dia do Trabalhador, abriu o seu salão em Porto de Mós, onde a especialidade são os meticulosos penteados africanos e afro-brasileiros. "Comecei a ver os primeiros resultados na minha caixa registadora pouco meses mais tarde,", recorda. O grosso da clientela é composto por mulheres africanas com mais de 40 anos.
Hoje, sabe que fez bem em arriscar; a sua vida deu uma grande volta… para melhor. "A felicidade de se concretizar um sonho é enorme. É claro que tudo isto se mistura com uma responsabilidade muito maior e com o medo de fracassar, sobretudo agora que as coisas estão tão más. Mas sou corajosa e acho que vou conseguir o quero". E até já está com planos de expandir o negócio, dentro de uns anos. "Quero abrir uma cadeia de salões e dar trabalho a mais gente. Sou negra e sei que ainda há muito preconceito na contratação de profissionais negras. Gostaria de ter europeias e africanas a trabalhar juntas."
Mulheres na dianteira do microcrédito
Ao longo dos seus dez anos de existência, a ANDC ajudou a criar 800 empresas como a de Vera, através de financiamentos de pequeno montante – máximo de 10 mil euros – que devem ser empregues, exclusivamente, na criação de um negócio. O seu alvo são os mais desfavorecidos, social e financeiramente. "O objectivo do microcrédito é fazer com que pessoas que se encontram em situação de maior precariedade, mas com capacidades empreendedoras, vontade e capacidade de desenvolver um negócio, possam mudar de vida", explica Manuel Brandão Alves, presidente da ANDC. "A partir de uma boa ideia têm de ser capazes de dar azo a uma iniciativa de sucesso. Estas pessoas não têm acesso ao crédito tradicional por não poderem oferecer garantias bancárias ou terem património como carros, acções, imóveis ou uma remuneração estável e aceitável."
A maioria dos microcréditos portugueses, garante o responsável por aquela associação, são concedidos a mulheres: "Segundo a nossa experiência, cerca de 54%. Mas é uma diferença pouco significativa." Já para Mohamad Yunus, o economista que criou o conceito, faz toda a diferença conceder um microcrédito a uma mulher: com o dinheiro, elas criam os seus postos empregos, tiram os filhos do trabalho infantil para os voltarem a pôr na escola e ainda sustentam a família com o fruto do seu trabalho. "Numa família pobre, a mulher é uma magnífica administradora de recursos escassos", afirma Yunus.
Quem (e como) pode candidatar-se
Os candidatos naturais ao microcrédito são os desempregados, os que estão em via de perder o emprego ou tiverem formação profissional, na expectativa de um trabalho por contra de outrem. "Devem ser pessoas que se encontram na franja social dos mais desfavorecidos. Têm de ser capazes de demonstrar que a sua ideia pode dar origem a um negócio rentável a médio e longo prazo e de se convencerem a si próprios de que aquilo é para durar", sublinha o presidente da ANDC.
Mas também há outras características a analisar, como ambiente familiar ou as capacidades de relacionamento interpessoal – importante, por exemplo, para quem quer planeia trabalhar com atendimento ao público. Também é preciso que os candidatos não tenham incidentes bancários activos, como ter passado cheques sem cobertura ou falhar pagamentos de créditos pessoais. Apesar de não existir um limite de idade para se poder candidatar, ter mais de 65 anos, ser doente e ter internamentos frequentes, não ajuda a convencer ninguém que o seu negócio irá singrar.
Micro também nos juros
Arranjar fiador é outro dos requisitos necessários. Mas, enquanto no crédito tradicional, este se responsabiliza por 100% do montante emprestado, caso o empresário não possa pagar, no microcrédito responde apenas por 20%. "Queremos do fiador o mesmo que queremos do empresário: que seja uma pessoa que vive na mesma comunidade, tantas vezes um meio desfavorecido", explica Brandão Alves.
A ANDC tem acordos com Caixa Geral de Depósitos, o Millenium BCP e o BES. Nos dois primeiros, o prazo máximo de reembolso do crédito são 36 meses, no caso do BES, 48 meses. A taxa de juro também é mais baixa no microcrédito. "Num financiamento normal, os valores praticados no mercado rondam os 18% e, no microcrédito, as taxas de juro não vão além dos 7,5%." O insucesso no pagamento é baixo: em anos de recessão, apenas 9 em cada 100 microempresários não conseguem pagar os seus empréstimos.
Ajuda profissional gratuita
A partir do momento em que contactam a ANDC, os candidatos podem contar com aconselhamento e ajuda técnica gratuita. Apesar da sede ficar em Lisboa e existir um pólo no Porto, a associação tem técnicos espalhados em várias regiões do País, que vão ao encontro dos candidatos. "Na maioria dos casos, as pessoas não têm capacidade de preparar um dossiê de apresentação de um projecto de investimento para os bancos", observa Manuel Brandão Alves. "Na ANDC, para além de se avaliarem propostas e candidatos, os técnicos ajudam a preparar esse dossiê e posso dizer que 99% das propostas são aprovadas." Em média, cada candidato aguarda dois meses pela resposta de crédito. "Mas, após isso, as pessoas têm necessidade de ter acompanhamento no desenvolvimento do negócio, e este talvez seja o nosso papel mais importante. Estas pessoas defrontam-se com problemas, como a montagem de um sistemas de contabilidade, querem expandir as instalações iniciais e precisam do parecer de um arquitecto, querem saber como se mover em termos burocráticos. Este serviço posterior também é grátis e desenvolve-se durante o tempo em que o empresário está vinculado ao pagamento do crédito ao banco."
Mais do que ensinar a gerir projectos e finanças, este é, muitas vezes, um acompanhamento humano. "Há quem esteja a passar uma fase de vida difícil e, muitas vezes, as pessoas precisam só de alguém que os ouça, de um amigo que os aconselhe. Em primeiro lugar, está a pessoa e não a empresa. A maioria habituou-se a só apanhar pontapés na vida."
E já há casos de empresas de sucesso que começaram com um microcrédito, como relata Manuel Brandão Alves. "Uma empresa de limpezas, a Molly Maid, começou por pedir um microcrédito para comprar uma carrinha e um aspirador. Hoje tem uma frota de carrinhas." Casos inspiradores que nasceram de uma forte vontade, muito trabalho e uma quantia pequena. O seu pode ser o próximo.