Foi durante o velório da tia Laura que a felicidade se materializou diante dos meus olhos.
-Uma epifania – ia eu dizer à prima Elisa mas não disse.
Primeiro, porque a prima Elisa era filha da morta e podia não achar graça.
E depois porque a prima Elisa não tinha a mais pequena ideia do que era uma epifania.
Por isso limitei-me a esconder o melhor possível o sorriso que rebentava da minha boca, e levantei-me, oferecendo-me para tratar de tudo, saboreando já o que adivinhava estar à minha espera.
Ainda não tinha apagado a mensagem do Nuno do meu telemóvel e, de vez em quando, relia-a, com aquele doce prazer que dá a vingança premeditada.
"Sogra hosp. fim-semana s/ ef."
Há pessoas viciadas no jogo, na droga, no álcool, no tabaco, na net, no Benfica, no Tony Carreira.
O Nuno é viciado em sogra.
Já me tinham alertado para os perigos de andar com um divorciado. Não por causa da ex-, de quem raramente guardam boas lembranças e a quem se referem, na melhor das hipóteses, por "aquela cabra". Mas por causa das sogras. As mulheres passam, mas as sogras ficam. Sempre. É de lei.
E nesse aspecto, o Nuno era um fervoroso cumpridor da lei. Sempre que combinávamos qualquer coisa que saísse da rotina dos almoços, jantares ou cinema – certo e sabido que havia um telefonema do Nuno, em cima da hora, a avisar que tudo ficava sem efeito porque estava com a sogra no hospital.
Confesso que já perdi a conta às pernas que a sogra do Nuno partiu, ou às pneumonias que a atacam, ou às vezes que a chaleira lhe caiu em cima.
Quando a prima Elisa telefonou a anunciar a morte da tia Laura, estava eu a olhar para o telemóvel, a ler a mensagem do Nuno, que mais uma vez adiava um fim-de-semana em Paris, combinado há muito.
Por momentos não soube o que fazer até que, de repente, decidi ir ao velório da tia Laura – para espanto de toda a família, que sabe bem como sou exímia em arranjar desculpas para lhes escapar. Cada um tem a sogra que consegue.
E foi então que, pelo meio das flores e das coroas que sucumbiam ao peso de tanta saudade eterna, ele apareceu.
Acho que durante muito tempo não consegui tirar os olhos de cima dele, a ponto de a Lurdes me ter dado uma cotovelada, murmurando:
– É o tipo da agência!
E eu:
– Quem?
E ela:
– O cangalheiro, pá!
Detesto que me tratem por pá, e talvez por isso desatei a insultá-la, "e então? cangalheiro é gente, ou não será? tem sentimentos! é um ser humano que se deve respeitar!", aquela treta toda que ensinam as crianças a escrever sobre os pobrezinhos nas redacções de Natal.
A Lurdes encolheu os ombros e afastou-se, e eu disse à prima Elisa que iria informar-me junto do senhor da agência de todas as burocracias que era preciso cumprir, ela que não se incomodasse, eu tratava de tudo. Mais uma vez a família nem me reconhecia.
Foi nessa altura, ao olhar para ele, que me veio à ideia a palavra "epifania…Milagre, revelação", qualquer destas também dava.
O cheiro das flores e o calor cá fora também devem ter contribuído para a felicidade me atacar por todos os lados.
Se calhar não era o sítio indicado, mas a felicidade é como o espirro, não tem sítio nem hora.
E ainda agora não sei bem o que aconteceu ou o que dissemos um ao outro.
Sei que daqui a umas horas embarcamos para Paris.
Sei que se chama António.
Sei que não tem sogra.