Quando abriu a caixa do correio até lhe ia dando uma coisa: a conta da água duplicara.
Voltou a entrar em casa, e ali ficou a tentar perceber o que se tinha passado.
Por mais voltas que desse à factura, os números não enganavam. Foi ver se as torneiras pingavam – mas estavam todas bem fechadas, desde o dia em que o Sr. Gabriel lá tinha entrado para consertar um cano da cozinha, e acabara por consertar ainda todas as torneiras, e substituir o tubo do fogão, há muito fora de prazo.
Com o calor dos últimos meses, nem sequer tinha havido banhos de imersão. Ela não gostava de banhos de imersão, mil vezes um duche rápido e revigorante, a filha é que tinha essa mania: metia-se na banheira durante horas, acendia velas, e ouvia música do Tibete.
Mas a filha vivia agora em casa própria, portanto os banhos de imersão tinham acabado há muito.
Fez contas e mais contas, comparou com facturas antigas, ainda perguntou à empregada, que entretanto chegara, se tinha deixado alguma torneira aberta, mas a rapariga até se sentira ofendida, "a senhora sabe que eu tenho sempre muito cuidado, a senhora nunca cá está, mas sabe que para mim é como se estivesse, o meu cuidado é sempre o mesmo". Acabou por lhe pedir desculpa, mais um bocadinho e a rapariga desatava a chorar, ela levava sempre qualquer reparo muito a peito. Deu voltas e mais voltas, mas não tinha havido nada de extraordinário.
De repente, começa a reparar nas contínuas idas e vindas da empregada à casa de banho, que horror, ela nem era de reparar nisso, era certamente por estar de manhã em casa, coisa que raramente acontecia. "Meu Deus – murmurou para si própria -, pareço um reformado nos primeiros dias em que fica em casa, tudo o incomoda…"
Mas a verdade é que a rapariga não parava de ir e vir da casa de banho, estaria doente?, e, com todo o cuidado, para que ela não se sentisse de novo ofendida, perguntou: "Você está bem?"
"Bem? E alguém pode estar bem, minha senhora? – respondeu ela, a limpar as mãos à toalha -, é só ouvir o que dizem na televisão e na rádio, os micróbios da gripe estão em toda a parte, minha senhora e, se a gente não tem muito cuidado, contagiamos o mundo inteiro!, por isso é que eu estou sempre a lavar as mãos, a senhora está a ver, abro a porta da rua para entrar, e lavo as mãos; de cada vez que abro a porta de um quarto – e a senhora sabe como a casa é grande! -, lavo as mãos, porque eu não sei quantas pessoas cá vêm durante o dia, e onde é que tocam, não é?, e de cada vez que abro uma gaveta ou um armário, também lavo as mãos, eu sei lá quem é que já abriu aquelas gavetas e aqueles armários, e depois de abrir a porta do frigorífico, também lavo as mãos, porque eles dizem que é preciso muito cuidado com as maçanetas das portas, na escola do meu filho até já tiraram as portas todas, que é para ninguém mexer nas maçanetas e eu, se fosse à senhora, também mandava tirar as suas, ao fim e ao cabo uma porta não serve para nada, né?, por acaso lá na escola do meu filho as professoras estão de baixa, porque apanharam tantas correntes de ar que fizeram uma pneumonia, mas pronto, uma pneumonia não é a gripe A e, por isso, não tem importância, e eu bem digo que…"
A empregada continuava a falar, mas ela já nem ouvia. Se calhar, em vez de ir à farmácia em busca do Tamiflu, melhor seria ir ao banco pedir um empréstimo.
Alice Vieira: ‘A Factura’
Mesmo sem banhos de imersão, mesmo sem mais gente a viver em casa, as contas de água podem aumentar por motivos imprevistos…
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