Esta entrevista integra a GRANDE REPORTAGEM: SOMOS O QUE COMEMOS, DA SIC
Como é que evoluiu, nos últimos 15 anos, o contexto clínico desta consulta hospitalar de nutrição?
Aumentou muito a prevalência de patologias como a obesidade ou a diabetes tipo 2. Aumentou o envio de doentes para a consulta de nutrição, por parte dos outros profissionais de saúde, bem como a procura de aconselhamento nutricional por parte dos utentes. Aumentou a consciência da importância de mudar hábitos alimentares e até o conhecimento relativamente a alguns dos princípios básicos a seguir. Mas esse maior conhecimento nem sempre implica uma intenção de adotar hábitos mais saudáveis. E, quando existe essa intenção, há por vezes constrangimentos económicos ou laborais, horários de trabalho que não contemplam tempo para refeições, por exemplo. O aconselhamento nutricional deixou de poder ser generalizado. O desafio, hoje, é construir um modelo de intervenção com estratégias terapêuticas personalizadas que garantam resultados clínicos sustentáveis no tempo.
O Observatório Nacional da Diabetes estima em 1700 milhões de euros o custo da doença em 2013. Ou seja, um quinto do orçamento total do SNS nesse ano foi gasto a tratar uma doença em grande medida prevenível.
É absolutamente exorbitante no nosso orçamento de saúde.
Estamos a tratar as consequências em vez de abordar as causas?
E temos de começar a fazê-lo. Temos de começar a fazê-lo cada vez mais cedo. Antes dizia-se no berço, hoje sabemos que é antes: na barriga das mães. Um sistema de saúde eficaz fundamenta-se nos cuidados de saúde primários. Os profissionais de nutrição, neste momento, são indispensáveis nos cuidados de saúde primários. O custo da nossa intervenção, face aos ganhos em saúde, quer na prevenção quer na terapêutica, é de um benefício absolutamente gritante. Cada vez mais se pede aos profissionais de saúde que ponderem na relação custo-eficácia. Os decisores se calhar perceberão um pouco melhor esta mensagem: vamos poupar dinheiro.
Quantos nutricionistas faltam nos centros de saúde?
Pelos dados de que disponho, pouco mais de 25% dos centros de saúde contam com nutricionistas. Teremos cerca de 100 profissionais de nutrição para cerca de 400 centros de saúde. Nos cuidados de saúde primários, o rácio desejável de profissionais de nutrição é de 1 para 20 mil utentes. Em Portugal o rácio é de 1 para 117 mil.
Nos últimos 15 anos nós vimos um aumento brutal da investigação e do conhecimento em nutrição. Mas já Hipócrates assinalava que a alimentação é determinante quando falamos de saúde e de doença.
O que é que sabemos hoje que não sabíamos há 15 anos?
Sabemos que uma alimentação equilibrada não garante apenas saúde hoje, garante saúde a longo prazo. Que a melhoria do meu estado metabólico pode não ter um reflexo imediato evidente… Por exemplo, na prevenção da diabetes, quando procuramos resultados ao fim de 10 anos, a mortalidade não reduziu assim tanto. Mas quando vamos ver ao fim de 20 anos, ela reduziu substancialmente. Quer dizer que muito daquilo que nós fazemos é um investimento a longo prazo. Mas, mesmo sendo um investimento a longo prazo, nós hoje já o sabemos.
Os reflexos na saúde de uma alimentação desequilibrada também não são evidentes a curto prazo. Sobretudo quando não há excesso de peso.
E essa é a tónica mais importante. Há quem diga: eu não tenho nenhum problema, eu não tenho peso a mais. E portanto posso comer menos bem porque isso não vai ter uma consequência no meu peso. Não vai ter no peso, vai ter noutras variáveis. Muitos dos cancros estão associados a má alimentação. E mais ainda: naqueles em que não encontramos uma associação direta, podemos ter benefícios se tivermos uma alimentação equilibrada. Dou-lhe um exemplo: sabemos que os antioxidantes ajudam a proteger as nossas células de processos oxidativos. Mas tomar antioxidantes em comprimidos não é o mesmo que ingeri-los nos alimentos. Há um estudo clássico a este respeito. Nós sabíamos que o consumo alimentar de determinados antioxidantes — betacarotenos e vitamina E — reduzia a incidência de cancro do pulmão. Mas quando se testou isto com suplementos não se verificou o mesmo resultado.
Um exemplo interessante dos efeitos a longo prazo é a aterosclerose. É como a ferrugem dos canos lá de casa. A gordura vai-se acumulando nas paredes das artérias e há um dia que o cano rebenta. As paredes das nossas artérias rebentam e é por isso que se tem um enfarte, é por isso que se tem um AVC. Mas esse processo é um processo muito longo.
Estudos recentes mostram que o consumo de doces e de refrigerantes açucarados é surpreendentemente frequente em idades muito precoces entre as crianças portuguesas.
Sim. E estamos a criar hábitos alimentares. Ora, se eu não preciso de doces para viver, faz muito pouco sentido que a minha identidade seja de alguém que come doces regularmente. E tem consequências, a curto e a longo prazo. Na faixa infanto-juvenil estamos no pódio dos mais obesos, das crianças e jovens com mais excesso de peso e obesidade na União Europeia. É urgente investir na prevenção na infância. Há coisas muito interessantes que já se vão fazendo. Há miúdos que não gostam de legumes. Mas quando os pomos a fazer sopas ou a fazer saladas, decidem provar. As avós sabem fazer sopa. Às vezes as mães já não sabem fazer sopa. Então vamos trazer as avós para ensinar os netos a fazer sopa. Também temos de criar alguma coerência nos ambientes escolares. Que sentido faz nós proibirmos determinada oferta comercial perto das escolas mas depois, na oferta alimentar, não controlarmos essa variável? Temos de ser coerentes na mensagem. Eu costumo dizer aos pais que não vão conseguir convencer os filhos a comer sopa se eles próprios não comerem sopa. E temos de ter legumes mais baratos. Não sei se isto se faz com subsidiação, discriminação positiva de preços, os legumes não terem IVA…
É favorável a taxar os produtos com excesso de sal e de açúcar?
É uma das questões que está em cima da mesa. A grande dificuldade tem sido definir onde está o ponto de corte, a partir de que quantidade faz sentido taxar. Mas é certo que temos de fazer alguma coisa.
Até que ponto os primeiros tempos de vida são determinantes?
As células gordas que ganhamos na infância, já não as perdemos. E sabemos hoje que as células adiposas não são um simples reservatório de gordura. Elas têm um comportamento metabólico muito ativo. Produzem substâncias inflamatórias. Produzem substâncias que fazem com que nós tenhamos mais vontade de comer, mais apetite.
Nós fizemos recentemente um estudo que avaliou todos os doentes que chegaram à nossa consulta de obesidade durante seis meses. E verificámos que um quinto destas pessoas tem peso a mais desde o primeiro dia de vida. E um terço tem peso a mais desde a adolescência. Viveram toda a vida adulta com peso a mais. Construíram todos os seus hábitos com peso a mais. Muitas destas pessoas são sócio economicamente desfavorecidas. Muitas fizeram várias tentativas frustradas de perder peso. Sabemos que a possibilidade de sucesso de uma pessoa que tem tentativas anteriores frustradas é menor.
Eu estou cada vez mais convencido de que, se não for para fazer bem, não vale a pena sequer começar. A terapêutica da obesidade, tal como a terapêutica de qualquer outra doença, é para ser feita por quem a sabe fazer.
A obesidade é uma doença crónica?
A Organização Mundial de Saúde assim a define desde 1999. Sendo crónica, é uma doença que me vai acompanhar para a vida. E tem este fator alarmante que é: traz com ela muitas outras doenças associadas. A diabetes é uma das doenças que nós aqui mais abordamos. Cerca de 80% dos diabéticos tipo 2 tem peso a mais. E mais de metade da população portuguesa tem excesso de peso. É absolutamente assustador. Se formos em cascata, sabendo que a história natural do excesso de peso é para agravar e que o peso a mais se associa a diabetes, a doença cardiovascular, a alguns tipos de cancro…
Que são as doenças que mais matam e que mais ocupam o Serviço Nacional de Saúde.
São as doenças que mais matam e incapacitam em Portugal e em todos os países ditos desenvolvidos. E portanto vemos que grande parte da mortalidade e da morbilidade — incluindo os fatores que prejudicam a qualidade de vida — estão ligados a ter peso a mais. E não estamos a falar só de doença metabólica. Estamos a falar, por exemplo, de doença óssea. A osteoporose é mais frequente em pessoas que não se alimentam bem. E é preciso também ser fisicamente ativo. Para muitos dos nossos doentes, mobilizarem-se é terrivelmente difícil. Mas às vezes basta aumentar meia dúzia de passos por dia. Basta fazer pequenos percursos a pé.
O seu estudo de doutoramento mostra que pequenas mudanças podem ter grandes impactos.
Estamos numa fase de tratamento de dados, não temos ainda dados publicados, mas estamos a verificar coisas que são muito motivadoras. Nós convidámos a participar neste estudo todos os doentes que foram referenciados à consulta de obesidade durante seis meses. O grupo de controlo recebeu uma intervenção no sentido de promover literacia nutricional, relativamente ao tratamento da obesidade, e foi visto em consulta de nutrição duas vezes: no início e no fim do estudo. O grupo de intervenção recebeu acompanhamento personalizado, em consultas de nutrição de dois em dois meses. Há investigação que diz que o ideal é, pelo menos, consultas mensais, mas sabemos que a resposta do Serviço Nacional de Saúde nem sempre é a que desejamos. Nós conseguimos, com muito esforço, às vezes a trabalhar mais horas, ver os nossos doentes de dois em dois meses. E verificamos que no grupo de intervenção há maior perda de peso. Cerca de 5%. Parece pouco mas tem um enorme impacto em termos de redução de risco. Num grupo de intervenção de alto risco de diabetes, 5% de perda de peso reduziu em 50% a incidência de diabetes.
A Organização Mundial de Saúde fala da obesidade como a epidemia do século XXI. É surpreendente para si termos chegado a este ponto?
Sem dúvida. Ninguém imaginava, há muito pouco tempo, que iríamos ter um problema tão grande e que saberíamos tão pouco sobre como resolvê-lo. De facto não era imaginável que teríamos as doenças por excessos alimentares a matar mais do que a desnutrição. Há um estudo norte-americano que diz que nós podemos estar a inverter a curva da esperança média de vida. O aumento da incidência da obesidade e das doenças associadas pode fazer com que quem nasce hoje tenha menos esperança de vida do que os seus pais. Nós temos prevalências de excesso de peso superiores a 50% na maioria dos países ocidentais e temos outra coisa alarmante: as ditas sociedades emergentes passam diretamente do estado de desnutrição para a obesidade.
Tem a ver com uma indústria alimentar que é global?
Tem muito a ver com a oferta alimentar e tem muito a ver com hábitos de vida que também se globalizam. Cada vez mais temos ambientes que não promovem a atividade física.
Em 2012 o Ministério da Educação reduziu a carga horária de educação física no terceiro ciclo e no ensino secundário e a nota de Educação Física deixou de contar para a média de acesso ao ensino superior. Como olha para estas medidas?
Enquanto estratégia de promoção de saúde é um autêntico desastre, na minha opinião. Nas idades pediátricas a atividade física é ainda mais determinante do que na idade adulta. E não é só no peso. É no crescimento. É no desempenho cognitivo. Portanto, no fundo estamos a comprometer o futuro destas crianças, a inúmeros níveis. E no fundo estamos a comprometer o futuro da nossa sociedade.
José Camolas participa na Grande Reportagem SIC “Somos o que Comemos”. Para ver esta noite no Jornal da Noite da SIC. E, em versão interativa, com conteúdos extra exclusivos, nos sites da SIC Notícias, Expresso, Visão e Activa.
Leia também a entrevista: “O açúcar é o maior veneno que damos às crianças”, da pediatra Júlia Galhardo,no site da Visão.