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Foto: Pedro Geraldes
O último disco chama-se Medusa, como a figura mitológica. Quem é que lhe apetecia transformar em pedra, como ela fazia?
Não tenho instintos vingativos. Quis resgatar o mito na Medusa, na sequência do meu disco anterior, ‘Sereia Louca’; primeiro para dar seguimento ao tema marítimo, depois porque a Medusa era uma divindade aquática mitológica transformada em monstro pela deusa Atena, depois de ser considerada culpada da sua própria violação – diz o mito que transformava em pedra os homens que a olhassem. Queria fazer uma música sobre a violência contra as mulheres nas suas diferentes dimensões, destacando a raiz cultural que acho que todas têm em comum, e o mito da Medusa concentra bem a questão da ‘monstrificação’ da vítima. Isto já vem da Antiguidade, mas continua a fazer parte da nossa civilização e tem a ver com o facto de continuarmos a viver numa sociedade patriarcal. Ainda se dizem coisas sobre as vítimas de violação, como ‘quem é que a mandou sair de casa assim’. Na violência doméstica, pergunta-se por que é que a vítima não reage e não faz queixa. No ciberbullying dizem-se coisas como ‘quem a mandou tirar fotografias assim? Ou ser gorda, ser feia?…” Parece que as mulheres é que estão permanentemente a dar motivos para serem abusadas.
É um disco de remisturas. Como foi entregar as suas músicas a outros artistas para que fizessem novas versões delas?
Acabou por ser engraçado, porque, como não tive muito voto na matéria, a não ser sugerir as pessoas e as músicas que gostava de ver remisturadas, fui recebendo remisturas que me surpreenderam. Fiquei contente com o resultado. Como também escolhi estes produtores por gostar e acompanhar o trabalho deles, não podia correr muito mal. Dar-lhes carta-branca foi um exercício de desprendimento – normalmente sou muito control freak com o meu trabalho.
Quais foram as que mais a surpreenderam?
Surpreendeu-me muito a remistura dos Octa Push por causa da dimensão étnica e quase hipnótica, exótica, que não esperava – convidaram o Braima Galissá, um tocador de kora da Guiné-Bissau. Outros surpreenderam-me por razões diferentes, como os DJs Marfox e o Puto Anderson, da Príncipe, uma equipa de produtores e DJs de Lisboa que faz pós-kuduro, aquela música eletrónica de raiz africana e urbana. O Sam The Kid também, pela sensibilidade e delicadeza como pegou numa letra tão triste e delicada como a do ‘Soldadinho’, respeitando esse ambiente.
Sempre se assumiu como feminista. Acha que as mulheres ainda têm medo de se identificarem com este termo?
Em 2014 houve uma tendência para mudar: uma das palavras que me pareceu mais trendy, quer na música, quer na moda, foi ‘feminismo’. Isso tem coisas boas, como retirar-lhe esse estigma da mulher que não gosta de homens, mal-amada e que queima sutiãs, que acho que continua a existir. Havia um certo medo da palavra, como se fosse o oposto de machismo – o termo parece-me ter sido enxovalhado e descredibilizado para lhe retirar poder e capacidade subversiva. Agora há muitas figuras públicas que se assumem como feministas, como a Beyoncé ou a Emma Watson, e começou a ser cool dizer-se que se é feminista. Mas isso também nos pode fazer cair no processo oposto: uma espécie de esvaziamento político e de radicalismo da palavra, torná-lo um feminismo light, sem capacidade de ruptura e subversão. Mas há de continuar a existir a necessidade de lutar pela igualdade de género e, portanto, haverá sempre quem mantenha o radicalismo.
As mulheres do norte são mesmo feitas de outra fibra, como diz na letra da sua música ‘Mão Pesada’?
Não. As mulheres fortes existem em todo o lado. A ideia foi pegar no mito da mulher do norte para falar das mulheres de todo o mundo que têm coragem de serem livres, de serem como são. Basta ir a Alfama, ou outros bairros de Lisboa, para perceber que também há lá muitas ‘mulheres do norte’. Há pessoas muito desbocadas em Lisboa como as há mais reservadas no Porto. Mas, culturalmente, no norte temos mais tendência para falarmos mais alto, dizermos mais palavrões, darmos a nossa opinião mesmo quando não nos perguntam, sermos sinceras para o bem e para o mal. Gosto muito do Porto, como todos os tripeiros muito apaixonados pela sua cidade. Tenho muito orgulho nela; é uma cidade muito afetiva e ciumenta, que também nos faz sentir muito enraizados. Faz parte da minha identidade. As palavras são a matéria-prima de um rapper, que está sempre muito arreigado ao seu território por causa da linguagem quotidiana, do que se passa à nossa volta, da forma como falamos.
Acha que as revistas femininas podiam entrar no rol das coisas que nos provocam aquela ansiedade de que fala em ‘O Medo do Medo’?
Em grande parte, sim. Na ‘Alfazema’, que faz parte do ‘Sereia Louca’, falo da expectativa e condicionamento injustíssimos que pairam sobre as mulheres: termos de ser super-bem-sucedidas e boas profissionais, ainda termos tempo para ir uma hora ao ginásio, criarmos três filhos, fazermos as melhores receitas e ainda sermos a amante com truques novos para mostrar aos nossos maridos ou namorados. Acho que as revistas femininas tendem a acentuá-las com artigos como ‘10 truques para deixar o seu marido louco de paixão’, ‘10 truques para transformar o seu rabo num calhau de granito’… Esse condicionamento também tem a ver com a anatomia, com o facto de não se reconhecer a diversidade de corpos que cabem no feminino. Lentamente está a mudar, e ainda bem. Aceito que muita gente ache que o corpo de tamanho 34/36 é mais bonito. O que não aceito é que se reduza a ideia de feminino a um tipo de corpo que deixa 99% de fora, como se fossem piores, ilegítimos, inestéticos, quando o natural é a diversidade. Transformam-se as mulheres em pessoas inseguras porque não se revêm em nada – ‘olha, esta é como eu.’ Como ultimamente estamos mais expostos à cultura brasileira e angolana, já é cool ter coxa grossa e rabo grande. Abriu-se mais uma gavetinha, mas é como se fosse só aquela. E quando se fazem artigos com roupa para tipos de corpo diferentes, é sempre na ótica do ‘como é que eu vou disfarçar isto’ e não ‘como é que vou celebrar esta coxa grossa que Deus me deu.’
De vez em quando ainda lhe apetece sair por aí para graffitar?
Não, porque o graffiti exige militância e, quando paramos, retrocedemos. É preciso ter muita disponibilidade física e tempo – exige que vás, por exemplo, para a beira da autoestrada às três da manhã e eu já não tenho paciência para isso. Também já não sinto tanto essa necessidade porque agora tenho um microfone na mão e digo o que quero dizer através de outro veículo. Mas continuo a acompanhar com interesse aquilo que se faz no graffiti. Desde 2012, os meus discos têm uma ilustração na capa. Durante os concertos temos um ilustrador que desenha durante as músicas, para projetar no palco.
Quem gostava que lhe pedisse para escrever uma letra?
Tanta gente! Já escrevi outra letra para a Gisela João, uma música sobre o São João do Porto; escrevi outra para a Aline Frazão, mas gostava muito de começar a trabalhar mais como letrista. O prazer de escrever tanto é igual quando o faço para mim como para outros. Às vezes, escrever para outra pessoa é mais desafiador porque me permite chegar a territórios a que eu não poderia chegar, porque não canto daquela maneira ou aquelas palavras não se adaptariam a mim. Gostava de continuar a escrever fados para a Gisela, e para outros, e de tentar uma linguagem mais pop, ou para soul e R&B.